**MISTÉRIO DA INTRUJICE** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
EPÍGRAFE:
"Todo sentimental é um cínico, e que o
sentimentalismo é, na verdade, apenas o feriado das repartições públicas do
cinismo."(Manoel Ferreira Neto)
Bons dias!
Um olhar de águia, sempre severo; altiva,
sobranceira. Teria vinte e sete, vinte e oito anos. Uma beleza como poucas
vezes é possível contemplar, vislumbrar. Não se tratava de uma beleza rebelde,
agressiva; também não significava que, olhando-a, tivesse algum medo, rejeição.
Era uma beleza adstringente, fria. Consideravam-na fria como um gelo e a sua
virtude, temível e inacessível, assustava toda a gente que se aproximava.
Aproximar-se dela só mesmo com o seu consentimento, assim mesmo após um exame
minucioso, calculista. E, antes, desse exame, somente olhares e observações de
atitudes e ações. Não havia homem que se aproximava dela, se houvesse decidido
o silêncio com alguém. Creio até que se o próprio Deus se mostrasse a ela,
estando à sua frente, sairia de seu silêncio.
No seu círculo, como diziam, não havia, como ela,
outro juiz tão implacável, tão inflexível, tão intransigente. Condenava não só
os vícios, mas as pequenas fraquezas de todos os homens, e isso sem apelo e sem
agravo. Não sou capaz de afirmar se endossava as boas ações, as atitudes
gloriosas, os comportamentos ilibados. Com efeito, uma simples manifestação de
modos e comportamentos estranhos era de imediato criticado, a língua ferina
punha-se em ação, e ao oponente não restava alternativa senão colocar o rabo de
por baixo das pernas, saindo, e se possível sem retorno à sua presença.
Reverenciavam-na. As moças mais orgulhosas e mais
tremendas pela sua virtude estimavam-na e procuravam ganhar-lhe as boas graças.
Fitava todas as pessoas com impassibilidade cruel. Os rapazes temiam-lhe a
opinião e as sentenças. Uma simples observação, uma referência passageira
bastava para destruir reputações. E afinal? Não havia mulher mais depravada do
que essa: tive a sorte de lhe merecer inteira confiança. Talvez “depravada” não
fosse o termo adequado, consciente, mais em verdade não existia mulher mais
estranha e estrangeira como aquela.
Por outras palavras, fui amante dela, em segredo.
As nossas entrevistas eram preparadas tão habilmente que nem sequer os amigos
tiveram a menor suspeita. Só a sua governanta estava iniciada na intriga;
podia-se confiar por completo nela, pois era cúmplice. Renata tinha tanta
volúpia que o próprio Marquês de Sade poderia ser seu discípulo. O prazer maior
de nosso relacionamento residia no mistério e na impudência da intrujice. A
maneira de meter a ridículo tudo o que ela pregava em público, o riso diabólico
e interior, o modo de calcar aos pés tudo o que é intangível, e isso
desmedidamente, levado até ao último excesso, até a um ponto em que o espírito
mais inflamado é incapaz de imaginar, constituía, na verdade, o maior gozo, o
prazer em absoluto divino, o que me fazia questionar sobremodo. Como podia
sentir um prazer divino com tanta frieza, com tanta intransigência? Algo divino
não tem estas dimensões e características, ao contrário.
Sim, Renata era o Diabo encarnado, mas oferecia uma
sedução irresistível, o que é sobremodo interessante, pois o nome já tem um
significado adverso, “renascida”. Obriga-me, então, a dizer que era um
renascimento do diabo, não só a sua encarnação. No ardor dos prazeres mais
intensos, ria de súbito como uma possessa, e eu, compreendendo o motivo desse
riso, ria-me também. O meu riso talvez fosse até mais escandaloso, pois no
fundo tinha eu vontade de ser um pouco como ela, em nada eu endossava o meu lar
interior. Rejeitava o homem sempre muito compassivo, misericordioso, humano,
sempre pronto a compreender e entender as arbitrariedades humanas. Se me olhava
ao espelho, via-me um perfeito imbecil, idiota. Se ouvia algum desagravo de
quem quer que fosse, calava-me, e no íntimo concordava. Ainda hoje,
relembrando-me, dá-me vontade de rir, embora haja decorrido tanto tempo.
