**TERRA DE PÁRIAS E DESTERRADOS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Quem iria, de imediato, intuir tais palavras de início significam o nascimento, infância, fato mesmo a vida no mundo, mas a morte a cada passo dado, o féretro, quem sabe até menos do que onze amigos, os quatro que levam o caixão, desde a funerária até ao cemitério, a esposa e três grandes amigos? Há-de se considerar há famílias que preferem seguir o féretro a pé, não importa se longa ou breve caminhada, na presença dos amigos, companheiros, íntimos do falecido, lembrando algumas passagens de sua vida, debulhando o terço de orações, choros convulsivos... A funerária levar o caixão tira um pouco os sentimentos, dores, sofrimentos que habitam a alma dos que ficaram no mundo.
Lágrima dos Insanos... terra de párias e desterrados, por menor que seja, é o que se não vê: o fundo arcaico projetado sobre uma sociedade primitiva que vive longe do espaço urbano e o que é aparentemente seu avesso, uma cidade brasileira, mineira qualquer e todas as outras cidades do país, a que se deixou perder de seus princípios civis e a que já é apenas degradação de seus lugares públicos, a cidade concebida para expressar as mazelas, picuinhas, pitis, orgulhos, mentiras, empáfias, mas a que mais de perto busca as origens ásnicas, os instintos, para lhe salvar da extinção. Lágrima dos Insanos é o sem-lugar que dobra sempre para adiante em rumo às arribas de confins.
Havia morrido um burro no meio da rua, entre a igreja e a prefeitura de Lágrimas dos Insanos. Que lugar mais estranho para se esticar as patas! Poderia ter sido entre a sede da polícia civil e a bombonière, alguns poucos passos adiante – fora, contudo, entre a igreja e a prefeitura. Ninguém tomava a mínima providência de tirar o corpo do pobre equus asinus da rua, jogar-lhe num terreno baldio qualquer da cidade – aliás, deve-se observar que nada existe de baldio no terreno das almas - bem longe do centro e de uma residência próxima, a fim de que as aves negras do céu se deliciem com a carniça. O odor já estava um pouco avançado. Os transeuntes tampavam o nariz, passando pelo local.
Padre Custódio Limeiras dirigiu-se à prefeitura no sentido de ter um dedo de prosa com o senhor Prefeito Juscelino Mangalarga. Era de sua competência e responsabilidade proporcionar à comunidade a saúde pública, aquele odor fétido do animal teria algumas conseqüências em pessoas tendentes a isso. Hesitara fazê-lo – seria o mesmo de dar milho aos macacos; o homem é inútil em todos os âmbitos, zero à esquerda, ângulo obtuso -, mas não lhe sobrara alternativa.
- Não posso fazer nada – disse-o irritadíssimo, a irritação era a mesma de quem não deseja a presença de uma pessoa quanto mais a sua voz - Não é da minha competência tirar os asnos das ruas. Ainda faço muito em tirar algum mendigo morto das ruas e enviar ao necrotério. Mas asnos não – disse-o “embostando” a voz para que aquilo não se tornasse numa cênica cômica, o padre tomando satisfação com o prefeito por sua negligência em tirar o burro morto da rua, aliás já em processo de putrificação.
- Não. Não há nada que o senhor possa fazer. E isto que concluo de sua resposta. Senhor prefeito, afinal como é que conseguiu ser eleito, não passa de um inútil?
- Padre, não é de sua alçada encomendar as almas, absolvição dos pecados, preparar a alma para ser recebida no Reino de Deus?
- Sim. Pensei antes em comunicar a alguém da família – é exatamente esta a conseqüência de quem pensa ser muito importante para dar respostas malcriadas e não ter o mínimo respeito por uma autoridade eclesiástica. O prefeito Juscelino Mangalarga, diante da resposta, pôs-se a mexer nalguns papéis sobre a mesa, abaixando a cabeça, olhando de testa para o Padre Limeiras que encostava a cadeira à mesa, saindo do respectivo lugar, dirigindo-se à porta, fechando, indo embora.
Há quem saiba com perfeição responder a certas coisas: relincho perfeição, pois que quem assim responde terá jamais qualquer réplica, a última palavra fora dada. São as de minha preferência. Se Juscelino Mangalarga já estava insatisfeito com o padre Limeiras, devido a certas críticas feitas nas entrelinhas das homilias, com uma resposta desta o ódio está solidificado.


(**RIO DE JANEIRO**, 08 DE ABRIL DE 2017)


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