**LETRAS DE INFINITUDE RE-CRIADA** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
O equivoco supremo é crer que algo inventamos, quando em verdade o que
fazemos é continuar ou simplesmente copiamos. Tanta gente pasma ou vocifera
diante de pecados, sem querer ver que outros iguais pecaram, sem se dignarem a
olhar para eles como coisas bem naturais, humanas, e ainda outros estão
pecando, por várias outras terras pecadoras. Pecados são semelhantes a notícias
ruins: encontram-se por todos os cantos desse mundo sem fronteiras e cancelas,
andam em grandes velocidades, lugar algum pode ficar sem eles, são inerentes à
vida, sua natureza, condição, instintos, e tudo o que se desejar imaginar,
elucubrar.
Andamos em boa companhia. Não nos hão de lapidar por atos que são antes
efeito de uma epidemia do tempo. Andamos na companhia da luxúria, da inveja, da
gula; andamos na companhia da ladroagem deslavada dos políticos, da cobiça das
mulheres alheias, de matar os outros sem causas ou motivos. Ou lapidem-nos –
como será possível diante de tantas epidemias de nosso tempo? -, mas no sentido
em que se lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da espécie.
Neste ponto, força é confessar que ainda há por aqui impurezas e defeitos
graves. Há inépcia, por exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são
inadvertências.
Todos os juízos sobre o valor da vida se desenvolveram ilogicamente, e
portanto são injustos. A inexatidão do juízo está primeiramente no modo de se
apresentar o material, isto é, muito incompleto, em segundo lugar no fato de
que cada pedaço do material também resulta de um conhecimento inexato, e isto
com absoluta necessidade. Nenhuma experiência relativa a alguém, ainda que ele
esteja muito próximo de nós, pode ser completa a ponto de termos um direito
lógico a uma avaliação total dessa pessoa; todas as avaliações são precipitadas
e têm que sê-lo. Entre as coisas que podem me levar ao desespero supremo está o
conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce
muita coisa boa. Apenas os homens sobremodo ingênuos podem acreditar que a
natureza humana pode ser trans-formada numa natureza puramente lógica. Mesmo o
homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é,
de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.
O que mais encanta na humanidade, deixa-me em estado de êxtase? É a
perfeição. Há uma quantidade incontável de conflito de lealdades de por baixo
do sol. O concerto de louvores entre homens pode dizer-se que é já música
clássica. A ópera de proselitismo entre as autoridades pode dizer-se que é já
peça de teatro satírico. O teatro das hipocrisias entre os homens pode dizer-se
que é já cântico dos cânticos. A maledicência, que foi antigamente uma das
pestes mais perniciosas da terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis, a
romances arcaicos. A dedicação, a generosidade, a justiça, a fidelidade, a
bondade, a lealdade, a sinceridade, andam a rodo, jamais se viu tanta numa só
década de início de século, como aquelas moedas de ouro com que o herói do
grande e inigualável Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de El-Dorado.
Se vivemos próximos demais delas, de uma pessoa em cujo íntimo elas habitam
viçosas e frescas, é como se repetidamente tocássemos uma boa gravura com os
dedos nus: um dia teremos nas mãos um sujo pedaço de papel, o in-verso de todas
elas, e nada além disso. Também a alma de uma pessoa, ao ser continuamente
tocada, acaba se desgastando; ao menos assim ela nos parece afinal – nós jamais
vemos seu desenho e sua beleza originais. – Sempre se perde no relacionamento
íntimo com pessoas desta índole, dedicadas, generosas, justas, fiéis, boas,
leais; às vezes, perdemos a pérola da própria vida. Os contemporâneos costumam
relevar muitos equívocos, enganos, erros, tolices, hipocrisias, e mesmo atos de
grossa injustiça dos seus grandes homens, de suas personalidades, de suas
autoridades, de seus artistas, se encontram alguém que, como verdadeiro animal
de sacrifício, possam maltratar e abater para aliviar os sentimentos.
Bem que eu amaria, sentir-me-ia feliz e exultante, se pudesse dispensar
a organização social. Contudo, por mais que não deseje, sinta náusea dela, é
prudente e inteligente conservá-la por algum tempo, como um recreio útil. A
invenção de crimes, para serem publicados à maneira de romances, vale bem o
dinheiro que se gasta com a segurança e a justiça públicas. O torneio das
palavras, a que dá lugar entre advogados, constitui excelente escola de
eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de
aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há alguns anos, enganam-se nas
respostas, e mandam um réu para ver o sol nascer quadrado, ao invés de o
devolverem à família; mas, como são simples ensaios, esse mesmo erro é
benefício, para tirar aos homens alguma pontinha de orgulho de sapiência que
porventura lhes haja ficado.
Todo homem tem o seu preço, dependendo da necessidade, o olho da cara,
para se divertir, por poucos tostões se vendem – isso não é verdadeiro. Mas
para cada um pode haver uma isca que tem de morder. É assim que, para ganhar
muitas pessoas para uma causa, basta que se lhe dê o brilho da filantropia, da
nobreza, da caridade, da abnegação – e a que causa não se poderia dá-lo? – São
os doces e guloseimas de sua alma; outras pessoas têm outros.
