**INTRODUÇÃO AO ESTILO ÁSNICO** - Graça Fontis: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA


“O seu conhecimento ainda não aprendeu a sorrir e a não ter inveja: a onda da sua paixão ainda não se acalmou na beleza”
(Nietzsche)


Assim relinchava Incitatus...
Triste, não? Pode ser que haja alguém quem não o julgue assim, sendo complacente e misericordioso comigo; não adiantaria ninguém interferir, interceder a favor por estar mais do que convencido e persuadido de que é triste, mui triste. Triste é haver começado, iniciado a refletir sobre novas experiências com “assim relinchava Incitatus” – quem iria acreditar, se alguém pudesse perceber, intuir as reflexões, pensamentos, idéias? – e não poder realizar-lhes a contento, de modo que a obra desejada fora feita, está aí, tornou-se objeto de uso. Não poderia fazê-lo com falar ou dizer, falta-me a língua, a expressão verbal, só me é dado relinchar os pensamentos. Isto é o que chamo de tristeza eterna, imortal. Embora condenado à miséria eterna, a falta de língua, arranco deste silêncio o que trago em mim. O silêncio se torna fluxo de instintos comungados às razões todas. O silêncio é o tempo da palavra verdadeira, aquela que retumba no íntimo e nos instintos e tudo o mais é desejo e vontade de mais vida ainda.
Assim, como o viajante sabe que algo vela nele, conta as horas, e o acordará, nós também sabemos que o instante decisivo nos encontra despertos, que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante delito, ou seja, em via de fraquejar, recuar, de se render, se endurecer, de agravar, ou de sucumbir a outra doença qualquer que em dias saudáveis tem contra si o orgulho (pois continua verdadeiro o velho ditado: o espírito orgulhoso, o pavão e o asno são os três animais mais orgulhosos da terra).
Por que o espírito orgulhoso não pode ser animal? É sob a sua efígie dele que se trata dos interesses de por baixo das incompetências, inutilidades, incapacidades, sentimentos de inferioridade e perseguição. É sob a sua efígie que as nações se armam contra os autoritarismos de alguns.
Com o fantástico desenvolvimento do intelecto e da penetração espiritual cresce a distância e, certamente, o espaço que me circunda. Meu mundo tornou-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Um dia os conceitos mais solenes, aqueles que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos do instinto, Deus e do pecado, não signifiquem, para nós, as criaturas de Deus, mais do que um brinquedo e um esporte de criança significam para um velho.
Uma dor muito grande ter o que dizer e não poder fazê-lo em nível de palavras, e ninguém poder saber o que penso, não há contacto entre os homens e os equus asinus.
Houve um asno que nascera imortal, eterno – a imortalidade e eternidade se fundamentam na tristeza de ser intelectual e não revelar a sabedoria, o idioma faltou-lhe. Feliz e saltitante, estou por ser o primeiro da humanidade, espero que outros nasçam nos séculos e milênios vindouros. A vida ser-lhes-á menos difícil, não irão ter de conviver com as insatisfações, frustrações e fracassos da raça, pois fora eu quem lhes proporcionara nova vida, oportunidades. Muitos questionamentos que poderia ter eu durante a caminhada, os fretes, respondi, embora necessitando de serem desenvolvidos ao longo da vida deles, pois não tenho a mínima capacidade de dizer a verdade absoluta, e se tivesse sentiria enfastiado com a coisa, não posso investigar, contemplar por estar no fim a minha jornada no mundo.
Assim relinchava Incitatus... Mas não tem revolta não, há as milhares e esplendorosas compensações – uma delas por exemplo é que asno e homem algum vão entrar em contacto com as idéias e pensamentos, adulterando-lhes em benefício próprio, fazendo certas cositas serem esquecidas ao longo da história da raça, e só no futuro bem distante alguém iria despertar para o fato de que seria necessário resgatar as idéias por mim professadas, foram adulteradas pelos interesses e ideologias de muitos séculos. Humano jamais poderia mergulhar tanto nelas, são idéias para todos e para ninguém, não haveria modo de adulterá-las.
