**MISTERIOSA POEIRA BRANCA E FRIA** - PINTURA: Graça Fontis/CRÔNICA: Manoel Ferreira Neto
Os primeiros sinais de que a tragédia se
aproximava, naquele estranho inverno, vieram do mar. Milhões de lulas
arrastaram até as praias arenosas, para morrerem no vento. Os animais cobriram
as areias brancas, como um funesto tapete de determinados suicidas.
Então, as aves levantaram vôo e abandonaram a
cidade, seguindo para o leste. Em seguida, cachorros, gatos, porcos e até o
gado fugiram na mesma direção, apesar das tentativas desesperadas das pessoas
de segurá-los. As galinhas se recusaram a abandonar a cidade, foram naquele
galinheiro que botaram os ovos, chocaram, deram a luz aos pintinhos; ali era o
lugar delas por todo o sempre. À tarde, cobras e minhocas começaram a sair da
terra, às centenas. “É terremoto que vem por aí”, comentou iludido o subprefeito
– um índio monumental que, na verdade, era a principal autoridade do lugar. Na
maioria dos municípios o subprefeito não tem a mínima voz ativa, o mandachuva é
o prefeito. Mas nesta cidade quem era o mandachuva é o subprefeito. Diferente
de Morro da Garça, ambos, prefeito e subprefeito são os mandachuvas da
comunidade.
À noite, a população inteira saiu às ruas, para ver
uma misteriosa poeira branca e fria, que flutuava na brisa fresca de um inverno
excepcionalmente rigoroso. Algo inusitado, excêntrico, diferente naquele lugar.
Estavam todos fascinados, porque jamais um habitante daquela modesta região
tropical, quente e úmida, estivera no exterior; ninguém dali, portanto,
conhecia a neve. Viram-na no cinema, na televisão, assistiram às tragédias que
a neve causara nalguns países, várias mortes. Assistiram às cenas do Natal,
tempo de inverno nalguns países. Sonharam com toda aquela beleza, desejaram
estar lá para sentirem de perto toda aquela poesia...
Pela madrugada, a cidade parecia sufocada por um
espesso lençol branco. Casas, ruas, árvores – tudo fora cuidadosamente caiado
pela estranha poeira gelada.
De repente, parou de nevar; e a temperatura, em
poucos minutos, caiu a oitenta graus abaixo de zero. O sub-prefeito vinha
arrastando seus imensos pés de índio andarilho, a caminho da casa do prefeito,
quando congelou. Não pôde saborear a carne assada que estava sendo servida no
aniversário do prefeito, tomar a branquinha para esquentar um pouco. Conversar
sobre os feitos e realizados da prefeitura, as várias obras de cunho social e
comunitário, os projetos que estão sendo concretizados com todo vigor do senhor
prefeito, cuja intenção outra não é senão trazer o progresso e o
desenvolvimento da cidade.
Parecia uma gigantesca estátua de gelo, os braços
musculosos abraçando o próprio corpo, os olhos sombrios agarrados na imensidão
esbranquiçada.
O prefeito congelou de cachimbo na boca, sentado em
seu escritório, em casa, diante do telefone: esperava uma chamada da capital.
Sua mulher morreu na cama, havia acabado de deitar-se, embrulhar-se em três
cobertores O dono do armazém congelou no quintal, quando apanhava madeira para
fazer uma fogueira. A galinha congelou-se no momento exato de bicar a barata
que atravessava o galinheiro, dando a ela oportunidade de ainda correr um pouco
antes de ser também congelada. Por que as baratas não chegam do outro lado do
galinheiro? Não pode ser apenas devido à existência da galinha ou do galo.
Existe uma outra razão? Quem sabe saga da espécie? Houve uma família que ficou
paralisada em volta da mesa de jantar. O frio absurdo petrificou a cidade
inteira, transformando pessoas em estátuas bizarras e eliminando completamente
a vida do lugar.
Um século depois, a cidade se transformara no mais
importante centro turístico do continente latino-americano. Além dos turistas,
vinham visitá-la antropólogos, sociólogos, historiadores, bioquímicos – e a
cidade de gelo era tema de diversos trabalhos de pesquisa, nos cursos de
pós-graduação. Transformara-se num símbolo quase vivo do passado. Junto às
águas tranqüilas do Atlântico, ela surgia como um enclave do século XX, em
pleno século XXI.
(**RIO DE JANEIRO**, 08 DE ABRIL DE 2017)
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