**ESBOÇO DE UMA VISÃO DA MENIPÉIA EM DOSTOIÉVSKI - EM ESPÍRITO SUBTERRÂNEO, TESE, MANOEL FERREIRA NETO**
As fontes européias da menipéia em Dostoievski são
inúmeras e heterogêneas, as quais revelam a riqueza e a diversidade da
menipéia. Ele conhecia, provavelmente, a menipéia polêmico-literária de Goethe,
Deuses, Heróis e Wieland. Conhecia, tudo indica, os “diálogos dos mortos” de
Fénelon e Fontenelle (Dostoïévski foi excelente conhecedor da literatura
francesa).
A particularidade mais importante do gênero da
menipéia consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura
são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente
filosófico-ideológico, qual seja, o de recriar situações extraordinárias para
provocar e experimentar uma idéia filosófica; uma palavra, uma verdade
materializada na imagem do sábio que procura essa verdade.
A menipéia se caracteriza por um amplo emprego dos
gêneros intercalados: as novelas, as cartas, discursos oratórios, simpósios,
etc., e pela fusão dos discursos da prosa e do verso.
Para compreender as tradições do gênero em
Dostoïévski, são essencialmente importantes as menipéias de Diderot, livres
pela forma externa, porém típicas pela essência do gênero. Mas o tom e o estilo
da narração em Diderot (às vezes no espírito da literatura erótica do século
XVIII) diferem de Dostoïévski, evidentemente. Em O sobrinho de Rameau (em
essência, também uma menipéia, mas sem o elemento fantástico, o motivo das
confissões extremamente francas, sem qualquer indício de arrependimento, está
em consonância com Bobok).
Por sua profundidade e ousadia, Bobok é uma das
mais grandiosas menipéias em toda a literatura universal. São característicos a
imagem do narrador e o tom da sua narração. O narrador encontra-se no limiar da
loucura. Afora isto, porém, ele não é um homem comum como todos, ou seja, que
se desviou da norma geral, do curso normal da vida, ou melhor, temos diante de
nós uma nova variedade do “homem do subsolo”. Seu tom é vacilante, ambíguo, com
ambivalência abafadas e elementos de bufonaria satânica (como nos diabos dos
mistérios).
No início do conto há um juízo sobre um tema típico
da menipéia carnavalizada, isto é, o juízo acerca da relatividade e da
ambivalência da razão e da loucura, da inteligência e da tolice. Em seguida vem
a descrição de um cemitério e de cerimônias fúnebres.
“Um talento tão original, dizia-se... e eis no que
resultou por fim... aliás há muito tempo era de se prever...” ainda assim, não
falta uma certa impostura; se se considerar do ponto de vista da arte pura,
pode-se mesmo aplaudir. É assim que, de repente, os outros se tornam duas vezes
mais inteligentes. Todavia, se é fácil entre nós fazer perder a razão, não há
nenhum exemplo de que a tenham inculcado...
O mais inteligente dos homens é, na minha opinião,
aquêle que se trata de imbecil ao menos uma vez por mês, e já ninguém hoje é
capaz disso! Outrora, a rigor, um imbecil se convencia ao menos uma vez no ano
de não ser senão um imbecil, no presente – na-da, na-da, está acabado. Foram
tão bem embaralhadas as cartas que o homem inteligente não se distingue mais do
imbecil. Fêz-se isso de propósito .
Lancei um olhar para as sepulturas: era ignóbil.
Água, e que água! Tôda verde... e, meu Deus, sim, a todo instante o coveiro remexia,
para as esvaziarr. Saí, ainda antes de terminada a cerimônia, e perambulei do
outro lado da grade. Pertinho há um asilo; um pouco mais longe, um restaurante.
Não é mau, esse restaurantezinho: comi ali um pouco e deixei o resto. Não
tardou muito a se encher de gente que tinha assistido às exéquias. Notei muita
animação e alegria comunicativa."
É através da literatura cristã antiga (isto é,
através do Evangelho, do Apocalipse, das Vidas dos Santos e outras) que
Dostoievski está vinculado da maneira mais direta e estreita às modalidades da
menipéia antiga. Ele esteve indiscutivelmente a par dos protótipos clássicos da
menipéia antiga. É bastante provável que tenha conhecido as menipéias de
Luciano, Menippo, ou uma viagem pelo reino de além-túmulo ou Diálogos no reino
dos mortos (grupo de pequenas sátiras dialogadas). Nessas obras, aparecem
diversos tipos de comportamento dos mortos no reino de além-túmulo, ou seja, no
inferno carnavalizado. É necessário dizer que Luciano – o Voltaire da
Antiguidade – foi amplamente conhecido na Rússia a partir do século XVIII e
suscitou inúmeras imitações, tendo a situação-gênero do “encontro no mundo de
além-túmulo” se convertida numa constante na literatura e até em exercícios
escolar.
É provável que Dostoievski conhecesse também a
menipéia de Sêneca, Apdokyntosys..., pois encontramos nele três momentos
consonantes com essa sátira: 1) é possível que a “alegria sincera” dos
acompanhantes do enterro em Dostoievski tenha sido inspirada por um episódio de
Sêneca: ao passar pela Terra em vôo do Olimpo para o inferno, Cláudio encontra
na Terra seus próprios funerais e se eonvence de que todos os acompanhantes do
enterro estão muito alegres (à exceção dos chicaneiros); 2) o jogo de cartas no
vazio, “de memória” talvez esteja inspirado no jogo de dados de Cláudio no
inferno, este também no vazio (os dados rolam antes de serem lançados); 3) a
descoroação naturalista da morte em Dostoievski lembra a representação
naturalista ainda mais grosseira da morte de Cláudio, que morre (entrega a
alma) no momento em que está evacuando.
(**RIO DE JANEIRO**, 11 DE ABRIL DE 2017)
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