ÉBRIO DE GRANDES PALAVRADAS - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
Estou osso nos últimos dias. Explico isto a vocês leitores, que até o
presente momento nada leram cujo início tenha sido algo semelhante, para que
entendam o espírito da coisa, antes que a imaginação fértil, muitíssimo
peculiar a vocês, não lhes sussurre nos ouvidos que minha carne escafedeu-se,
restaram-me os ossos, só eles andam pelas ruas sob o olhar espantado de todos.
Sou agora um esqueleto ambulante.
Nada disso. Foram as palavras que se escafederam, há muito estou
convencido de que meu corpo tornou-se palavras, são elas que cobrem os ossos. É
que nos últimos dias o que mais está faltando é inspiração, matéria para
continuar a dirigir-lhes a palavra nas manhãs de todos os dias,
despertando-lhes para o olhar de esguelha ao quotidiano das pessoas, seus ridículos,
pitis, achaques, comportamentos excêntricos, seriedades, compromissos,
responsabilidades, relações íntimas, invejas, ciúmes, despeitos, ódios,
preconceitos, discriminações, alienações, opiniões chinfrins, com efeito
saberão encontrar risos e gargalhadas às pencas, se não cuidarem do espírito
crítico, nada farão senão rir de tudo, da vida, do mundo, e o resto ficará para
quando não houver mais motivo de riso, tudo sofreu grandes transformações,
nunca terá fim, pois o ser humano por natureza e condição é ridículo, imbecil,
idiota, e nada mais vocês farão na vida senão rir, rir, rir, o que é bom
demais, quem ri muito nunca perde a jovialidade, jamais envelhece, não terá pés
de galinha no canto dos olhos, rugas no rosto. Ontem quase cheguei ao desespero,
nem pensar estava conseguindo, com o pensamento de que a minha fonte havia
secado, não mais escreveria palavra sequer, a minha ebriedade de grandes
palavradas havia terminado, restara-me a lucidez insofismável - o que iria
fazer dela? Morreria de angústia, tristeza, medo, quem não encontra riso nas
coisas do mundo e da vida termina varrido de pedra, o real é indecente e
imoral, a realidade, coisa de ensandecido.
Larguei tudo. Era sair para espairecer um pouco as idéias, livrar-me da
angústia que é ficar sem palavra, sem registrá-la na página branca de papel, da
solidão que é não ter a atenção de vocês leitores, de não sentir a presença de
vocês todos no meu escritório, de não ser ad-mirado e louvado por vocês. Saí de
casa. Andava sem rumo e destino, entrando e saindo de ruas, quando, tomando
água num mercadinho na Soares dos Santos, dois quarteirões antes do Hospital
Imaculada Conceição, alguém me dissera que na Câmara Municipal entraria em
discussão o projeto do vereador Pierre Callordre, sobre higiene. Olhei-o de
soslaio, como quem estava dizendo que estava tirando sarro de minha cara,
estava deliberadamente me gozando, segurando a gargalhada que estava bem
preparada. Pierre Callordre não tem a menor higiene, o colarinho da camisa está
sempre sujo, as roupas mal engomadas, camisas faltando botão, aparecendo sua
barriga branca e gorda. Dizem que é preciso que a mulher ameace-lhe de dar nele
de vassoura para tomar banho pelo menos uma vez na semana. Odeia tomar banho.
Fosse isso, tem um mau hálito crônico, remela nos olhos. Em verdade, água para
ele é só para tomar, matar-lhe a sede; quando diz a ser ela objeto de limpeza
corporal, corre dela às léguas. E agora haver feito projeto sobre higiene.
Estar por entrar em discussão na Câmara Municipal. Quê absurdo! Ele é que
estava precisando cuidar de sua higiene pessoal. Em silêncio, perguntei-me que
perfume iria sugerir às pessoas usarem em seu projeto, pois que toma banho de
perfume para disfarçar o odor do corpo, e o odor é insuportável, mistura de
perfume e suor do corpo.
Explicou-me a pessoa que me dava a notícia que vem Callordre pedindo com
insistência ao presidente e aos vereadores para que o projeto entre em
discussão, e só anteontem a permissão fora dada, estava ele exultante. A Câmara
Municipal é a instituição que dirige os serviços da nossa velha e boa cidade;
fora sempre objeto de censuras, às vezes com razão, outras sem ela, como aliás
acontece a todas as instituições humanas. As censuras têm suas razões, pois que
os projetos parecem ter sido elaborados por homens sem qualquer noção das
coisas, projetos que até o diabo se admira e jura por todos os seus demônios
que não receberá tais homens no inferno, a presença deles é um verdadeiro
acinte ao mal perene e imortal. E tais projetos são votados por unanimidade
pelos prosélitos e opositores, e é o povo que sofre na carne e ossos as
conseqüências de leis estapafúrdias.
Se Callordre não resolve totalmente a questão higiênica de nosso povo,
nem a isso se propõe, pode muito bem resolvê-la em parte. Não entro no mérito,
exame de seus diversos artigos, basta-me o primeiro, que me citou o informante
de cor e salteado. Aliás, se eu houvesse chegado cinco minutos, ter-nos-íamos
encontrado, estava ele tomando um pingado, café com leite, e comentando sobre o
seu projeto com os clientes do restaurante. O primeiro artigo estabelece
concurso para a nomeação dos comissários de higiene, que se chamarão de ora
avante inspetores sanitários. Aprovados, serão incumbidos de visitar as casas
de nossa cidade para saberem quantas vezes as famílias tomam banho por dia, se
trocam as roupas todos os dias, que qualidade de perfume usam, se as roupas
sujas são lavadas todas as semanas pela lavadeira, se lavam o rosto todas as
manhãs, se escovam os dentes de manhã, depois de todas as refeições. Tudo isso
será anotado. Sairá um manual de higiene que será distribuído a todas as
famílias.