Quimeras, quimeras, quimeras... Nada pode ser deixado desde que revele quem sou a partir da expressão verbal, claro, na teia de contradições e contra-sensos. Tudo é simplesmente inútil. Sem as palavras, até mesmo a engenhosidade e perspicácia do instinto por elaborá-las, como este instinto funciona, como é o caminho que sigo para ir elaborando as idéias, nada é possível. Desgasto-me por nada. Tenho disto consciência, é dizer o que me perpassa os instintos.
Antes mesmo de haver nascido, estava escrito nas estrelas que a tristeza eterna, imortal que me acompanharia por toda a existência neste bendito mundo – bendito por haver sido escolhido por Deus, seria o habitat de suas criaturas; quanto ao resto, tenho algumas dúvidas, sendo necessário in-vestigar com apreço e carinho - seria devido a tornar-me intelectual, reflexões que ninguém na humanidade havia se atinado com elas, os filósofos e cientistas sabiam que havia coisas que só o tempo iria mostrar e revelar com transparência, no tempo de cada um deles não era possível saber. Só ninguém esperava que o vazio seria preenchido por asno intelectual, o grande Incitatus.
Há-de se relinchar, nestes termos, que acabo de atingir o topo do Olimpo, olhando a cidade e os homens de cima. Embófia, poder, orgulho, convencimento... Pode-se acreditar que omito alguns outros substantivos com intenção efetiva de não iniciar a ver-me um deus, deus dos asnos. Não sou eu que julgo, pois não? Não seria possível olhar de cima ou de baixo por habitar numa região plana, ninguém me levaria de elevador para conhecer o estábulo de cobertura reservado para mim, a grande experiência de olhar os homens de cima.
O instinto de conservação é que ensina os homens a serem volúveis, ligeiros e falsos. O meu instinto de entrega, doação me ensinou a ser ousado, cínico e insolente, e por isto tornei-me autêntico, verdadeiro com o que sou. Ninguém pode duvidar que quem tem necessidade do culto da superfície não tenha feito alguma vez uma incursão para debaixo dela.
Sinto necessidade de olhares que se dirigem a mim. Quisera dar e repartir até que os sábios voltassem a gozar da estultícia e os pobres da riqueza.
Há quando fico imaginando tudo isso que vivi pelas estradas, coxias e pastos, dentro de mim, o acúmulo de todas as situações e circunstâncias; que seria de mim, se não me houvesse sido dados a inteligência, o dom da intelectualidade?; creio que instintivamente em resposta ao acúmulo viveria dando coices até na sombra, desde que os nossos reflexos não fossem imagens de nós, algo como se relincho, a sombra coaxa a plenos pulmões. Difícil seria olhar a sombra e vê-la coaxando, não apenas ouvindo, enquanto relincho. Por mais diferentes sejam as características da natureza humana, se é que assim possa expressar-me com categoria, nisto somos iguais: nenhum de nós aceitaria este paradoxo dos infernos: enquanto o homem próprio ri a bandeiras soltas, a sombra chora, esgoela-se de tanta angústia e desespero de estar só, separada do homem, e não podendo atinar com tão difícil problema.
O que pensei neste tempo em que tudo isso me perpassava os instintos? Nada pensei – tanto que fiquei tentando, digamos, em silêncio, tecer a meada de assunto e outro, não tenho consciência de assim poder relinchar – Foram imagens que se me revelaram aos instintos e tive dificuldades de as colher e contemplar. Imagens perpassaram-me as entranhas, não sei o que podem ter colhido e recolhido dos instintos inúmeros que me habitam. Tornaram-se idéias e o que necessitava fazer está sendo feito nestes relinchos, a bem da verdade, hein, são poucos para que possam ser compreendidos em tudo que tenho vontade e desejo de revelar, e não posso. Não apresento mais a digníssima justificativa.
