PERERECA TUPINIQUIM - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons
dias!
Devo
de antemão às sorrelfas e revezes dizer que me não é sabido se o termo
“tupiniquim”, usado no gíria, significa, o seu sentido seja de pessoa
atoleimada, bocó, jacu – gíria é o tipo da coisa que de grupo para grupo, de
tribo para tribo, de região para região, muda de sentido. Tupiniquins era uma
tribo que habitava o litoral de Porto Seguro, Estado da Bahia, conforme o termo
dicionarizado. Já ouvira este vocábulo sendo usado na gíria, parecendo-me sim
que era pessoa bocó. Com certeza, aqui estarei usando este termo com este
sentido específico, se não o for, tanto melhor, terei criado outro para ele.
Não
saberia dizer se os bichos da tribo eram considerados no litoral de Porto
Seguro também tupiniquins, por serem nascidos lá, por exemplo, se o jegue era
tupiniquim, se o sapo era tupiniquim, se o peixe era tupiniquim, se a perereca
era tupiniquim. Imagine: o jegue por si só já é um animal atoleimado,
abestalhado, um jegue tupiniquim seria ainda mais atoleimado, abestalhado,
atravessaria todos os limites terrenos e contingentes do abestalhamento, até
acredito que em termos de nossa “última flor do Lácio” dizer de um jegue
tupiniquim seria um pleonasmo vicioso, como descer para baixo, subir para cima,
descer já significa ir para baixo, subir, ir para cima.
Na
natureza também acontecem coisas do arco da velha, não estão elas restritas
apenas ao ser humano, que por si só já é absurdo, por si só comete coisas
absurdas, risíveis, se for atoleimado o absurdo é bem maior, e nós os normais,
providos de razão e senso, que seguremos as nossas gargalhadas e risos.
Por
vezes, terminado o expediente na redação, aprecio tomar uma cerveja no botequim
ao lado do açougue de um amigo, Açougue Rocha, cujo nome não sei dizer, mas
digo “bar do gordo”, o dono ou garçom não sei dizer é um verdadeiro hipopótamo
de tão gordo, creio sofrer de obesidade mórbida. Encontro-me às vezes com um
conhecido, Paixão, que adora contar histórias, piadas, fábulas, que não são de
suas criações, são ouvidas de seus companheiros de botequins, memoriza, passa
para frente. Ontem, assim que chegara e sentara à sua mesa, dissera-me que iria
contar uma fábula. Não estava para piadas, estava precisando de renová-las, as
que conhecia já estavam velhas, todos já sabiam, não era papagaio para ficar
repetindo as coisas.
Para
quem não conhece o que é fábula, muitas vezes tendo ouvido falar dela,
conhecido algumas ou muitas, pois que Cristo contara inúmeras para o seu povo e
para os seus discípulos, a fábula é uma composição, quase sempre em verso, em
que se narra um fato cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção.
A
fábula que iria contar-me era da perereca tupiniquim. Tendo pronunciado isto,
dera uma daquelas suas risadas altissonantes, muito peculiares a ele, o que
achei muito interessante, pois que ele não costuma rir antes de contar as
coisas, só depois de contadas é que ri a bandeiras soltas. Seria uma fábula
interessante ou preparava-me para rir, porque ela não tinha graça nenhuma, era
tipo piada de americano, sem sal nem tempero, o riso surge somente devido ao
incólume besteirol.
Numa
mata, mata fechada, quase sendo impossível ao homem entrar nela, enfatizara
Paixão a mata, uma perereca preparava-se para comer uma mosca, a mosca a estava
incomodando muito, tinha de ser comida, embora não estivesse com fome naquele
momento, quando um macho, que observava a cena lhe dissera que não comesse a
mosca, esperasse que a abelha o fizesse, depois ela comeria a abelha. Ficaria
bem mais alimentada. A questão não era ser mais ou menos alimentada, não estava
com fome em verdade, apenas que a mosca a estava incomodando. A perereca assim
fez e, efetivamente, passados alguns segundos, a abelha comeu a mosca.
Felizmente estava livre do incômodo da mosca, poderia curtir o crepúsculo
daquele dia serena e tranquilamente. Mas ela se preparou, então, para comer a
abelha, uma fomezinha sorrateira lhe apareceu, mas o macho interrompeu
novamente.
De
novo, dissera à perereca que não comesse a abelha. Iria ficar presa na teia da
aranha e a aranha iria comê-la. A perereca comeria a aranha e ficaria mais bem
alimentada. Que espécie de amigo era o macho? Quis comer a mosca, aconselhou
não o fizesse, ouvira o conselho porque não estava com fome, mas a fome
apareceu, precisava saciá-la, e ele aconselhava não comesse a abelha. Por que não
queria que ela comesse? Haveria algum problema sério de digestão ou coisa
parecida? Se ela comesse a abelha ficaria bem alimentada, fora o que dissera
quando se preparava para comer a mosca. Se não comesse a abelha, esperasse que
a aranha o fizesse, seria mais bem alimentada. Por que a aranha iria saciar
mais a sua fome? Por que estaria o macho tão preocupado com o seu estômago, com
o saciamento de sua fome, com o seu prazer? Foram os questionamentos que fizera
ao macho, mas ele não teve respostas, talvez não as tenha querido dar, o que é
mais provável. Se a perereca não quisesse comer a aranha, argumentou o macho,
comesse a abelha, mas não reclamasse depois que a abelha não deu nem para
encher o buraco do dente, continuava com uma fome daquelas, daquelas fomes que
se visse João Gome o comeria sem pestanejar, como dizem: “Está com fome? Mata
João Gome e come!”, dizem que essa fala é dos kobus, pelo menos fora isto que
ouvira. A escolha era sua, fizesse o
que achasse melhor.