Fátima, às vezes, comentava: “Não entendo você. Por que aceita tudo o que
pensam de você? Isto de não ser você o que penso, não ser eu o que pensa, fique
no seu cantinho, fico no meu, não passa de ser uma hipocrisia sem limites.
Creio que você deve mostrar o homem radical e intransigente que é. Não o fosse,
não estaria comigo”.
A minha personalidade, o meu eu. Tudo é para mim,
para mim é que foi criado o mundo. Ouça, bem se me afigura que ainda se pode
viver neste mundo. É a melhor das crenças, sem ela nem se pode viver, mesmo
mal: só restaria uma pessoa envenenar-se. Desde há muito que me libertei de
todos os laços, e até de todos os deveres. Obrigações, só se me derem algum
proveito... é claro que você não vê as coisas deste modo, tem entraves nos pés,
age como um cavalo que dá saltinhos, que marcha solene e pomposo pelas ruas de
pedras da cidade, um gosto depravado. Julga segundo o ideal, a virtude. Estou
mesmo preparado, pronto a admitir tudo o que quiser, mas o pior é eu estar
persuadido de que na base de todas as virtudes humanas se encontra o mais
profundo egoísmo, se encontra a mais pura hipocrisia e falsidade. E quanto mais
uma virtude for uma ação, mais egoísmo ela contém. E quanto mais se sustenta
uma sinceridade, fidelidade, lealdade, mais hipocrisia e farsa existem em todas
as ações. Não tenho ideais e não quero tê-los; nunca senti saudades de quem
quer que seja, de com quem tenha tido um relacionamento dos mais agradáveis,
dos mais espirituais. Creio até que nunca me relacionei comigo próprio, o mais
que possa ter havido é ter suportado a condição de existente, seguindo o caminho
deixando todo o resto para trás, sem dar a mínima atenção, enfim estaria nalgum
campo santo com uma cruz mostrando o nome, data de nascimento e de falecimento.
Aprecio a devassidão obscura e oculta, estranha, original, até mesmo um pouco
sórdida, para variar.
Bem sei que vivo numa sociedade frívola. Mas até ao
instante presente tenho uivado contra os lobos, finjo defendê-la tenazmente;
mas, se houvesse necessidade, oportunidade, seria o primeiro a abandoná-la.
Remorso é coisa que nunca senti. Aceito tudo, uma vez que não implique com o
meu bem-estar.
Estou persuadido de que me consideram um homem
cheio de perversões, talvez até um patife, como o são os maridos fiéis e leais,
os namoradinhos sensíveis, carinhosos, humanos, um monstro de vício e de
depravação. Vou-lhe, contudo, dizer algo. Se fosse possível (o que, dada a
natureza humana, jamais acontecerá), se fosse possível que todos nós
descobríssemos os nossos pensamentos íntimos, sem receio de revelar não só o
que não ousamos dizer aos melhores amigos, mas até o que receamos confessar a
nós mesmos, exalar-se-ia da terra tal pestilência que toda a gente ficaria
sufocada. Eis, aqui para nós, o motivo pelo qual as nossas convenções e as
nossas conveniências mundanas são tão preciosas. Possuem significado profundo,
não moral, não digo tanto, mas simplesmente preservador, confortável, o que
mais vale, pois a moralidade, no fundo, é a mesma coisa que o conforto, ou
melhor: foi criada unicamente para este fim, servir de conforto para os
sentimentos reais de inutilidade e capacidade.
E que mais é o viver nessa espécie de mundo, senão
uma ilusão entre dois nadas: o passado e o futuro? Dois nadas ininteligíveis,
intocáveis, obscuros, que fecham uma hipótese, chamada presente. Todo este nada
respira aniquilamento e tristeza; contudo, parece haver uma voz mágica e
sobrenatural, que, semelhante aos fogos-fátuos dos cemitérios, sobreerguem-se
trêmulos e duvidosos das ruínas.
Os astros, a terra, este quarto são uma realidade,
existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada
de tudo. Não me permito esquecer de lembrar-me de que todo sentimental é um
cínico, e que o sentimentalismo é, na verdade, apenas o feriado das repartições
públicas do cinismo.
(**RIO DE JANEIRO**, 06 DE MARÇO DE 2017)
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