Imagino este colóquio com a sombra:
- Ah, coitada de mim!... Mereço lágrimas de toda a humanidade, lágrimas ardentes e conscientes do que é isto a minha sombra que sou eu. Rio de você, caríssima sombra, porque você está aí no chão, refletida pela luz em cima do meu corpo, estou aqui, sentado no trono, sem luz alguma a refletir-me neste espaço, eu, um ser só e solitário, longe de tudo e de todos, representando a dor de toda a humanidade, como o deus grego, Zeus, o mais poderoso, quem usa das sombras dos deuses menores para satisfazer os sonhos supérfluos, fétidos. Aeiou.... Aeiou... Aeiou... Féretros, fétidos. Preciso de carinho, amor, felicidade...
- Oh, pedaços de mim, por que vos entristecestes tão rápido, o que na sua imagem, a sombra que sou eu, vos entristeceis tanto? Seria que não realizo o seu sonho maior, o de harmonizar-se consigo mesmo, o de sentir que vós sois a imagem da vida refletida realmente, alegrias e tristezas bem representadas neste espelho que são você e a representação de mim? Se tristes estais vós assim, por que não me abraçais novamente? Aconchega-me no vosso útero de criação, no vosso útero à palavra, pois que o Filho de Deus ensinou a todos os homens que a palavra é a salvação de toda a solidão, incompreensão do que acontece e do que existe, sombras que se projetam a partir de meu único corpo. Basta que vós quereis, desejais com todo ímpeto do coração e alma, se possível unir a eles o espírito, este que purifica a vida. Não vos negarei a minha própria sombra, embora vós não podeis ver esta minha sombra, sombra esta que vos guardais, vos iluminais, vos santificais... Aliás, meu amigo, a vocação dos asnos é ser justamente santos, como Jesus o dissera...
- Sombra, prestai bem atenção nestas minhas palavras, aliás, resposta às suas!... Olho a pata. Com efeito, olhando-a, prestando-lhe atenção aos traços, passos que foram dados na existência, registrados nela, observo e lhe digo, sombra, que vos negarei serdes vós o sacrário de mim, pois que sou este sacrário de minha vida, “eu “, de minha redenção e ressurreição. Digo-lhe ainda mais: “Aqui, sombra, é o fim de tudo, onde começa o reflexo do mundo, o lugar de repouso de todas as sombras sem sacrários que sonham os raios solares do Éden, as felicidades que todos nós somos merecedores, somos vocacionados para a Felicidade Eterna, o Reino de Deus...
- Incitatus, mesmo que vós não aceitais ser eu a vossa sombra, ser eu quem de algum modo o identifica com o mundo e a vida, ainda assim serei eu como a exemplo do palhaço que usa objeto no nariz, de preferência vermelho, para mostrar hilaridade, serei eu quem diz as verdades por caminhos tortos, como se é costume dizer sobre Deus que Ele resolve os problemas dos homens por caminhos sinuosos, mas Ele é a Redenção, a Ressurreição, a Sombra que cobre todo universo. Serei, Incitatus, mesmo que não aceitais, quem lhe dirá os caminhos do campo!...
Viver com uma calma orgulhosa e impassível, sempre para além. Ter e não ter, arbitrariamente, os seus afetos, o seu pró e contra, condescender com eles por umas horas; montar sobre eles como em cavalos, freqüentemente como em burros. Pois que se deve saber aproveitar a sua estupidez assim como a sua fogosidade. Conservar os primeiros planos. Igualmente os óculos escuros, pois há casos em que ninguém nos deve olhar nos olhos e muito menos ainda nas nossas “razões”. E escolher, para companhia, aquele vício matreiro e sereno, a cortesia. E ficar senhor das suas quatro virtudes: a coragem, perspicácia, simpatia, solidão. A solidão é entre os humanos e os equus asinus uma virtude, como tendência e impulso sublimes de asseio que adivinha como, no contato de homem para homem “em sociedade”, tudo é inevitavelmente sujo.
A sabedoria para mim é o desejo de harmonia e coerência tanto do homem como de mim em respeito à sombra, vontade desta comunhão haver sido realizada, mas, em verdade, pouca importância tem, mas se a dôo aos homens, aí sim tem importância divina, é para os outros, os outros através de mim possam descobrir os desejos e vontades habitam-lhes a alma, vendo tudo se transformando a olhos nus. A sagrada face são os outros.


(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2017)


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