**OS GRAÚDOS PERCEBEM DE LONGE** - PINTURA: Graça Fontis/PROSA POÉTICA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
São muitas as sendas por que Deus pode nos conduzir ao silêncio e
levar-nos a nós mesmos – não é necessário ser influente, importante, para que
se possa isto sentir, perceber. Por uma dessas sendas conduziu-me Ele.
Via-me avançar, passos insofridos, desassossegados e ansiosos, como um
homem atormentado por pesadelo, conflitos vivos, dores pujantes, através de
longas noites de solidão, bebedeira, insônia, e de um cinismo sem limites, por
uma trilha odienta e suja, as águas pretas, coberta de detritos e viscosidades
e coalhado de copos de bebida, restos de comidas triviais com que os homens
saciavam a fome, embora não realizada.
Era um pesadelo. Devia atravessar o rio de águas pretas de tanta
imundície – ou seriam as de um esgoto a céu aberto, como o que existe na
periferia, onde os homens não vivem, não se arrastam, mas engolem a morte sem
protesto e lamentos os mais variados. Não havia outra alternativa senão
atirar-me, mergulhar, sair do outro lado. Assim fizera no pesadelo. Na outra
margem, num montículo agarrei-me a uma raiz exposta de árvore, subindo, e
seguindo a caminhada.
Há momentos assim na vida – se são importantes para o amadurecimento,
disso não tenho quaisquer dúvidas, eu que penso e existo – em que, ao seguirmos
rumo a algum discernimento de que mesmo habita a alma, não sabendo se estará
próximo, se se faz mister andar longa distância, perdendo-se além das curvas,
ao pé de amuradas altas de apenas terra, afunda-se nas águas pretas, num
lodaçal ou segue-se por um beco imundo e pestilento.
Tal foi o que me acontecera outrora, e tais foram os sentimentos que me
perpassavam o íntimo, angústia, medo, tristeza, e tal fora o processo nada belo
que me estava destinado seguir para chegar ao silêncio e interpor entre o
paraíso de minha juventude e eu uma porta hermética. Oh! Não hão de os homens
saber o que me mantinha à minha maneira, tão singular quanto pouco estimulante
– com bebedeira e insônias – a luta contra o mundo, os sofrimentos, desesperos,
e, acima de tudo, rejeições e preconceitos: era o meu estilo de protesto,
espírito rebelde e revoltado. Mas como ela me exterminava, aniquilava,
tornando-me um morto que houvera esquecido de no leito eterno deitar-me, e ao
perceber isso equacionava, às vezes, a questão nos seguintes pontos de vista:
“Se o mundo não pode utilizar homens que buscam outros ares e ventos diferentes
que a todo momento vivem como eu, se não há para mim nenhum lugar melhor nem
posso arranjar-me uma outra função, além dessas, o sonho, os desejos, utopias
mais altas, então a mim não me resta caminho senão o aniquilamento. Pior para
todos os homens”.
Aos escassos pensamentos, conhecimentos, afirmações amadurecidos em mim
até então na demanda do verdadeiro fim de minha vida, veio agregar-se agora
esta: a contemplação do destino que me fora reservado, e que de modo algum me
dispunha a ser quem o criava e estabelecia através de escolhas e decisões, o
abandono às formas irracionais, singulares e retorcidas da Natureza, despertava
em mim um sentimento de consciência de um silêncio interior com a vontade que
me fez nascer e acabou por me parecer criação singular, autêntica, original,
obras imaginárias, de imaginação muito fértil.
Vi, com a consciência desse silêncio interior, tremer e dissolverem-se
os limites entre mim e o silêncio, e conheci um novo estado de ânimo em que já
não sabia se as imagens refletidas nas retinas procediam de impressões
interiores ou exteriores.
Quando em meu peito nu e desprotegido as aflições rebentaram, eivadas de
sofrer árduo e pujante; quando a desgraça o coração me arrochava em círculos de
perdição, insegurança, com tal ímpeto, que dele o sangue em borbotões
golfejava, não me esquecia de imaginar que nalgum sítio iria descobrir outros
sentimentos e emoções, outras intuições e sonhos; não me esquecia de clamar:
“Deus, piedade de mim”.
Dizia-o unicamente. Se desejo havia de o clamor tornar-se realidade, não
o sei dizer. Talvez chegasse um dia a ser algo semelhante, mas como poderia
sabe-lo? Talvez tivesse que buscar e rebuscar o caminho durante anos a fio e
não chegar a ser nada nem alcançar qualquer objetivo. E talvez atingisse um
fim, mas algum fim imaginário. Arrancar de meu interior o objetivo oculto e
sombrio e projeta-lo para fora de mim, em qualquer direção, como fazem os que
têm a certeza de querer ser professores ou advogados, médicos ou artista, e
sabem quando chegarão a sê-lo e que vantagens lhes trarão.
Afirmar me era impossível, não o posso. Queria apenas tentar viver
aquilo que brotava espontaneamente de mim, embora envolto em sofrimentos e
dores. Na excelsa visão de após alguns passos, não tantos que a perna doer
podia, por esforços inúmeros de lida e luta, que se me antolhava, bebia na taça
das solidões a anunciação do silêncio – minh´alma ansiava a hora em que,
olhando para a direção de onde começara a andar, após sair das águas pretas,
subir no barranco de terra, agarrado à raiz exposta de uma árvore, havia de
asilar-me no seio imenso da solidariedade e compaixão eterna.
O que dizendo estou não está em mim, não é um sentimento presente, mas
naquela época, como um pensamento límpido e nítido do que em mim habitava;
todos aqueles sofrimentos e dores vivi em meio a uma fornalha ardente de
felicidades e prazeres, alegrias e contentamentos, de estranhos impulsos, de
esquisitos ímpetos, que me causavam angústias e, contudo, enchiam-me de
esperanças de as ver aniquiladas, jazendo no chão qual areia que cobre as
pedras seculares.
É esplendoroso que aqui em casa haja paz, ordem, repouso, deveres
cumpridos, alguns sonhos já realizados, consciência tranqüila, perdão e
amor...; mas é de todos estilos e modos imaginados, pensados, que exista tudo
mais: o estrepitoso e o agudo, o sombrio e o violento, de que me posso escapar
imediatamente, através de intuições, fantasias, quimeras, refugiando-me quase
de um salto nos ritmos e melodias de canções que nascem do silêncio, e que me
tocam de leve, presente, não sendo de todo impossível que aflorem outras
emoções e sentimentos.
Há o dever e a culpa, o remorso e a confissão, o perdão e as boas
intenções, o amor e a veneração, os versículos da Bíblia e a sabedoria. Se
antes, enquanto caminhava, após atravessar o rio de águas pretas, não havia
alguém ao meu lado, apenas alguma esperança vulgar e inóspita, hoje converso
alegre e feliz com o silêncio que me ouve e se ri de minha inocência e
ingenuidade. Neste mundo, devo permanecer para que a vida seja clara e limpa,
linda e ordenada.
(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE ABRIL DE 2017)
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