**O DIABO A VINTE E QUATRO...** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Aumento vinte e, nos quatro do diabo, multiplico
por cinco os mesmos quatro e somo mais quatro, isto para mostrar o altíssimo
nível de minha inteligência, com mais quatro no quociente intelectual seria
gênio, superando o maior de todos eles; também para mostrar que aprendi com
distinção e louvor com os professores as quatro operações, e com elas fiz a
vida, tornei-me imortal, encontro-me sentado numa das cadeiras do Olimpo dos
deuses, trocando dedos de prosa com Pitágoras, Arquimedes, Isaac Newton, etc., etc.
O dia estava esplêndido, dia de início de agosto,
sol magnífico, ar quente, sem contar as calças novas que mandei confeccionar na
Laurentina costureira, por sinal que eram amarelas, o chapéu coco preto, camisa
cor-de-rosa. A escolha do chapéu não foi uma ação indiferente, foi regida por
um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce ação
voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão
da liberdade existe arraigada aos compradores, e é mantida pelos chapeleiros
que, ao virem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, para usar no seu
primeiro de aula nalgum Instituto, ou fazer discurso na Tribuna da Câmara, ou
ministrar palestra sobre a metafísica de Aristóteles na Universidade, e sair
sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando um livremente elegante. O
princípio metafísico é este: o chapéu é a integração do homem, um prolongamento
da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o pode trocar sem
mutilação. É uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém. Ninguém
advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu escreva uma memória a este
respeito. Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o
homem do chapéu... Escolhi o chapéu coco para minha primeira aula, por ser de
nossa cultura desde tempos memoriais, e um professor sem chapéu não impõe
qualquer respeito aos alunos, eles precisam imaginar que ele serve para
conservar o conhecimento fresco sem interferência da luz do sol que, em nossa
comunidade, é bastante forte, se não houver cuidado é capaz de cozinhá-lo.
Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de
Jerusalém, estava indo lecionar, era minha primeira aula no Instituto. Piquei o
passo para que nenhum outro professor chegasse antes de mim à escola; ainda
assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram
bonitas. Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia de batalhão do Tiro
de Guerra, tambor à frente, rufando, estava ensaiando para a parada de Sete de
Setembro. Nunca pude ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido,
igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram
andando. Senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles,
carregando a pasta, os livros. Já disse: o dia estava lindo, estava saltitante
de felicidade, iria lecionar pela primeira vez na vida, e depois o tambor...
Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também
ao som do rufo, creio que catarolando alguma coisa: Rato na Casaca... Marchava
e pensava que os ratos egípcios, se pudessem saber que a verdade é imortal, o
homem é um breve momento, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a
fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. A ciência, como a guerra,
tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua
fraqueza, a superioridade mental e física dos filósofos eram outras tantas
vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de
saber efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava
distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo.
Cheguei no Instituto, estava batendo o sinal para os alunos entrarem na sala. A
calça amarela estava molhada de suor no meio das pernas. Curvelo que me
acompanhou até à sala para me apresentar à turma não percebeu que estava
andando de pernas abertas, estava assado. Fui apresentado com todas as honras
pelo digníssimo Curvelo, diretor. Sentei-me. Felizmente que os alunos não
podiam ver minhas calças molhadas de suor, pensariam outra coisa de mim, de
tanta emoção com estar numa sala de aula, fiz xixi nas calças.
Nem tolo nem bronco, não ando mordendo as vaidades,
arrancando-lhes pedaços a torto e a direito, cuspindo-lhes pelas avenidas e
ruas por não conseguir engoli-las, a garganta se fecha em atitude de nojo, o
estômago avisou-lhe com antecedência não estar poucochinho interessado em
embrulhar-se, não está em condições de corroê-las com seus ácidos. Seria tolo e
bronco, com direito a carteirinha, se mordesse as vaidades. Foi justamente com
elas que atingi, alcancei os vinte e quatro do diabo, e pude enfim ser o mais
difícil na história, ser homem – não foi fácil, tive de estar disposto a morrer
pelo conhecimento.
Criança, não podia ver professor, não importando a
disciplina que lecionava, parar o carro na porta da escola, tirar a sua pasta,
livros, trabalhos dos alunos, que ficava pálido e virava os olhos, não sabendo
como não lhes torcia as retinas, não lhes distendia os nervos. Não que a minha
vaidade fosse ser grande professor, sentir-me um deus, sentado à mesa, de
costas escrevendo no quadro, na sala dos professores na hora do intervalo,
assuntos de alto nível, pelas ruas da cidade, sendo apontado pelos transeuntes,
“aquele ali é professor, um dos grandes de nossa comunidade, vários alunos seus
hoje são engenheiros, políticos, advogados, cientistas, literatos...”, andar em
carro do ano, o riso aberto de orelha a orelha, almoçando em restaurantes
suntuosos, tomando Jack Daniel´s, usando ternos de grife, rodeado de amigos de
todos os naipes, dinheiro para jogar fora na carteira, para bancar jantares às
lindíssimas senhoritas encalhadas, às senhoras descasadas, divorciadas,
separadas, frustradas e fracassadas, às moçoilas sonhadoras. Não seria vaidade,
seria unicamente aparência, pois que professores vendem o almoço para comprar a
janta, usam roupas velhas e desbotadas, comem músculo, andam a pé, dizem ser o
símbolo máximo do conhecimento, e alguns da Língua Portuguesa conjugam verbos
com o pronome oblíquo, da matemática somam dois e dois e acham cinco, os
ângulos obtusos se encontram no infinito e comemoram a grande façanha com os
“tim-tins” da taça de champagne.