Não negligencio que um pouco de filosofia possa ter entrada nesta
coluna, contanto que seja leve e ridente. As sensações também podem ser
contadas, se não cansarem muito pela extensão ou pela matéria; para não ir mais
longe, o que se deu comigo, por ocasião da posse, na Câmara Municipal.
Terça-feira, quando ali cheguei, já achei mais convidados que vereadores e
oradores, e mais pulmões que ar respirável. Na entrada da sala das sessões,
enfrente à entrada do gabinete do presidente, muitos senhores e senhoras iam
invadindo o lugar, sentando-se nas cadeiras. Daí a pouco, alguns vereadores e mesmo
algumas prosélitos do prefeito ofereciam às senhoras as suas cadeiras, e todos
aqueles vestidos claros vieram alternar com as casacas pretas dos políticos.
Quando isto se deu, tive uma visão do passado – eu não sei mesmo explicar como
é que sempre tenho visões quando vejo políticos reunidos para sessões, reuniões
-, uma daquelas visões chamadas imperiais (duas por ano), em que o regimento
nunca perdia os seus direitos. Tudo era medido, regrado e solitário. Faltava
agora tudo, até a figura do porteiro, que nesses dias de solenidades mais que
pomposas calçava as meias brancas e os sapatos de fivela, enfiava os calções, e
punha aos ombros a capa. Os vereadores, como têm seus ternos especiais, vinham
todos com eles, exceto algum padre, que trazia a batina da igreja. Se o
vereador João Castanho, quem, por ser honesto, incorruptível, sofreu todas as
pressões, não conseguiram destituí-lo do cargo, conseguiram-lhe um enfarto
fulminante devido a todas as pressões sofridas, se ressuscitasse,
compreenderia, ao aspecto da sala, que as instituições são outras, tão outras
como provavelmente a sua cadeira. Aquela gente numerosa, rumorosa e mesclada
esperava alguém, que não era o presidente, nem o grande orador Virgulino
Pontes. Com efeito, eu amo a regra e dou pasto à ordem. Nos atos públicos
também; aquela mistura de damas e cavallheiros, de legisladores e convidados,
não das instituições, mas do momento, exprimia um “estado de alma” popular. Não
seria propriamente um efeito da arte, concordo, admito, consinto que assim seja,
e sim da natureza; mas o que é a natureza senão uma arte anterior?
Quando bons amigos elogiam um político talentoso nas tramóias e
vigarices, ele com freqüência ficará alegre por cortesia e benevolência, mas,
em verdade, isso lhe é indiferente. Sua autêntica natureza fica inerte diante
disso, e não é possível movê-lo um passo para fora do sol ou da sombra em que
está; mas as pessoas desejam causar alegria mediante o elogio, e significaria
magoá-las não se alegrar com ele. É indício de completa falta de nobreza alguém
preferir viver na dependência dos favores e benefícios políticos, à custa dos
cofres públicos, apenas para não ter que trabalhar, e geralmente com secreta
amargura em relação àqueles de quem depende. Parece risível esta minha
deferência, mas pensando bem tal mentalidade é muito freqüente nos homens, e
também muito mais perdoável, isto por razões históricas, infelizmente ninguém
pode entender porque não conhece tais razões. Não sou quem as vai dizer. Deixo
para os leitores a investigação percuciente – quanto a rirem ou verterem
lágrimas, isto é com eles.
A idéia que tive naquela terça-feira, quando cheguei à Câmara Municipal,
em parte se pode comparar ao chapéu escovado de encontro ao pelo; mas será
culpa da escova ou do chapéu? Cuido que do chapéu. O dia corria fresco. A noite
passada foi fresquíssima. As estrelas fulguravam extraordinariamente, e se o
meu funcionário na redação tem razão, foram elas que me influíram o pensamento.
Não há razão para amiudar as votações de leis, fazê-las algumas vezes
semestrais, bimestrais, mensais, quinzenais, anuais, e, tal seja a pouquidade
do cargo, semanais. O espírito público ficará descolado; a opinião será
regulada pelos lucros, e dir-se-á que os princípios de um partido nos últimos
meses têm sido favorecidos pela Fortuna que os princípios adversos. Que mal há
nisso? Os antigos não se regeram pela Fortuna? Gregos e romanos, homens que
valeram alguma cousa, confiavam a essa deusa o governo da República. Um deles
(não me lembra quem) dizia que três poderes governam o mundo: Prudência, Força
e Fortuna. Não podendo eliminar esta, regulemo-la, que é bem prudente e
inteligente.
O interesse público de conhecer os projetos será enorme. Haverá
palpites, pedir-se-ão palpites, o povo sabe ser palpiteiro, falou em palpite é
com ele mesmo; far-se-á até, se for mister, uma legião de adivinhos, incumbidos
de segredar aos cidadãos as leis prováveis ou certas que serão votadas.