É discutível a idéia do concurso. Não me parece claro que melhore o
serviço, e pode não passar de simples ilusão. E se os comissários chegam à
conclusão de que as famílias não têm qualquer hábito de higiene, são pessoas em
absoluto largadas, não dão a mínima para isto de higiene pessoal, o manual irá
resolver por si só? Não acredito. O que será feito? Aumentará o contingente da
polícia militar para obrigar as famílias a tomarem banho todos os dias, lavar o
rosto pela manhã, andarem limpos, roupas bem engomadas, escovar os dentes; quem
não quiser obedecer, será levado à força à cadeia pública e obrigados a tomar
banho, será preso por desrespeito à lei de higiene pessoal projetada por
Callordre. O artigo, porém, dispõe, como acima ficou dito, que os comissários
de higiene chamem de ora avante inspetores sanitários, e essa troca de um nome
para outro é meio caminho andado para a solução. Os nomes velhos ou gastos pelo
uso desenfreado tornam caducas as instituições. O que mais se vê trocando é
nome disto e daquilo, os nomes mudam, a realidade continua a mesma, e vai
piorando ao longo do tempo, até que seja preciso mudar de novo. Por que ao
invés de trocarem os nomes disto ou daquilo não trocam as autoridades, tirem
das instituições os jegues, os ratos, renovando-as, inovando-as com homens e
indivíduos de portes e condutas, cidadãos de caráter e honradez, pessoas
honestas e dignas, enfim uma limpeza geral em todos os âmbitos, inteligentes,
capazes, eficientes. Não se melhora verdadeiramente um serviço deixando o mesmo
nome aos seus oficiais. É do Evangelho, quem não sabe ou não acredite,
convido-lhe a ler a Bíblia, que não se põe remendo novo em pano velho, comum
até tirar um dos bolsos traseiros, ou ambos, para remendar a calça velha. O
pano aqui, tendo cuidado de metaforizar-lhe, é a denominação. A própria Câmara
Municipal tem em si um exemplo do que levo dito. Câmara Municipal não é mau
nome, interessante até, tem até um ar democrático; mas está puído. O nome criou
a personagem da coisa, e a má fama levou consigo a obra e o título. Conselho
Municipal, sendo nome diverso, exprime a mesma idéia democrática, é bem e é
novo. Talvez seja até inteligente mudar de prédio, a forma de um navio
estacionado no porto, inerte, olhando o dia e as noites, recebendo os efeitos
do sol escaldante e a chuvas, construir um outro que tenha a forma de um
castelo de cristal. A ineficiência, incompetência, a inépcia, os espíritos
ridículos e mesquinhos que ali estiveram deixaram o ambiente carregado, o ar
mórbido, cheirando a trastices, caguinchices, nada se lhes pode modificar o
odor.
Por exemplo, quem ignora a vida nova que trouxe ao ensino a troca
daquela sigla CPC, que era Colégio da Providência e Caridade, para Colégio para
Professores Capacitados? Concordo que o aspecto científico da segunda forma
tenha parte no resultado, os alunos estão se desenvolvendo muito, aprendendo
muito não apenas as teorias, mas as práticas do conhecimento, aprendendo
verdadeiramente a cultura que enobrece e engrandece.
Mas voltemos aos comissários de higiene, futuros inspetores sanitários,
como sugere o vereador Callordre no seu projeto, que entrará em breve em
discussão no Conselho Municipal, repito que o serviço melhorará muito com essa
alteração do título, e não é pouco. Mister é que, sem dizê-lo na lei, nem no
parecer, nem nos debates, fiquem todos combinados em alterar periodicamente o
título, desde que o serviço precise reforma. Não me compete lembrar outros, nem
me ocorre nenhum agora. Digo só que, passados mais seis ou sete títulos, não
será má política retornar ao primeiro. É a lei do eterno retorno que entra em
cena. Depois das pessoas terem assumido com radicalidade a higiene pessoal,
andando limpas, roupas engomadas, dentes brancos, olhos sem remela, cabelos
cortados, sapatos engraxados, perfumes de grife, seria interessante retornarem
à higiene mal cuidada. Os nomes têm, por vezes, a propriedade de criar pele
nova, só com o desuso ou descanso.
Comissário de higiene, que vai ser descalçado agora, desde que repouse
alguns anos, ficará com sola nova e tacão direito. Assim acontece aos meus
sapatos.
Andei por minutos a fio, pensando e repensando no projeto de Callordre,
elucubrando os seus resultados, os efeitos que causarão na opinião pública, no
bem que trará a todas as pessoas. Não cheguei a elogiar Callordre, elogios
antes de resultados reais e práticos são uma tremenda falta de senso, é esperar
o que irá acontecer, como será a higiene no futuro de nossa comunidade, podendo
assim emitir o meu parecer, as minhas conclusões; mas, enquanto isso não
acontece, vou pensando na mudança dos vereadores, do prédio.
Retornei a casa, sentindo-me com as idéias espairecidas, agradecendo a
Dorico Quezão pela informação do projeto do vereador que entrará em discussão,
proporcionou-me inspiração e matéria para outros bons dias aos meus leitores,
não sou mais osso somente, as palavras voltaram aos seus lugares devidos e
cobriram os ossos, posso andar por todos os cantos da cidade, ninguém me olhará
mais com o sorriso cínico de que sou um esqueleto ambulante.
(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE ABRIL DE 2017)
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