**AFAGO DE ADÁGIOS E ÁGUAS** - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Sem me pré-ocupar com o silêncio e um suave murmúrio, quer entre risos, quer entre prantos, espalho-me por todo canto, ao pensar que cessa o conflito que por ínfimos segundos me alegrava e por momentos longos me doía.
Engano-me, pois a música que ouço é o silêncio que deixa pingos de lágrimas descer a face, feliz por saber entoar o mais belo canto que jamais se ouvira, o canto dos adágios e águas, interminável confronto entre a doce música, advinda de algum lugar distante, num enorme vazio, eu, tão pequeno, assistindo às imagens que, espontâneas e brevemente, se anunciam, revelam-se, escondem-se... se eu soubesse, entenderia melhor o caminho a ser percorrido.
Sei da saudade de primavera o verbo conjugado no tempo, é um alívio para o meu sentir humano. O que mais poderia dizer sobre o sentimento que, de vivo, tornou-se a semente que, tornada planta, irá sempre apresentar os seus frutos deliciosos? Dizendo algo mais, não iria prejudicar a idéias e as emoções que, em sintonia com a dor e a alegria, perpassam o íntimo?
As paredes frias, há alguns dias consecutivos que vem chovendo, acolhem tinta e pó, lugares sujos e arranhados... O olhar  sobre elas não intimida nem retorce. Solidão amiga de encontro e pura saudade, não preciso de asas para chegar ao céu.
No proscênio desta cidade, no canto de minha canção, que, inda no início do outono, reclama o inverno, contando e cortando o tempo, eu, num gosto, de luz e de graça, deixo para a noite, ao brindar de taças e, quem sabe, um pouquinho, pro sol que há de vir amanhar, assistir aos projetos superpostos no tempo, tencionados a preencher o vazio da resposta às perguntas que solenemente atravessam a História: O que é o ser? O que pode ser conhecido? Sou livre?
   Em verdade, não faço questão alguma da matéria de meu canto, se afago de adágios e águas, se consolo de esquecimentos ou falta de ritmo e melodia. Quem sabe importa mais o ramo de flores absurdas enviado por via postal ao semeador de suas sementes.
Não serei o canto do Cruzeiro no alto da montanha, a paisagem e o cenário vistos de minha janela. As águas são a minha matéria, o tempo presente, a humanidade presente, a vida presente.
Cantarei a soberania do “si-mesmo” e do outro, não cantarei a liberdade porque ela não existe, existe apenas o medo da escravidão, das correntes e algemas, o medo grande dos vales, dos abismos. Cantarei o medo da autenticidade, a insegurança da soberania.
Se perguntas sem respostas devam ser alteradas, adulteradas, que faço, então, com as interrogações que persistem em ecoar? Ouso na resposta, mesmo sabendo do erro, do engano, o fácil de entendimento e de vida nem sempre convence por não deixar questionamentos complexos e herméticos. Apesar da ironia do erro e da angustiante certeza desse estágio de limitações, distribuo um segredo como quem ama ou deseja o verbo amar, aprendendo novas palavras e tornando outras mais profundas.
Impõe-se egoísta o mistério das palavras não ditas e da não-palavra inexpressa. Deveria, então, mesmo para me divertir um pouco, buscar esquecer o que não desejo lembrar, louvar a ressurreição de um quotidiano sem asco; renovar o sorriso indiferente, amarelo, e ignorar a humanidade além da forma em vida?
Por que iria responder a esse questionamento, a esse sentimento que, tomando-me por inteiro, deixou-me seus passos e traços, sua felicidade e sua dor? Sonhar com sonho, sonhar em sonho, sonhar sem sonho. A lei é sonhar.
O medo de responder viu só um fio de luz entre a vaidade arraigada e o cheiro de flores cujos nomes não me é dado saber. Não faço sucumbir a palavra ao fosse onde enterraram a carne.
O que gostaria de sublinhar é a circunstância de que essa nova nuance nasce do próprio espírito dos adágios, afetos propriamente ativos, como a sede de conhecimento, a fome de sabedoria, que, desde milênios e séculos, acompanham o homem, e outros nesta linha de pensamento, nesta imagem das águas.
Que adianta dizer? Que adianta pensar estas coisas? Nenhum outro ser existe mais intensamente ligado às águas que seguem o rio sem margens, sem pressa, e seu sorriso, como sua fala, como sua presença inteira, é uma continuidade destinada ao encontro, ao que lhe é vocacionado.
Confesso que tenho medo de que as palavras me faltem, e não possa mergulhar um pouco mais. Ah, é verdade que me acho muito longe do que fora, mas para mim ainda existe o mesmo secreto desejo de saciar a sede de conhecimento.
Debato-me, o coração me vem aos lábios: que é válido, que é invulnerável às águas do tempo, qual o sentimento que não se esgota e não se ultraja? Refaço todos estes questionamentos, repiso em vão essas todas teclas. Sinto-me mudo, difícil, o olhar desviado para águas que vão longe. O longe é apenas sentir-me como se fosse apenas um nome, soprado há muito na vastidão de um jardim que não existe mais. Um nome, como a folha que cai, sem o eco de minhas palavras. 
Ah, e isto é o que me abala e me consome: imaginar-me distanciado, sem um olhar de piedade para o que me constitui; imaginar-me no meu silêncio, completamente esquecido de sonhos e utopias, dos caminhos do verbo amar.


(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE ABRIL DE 2017)🏆

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