Se uma situação crítica (como os vícios de uma administração, ou
corrupção e favoritismo em entidades políticas ou culturais) é descrita de
forma bastante exagerada, a descrição certamente perde efeito junto aos
perspicazes, mas age com tanto mais força sobre os não-perspicazes (que teriam
permanecido indiferentes, no caso de uma exposição cuidadosa e moderada).
Os males não são gerais, mas são sobremodo grandes, quase inconcebíveis
de todo. Há eleições boas e pacíficas, mas a violência, a corrupção e a fraude
inutilizam em algumas partes as leis e os esforços leais dos políticos. Votos
vendidos, votos inventados, votos destruídos, é difícil alcançar que todas as
votações sejam seguras e puras. Para a violência havia aqui em nossa comunidade
uma classe de homens, felizmente extinta, a que chamavam de “capangas”. Eram
esbirros particulares, assalariados para amedrontar os eleitores e, quando
fosse preciso, quebrar as urnas e as cabeças. Às vezes quebravam só as cabeças
e metiam nas urnas maços de cédulas. Estas cédulas eram depois apuradas com as
outras, pela razão especiosa de que mais valia atribuir a um candidato algum
pequeno salto de votos que tirar-lhe os que deveras lhe foram dados pela
vontade soberana do país. A corrupção era menor que a fraude; mas a fraude
tinha todas as formas. Enfim, muitos eleitores, tomados de susto ou de
descrença, não acudiam às urnas. O tempo dos capangas acabou, felizmente. Mas
agora surgiu uma outra classe não de homens, mas de políticos, chamam-lhe de
“Lex - éticos”, são aqueles que ameaçam os correligionários de lhes denunciar
as faltas de decoro político, as corrupções atrás do pano, se eles não votarem
a favor de suas leis, Enfim, muitos políticos, tomados de medo, de tremedeiras,
de virem seus nomes na boca do povo, risco de perderem o poder, usufruir os
salários gordos, não querem nem saber se o povo vai ser prejudicado, votam na
lei, o resto que se dane, o importante mesmo é estarem livres das denúncias, do
nome sujo na praça.
Dissera antes que a humanidade me encanta, o que me encanta nela é a
perfeição.
Como, na perfeição, as dimensões sensíveis dos valores e virtudes estão
bem organizadas, em comunhão plena, geralmente o homem perfeito é aquele que
jamais pecou, nunca cometeu qualquer deslize de caráter e personalidade, só
praticou o bem, seguiu à risca os Dez Mandamentos, louvou os dogmas do
cristianismo, não há modo de me não sentir encantado com a humanidade.
Diante de tudo o que é perfeito, diante de todas as perfeições dos
homens, estamos acostumados – juro por Deus que eu mais que todos os homens de
todos os tempos – a omitir a questão do vir a ser desfrutar sua presença como
se aquilo houvesse desabrochado, tivesse brotado magicamente do chão. Acredito
estejamos os homens sob o efeito de um sentimento mitológico arcaico, sob o
encantamento de uma sensação lendária erudita. Por um triz sentimentos que
certa manhã um deus, por brincadeira ingênua ou por sarcasmo deliberado, Zeus
era mestre nesta brincadeira, construiu sua morada com blocos imensos, ou que
subitamente uma alma encontrou por encanto numa pedra, e agora deseja falar por
seu intermédio.
Sei que a minha obra só tem efeito pleno quando suscita a crença numa
improvisação - que improvisação melhor que me encantar com a perfeição da
humanidade, quando é a imperfeição e as calhordices de todas as laias e
estirpes que imperam -, numa miraculosa instantaneidade da gênese, e assim
ajudo essa ilusão e introduzo na arte, no começo da criação, os elementos de
inquietação entusiástica, de desordem que tateia ás cegas, de sonho atento,
como artifícios enganosos para dis-por a alma do espectador ou ouvinte de forma
que ela creia no brotar repentino do perfeito.
Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em
perfeitos e escravos dos pecados; aquele que não tem dois terços do dia para
re-fletir sobre as calhordices dos políticos é escravo de seus interesses e
ideologias, não importa que seu nome seja um gostinho de apetitosa feijoada no
paladar do povo.
Entre as correções que necessitamos fazer no caráter da humanidade está
fortalecer em grande medida o elemento contemplativo. Mas desde já o indivíduo
que é perfeito e constante de cabeça e de coração tem o direito inalienável de
acreditar que possui não apenas um bom temperamento, mas uma virtude de
utilidade geral e que, ao preservar esta virtude, está mesmo real-izando uma
tarefa superior, não importando se árdua ou não, a arduicidade fica a critério
das línguas com suas diferenças de pronúncia e sonoridade, a não-arduicidade
fica a critério dos princípios e dogmas que imperam na cretinice da
modernidade.
Falar de perfeição, quando sou o mais imperfeito dos homens, se não é
chamar a atenção para as letras criativas, é justificar as minhas
calhordices...
**RIO DE JANEIRO, 07 DE ABRIL DE 2017)
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