Para despertar nos alunos o espírito da Literatura,
falei-lhes sobre os bichos da terra, que os deuses puseram, da água e do ar a
essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais eram as
letras soltas do alfabeto; o homem era a sintaxe. A terra era grave como a íbis
pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias,
dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Esta era a minha
filosofia literária mais cara; esta era a que iria lecionar, a que deveriam
aprender com distinção, com este conhecimento seriam grandes personalidades das
letras
Durante os quatro anos em que servi de professor de
Literatura, trabalhei muito, fiz muitas palestras sobre a tuberculose,
alcoolismo dos românticos, não brilhantes, mas sólidas, cheias de fatos e
refletidos. Irritei-me mesmo: vivia rodeado de parasitas, puxa-sacos,
sanguessugas, o diabo a vinte e quatro. A ambição, despeito, ciúme, inveja
habitavam todos os que me cercavam, sentiam-se importantes ao meu lado, enfim
era inteligência incomum na Literatura, e eles por mais que enfiassem os miolos
nos estudos, pesquisas, estavam longe de tanto conhecimento, a minha presença
era-lhes alívio, paliativo de seus conhecimentos capengas, imperfeitos,
duvidosos, os desejos e vontades da imortalidade não se realizariam nunca, no
máximo seriam lembrados como “professores de meia tigela”.
Não mordi com prepotência a vaidade que me habitou
durante anos de ser professor, exemplo de conhecimento e sabedoria, foram
apenas quatro anos, enquanto esperava nova eleição para me candidatar outra vez
a vereador. Ser professor é vaidade das mais ridículas, conhecimento não dá
camisa a ninguém, não torna ninguém imortal. Criança é vaidosa. Jovem é
realista. Jovem, mordi com categoria a ambição que me habitou, e consegui
realizar, ser vereador, fabricar e criar leis inúmeras sempre em favor do povo,
dos miseráveis, aposentadoria para os mendigos, pensão para as mulheres
encalhadas, ajuda de custo para os esfomeados, consultas ginecológicas mensais
para as prostitutas, camisinhas para os viados pobres, pretos e da periferia.
Aquela dentada sem dó nem piedade, daquela que faz acordar a humanidade inteira
de seu sonho de injustiçada e discriminada, de seus sonhos de liberdade sem
limites e fronteiras.
No magistério, como já disse, devido aos
conhecimentos profundos da Literatura, fui cercado de sanguessugas, invejosos,
parasitas, puxa-sacos; como político, vereador, vivi rodeado de miseráveis,
prostitutas, viados, mendigos, o diabo a vinte e quatro, sendo objeto de
comentários de meus colegas, admiravam-se sobremodo como eu era capaz de
conviver com a reles da sociedade, alguns torciam o nariz, quando um mendigo
fedorento ia ao meu gabinete pedir um sapato velho, uma calça, dinheiro para
comer um salgadinho, tomar um café no botequim do Pedrinho, uma prostituta para
pedir ajuda para comprar batons, camisinhas, calcinhas, soutiens, uma roupa
mais digna para sentar-se na boate da rua José Bonifácio, chamar atenção dos
fregueses, viados pedindo conversar com os médicos para lhes fazer seios, os
coleguinhas estavam reclamando, estavam carentes demais precisando de peitos
suculentos para mamar. Nos plenários, só se via a reles presente, felizes,
alegres, contentes, estava ali defendendo de unhas e dentes os direitos deles,
fazendo leis que só beneficiavam a eles, e ninguém podia reclamar, pois estavam
na casa do povo, dos carentes e necessitados de justiça e reconhecimento. Pelas
ruas e avenidas, apontado por todos: “Lá vai o vereador dos viados, mendigos,
prostitutas... Meu Deus! Como pode? Ninguém tem mais votos que ele, enfim esta
laia é em grande número, oitenta por cento dos eleitores”.
Vivi principalmente de imagens, de frases
translatas, de efeito. Havia no meu cérebro certo furo, por onde o espírito da
ambição escorregava e caía no vácuo. Trago dentro de mim muitas óperas e
missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcanço exprimir e pôr
no papel. Creio que sou ateu, mas não afirmo. Rio pouco e discretamente. A vida
é pura e severa, mas o caráter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que só
faltou a mão do artista; nas coisas mínimas, mente com facilidade.
(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE MARÇO DE 2017)
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