A
perereca decidiu que não, não iria comer a abelha, esperaria que a aranha o
fizesse, não estava mesmo com tanta fome. A perereca, de novo, esperou. A
abelha levantou vôo, caiu na teia da aranha, a aranha a comeu. A perereca
preparou-se para saltar sobre a aranha, salto preciso e definitivo, já o tinha
feito algumas vezes, os resultados foram supimpas. O macho interrompeu de novo.
A perereca olhou-o já se sentindo um pouco enraivecida com ele. Não lhe fizera
qualquer questionamento. Não iria responder. Seria perda de tempo. O olhar de enraivecida
já dizia por si mesmo.
O
macho lhe dissera que não fosse tão precipitada, a pressa é sempre inimiga da
perfeição. Haveria de surgir o pássaro que comeria a aranha, que comeria a
abelha, que comeria a mosca. A natureza é perfeita, tudo nela já está mais que
predeterminado. Se esperasse, deixasse de lado a precipitação, comeria o
pássaro e ficaria mais bem alimentada. Pensasse um pouco: mosca, abelha,
aranha, um pássaro. Óbvio. A sua fome seria muito melhor saciada. Poderia até
deixar o resto para o dia seguinte, se não pudesse comer o pássaro inteiro.
Lembrasse dos ensinamentos da cigarra e da formiga: guardar a comida para os
tempos de inverno forte.
A
perereca novamente olhou para o macho, não mais enraivecida, mas pensativa.
Vira o macho perto da serpente. Não teria ele aprendido as tramóias dela,
quando seu objetivo era que Eva comesse a fruta da árvore proibida. Com que
intenção o macho a estava convencendo? O que ele estaria tramando? Não iria
comê-la! Ou iria? Não. Não. Estava viajando na maionese da batatinha.
Pensou,
pensou. Reconhecia os bons conselhos do macho. Até aquele momento esteve com
toda a razão. Se houvesse comido a mosca, a abelha não teria aparecido e a
comido, se houvesse comido a abelha, a aranha não teria aparecido, se houvesse
comido a aranha, o pássaro não teria aparecido. O pássaro, com efeito, iria
saciar a sua fome até a aurora do novo dia, dormiria com a pança cheia, poderia
até guardar um pouco do pássaro para o desjejum. A perereca aguardou. O pássaro
demorou mais a aparecer. A fome da perereca aumentava a cada instante passado.
O pássaro chegou e jantou a aranha, foi curtir o crepúsculo na grimpa de uma
jabuticabeira, cantando à vontade, até dobrando de tanto prazer e satisfação, a
aranha estava mesmo uma delícia, que prato para um crepúsculo que armava chuva,
trovões e relâmpagos por todo o infinito.
O
pássaro estava com toda a razão. Logo começara a chover e a perereca, ao
atirar-se sobre o pássaro, com todas as volúpias, já esperava por algum tempo
colocar alguma coisa dentro da barriga, não o tendo feito por interferência do
macho. Escorregou e caiu numa poça dágua. Neste momento, uma cobra que passava
por lá, engoliu a perereca e sumiu mata adentro.
O
gordo, que estava encostado ao balcão, olhando para fora do botequim, enquanto
palitava os seus dentes, caíra na gargalhada. Os fregueses todos fizeram o
mesmo. Alguns transeuntes que passavam olharam para os clientes rindo, rindo; o
que era a bebida, a pingudice, faz qualquer um rir à vontade sem motivo algum.
Eu próprio estava sério. Paixão olhava-me estupefato, não estava entendendo o
porquê de eu não estar rindo como os outros com a sua fábula da perereca
tupiniquim. Não havia eu entendido, perguntara sério, estava se sentindo
ridículo, sua intenção a priori era fazer-me rir e não aos clientes do botequim
do gordo, e eu, no entanto, estava sério. O que eu não havia entendido?
Dissesse, ele explicaria com todas as palavras possíveis e inimagináveis, aí
iria entender. Não me esquecesse que fábula tem um sentido moral nas suas
entre-linhas, talvez não houvesse entendido a moral de sua fábula.
A
questão não era a moral, entendera com todas as letras, nem era preciso pensar
muito para tirá-la da perereca, havia outra coisa que estava bem clara para
mim, talvez houvesse eu perdido algo da fábula que a tornou obscura para mim.
Seria absurdo pedir ao amigo Paixão que a contasse de novo, com todos os seus
detalhes e pormenores, se possível até com as mesmas palavras. Deixasse eu de
ser cretino, dera uma risada, cheio de coisinhas, ninguém conta uma história
com as mesmas palavras, não havia decorado para contar. Não, não... Estava só
dizendo isso, não iria precisar ouvi-la de novo, mesmo porque ele não iria
poder contar sua fábula do mesmo modo, quem conta um conto sempre aumenta ou
diminui um ponto, o ponto que aumentasse ou diminuísse iria influir ainda mais
no meu não-entendimento da fábula.
Os
clientes pararam de rir. Olhavam-me estupefato. O gordo chegou perto da mesa,
aliás, Paixão, pedira uma nova pinga para comemorar o sucesso da cobra, ela que
nem pensava que iria comer uma perereca naquele começo de noite, que chovia,
estava alimentada para o resto da noite, dizendo-me: “O que você não entendeu
da fábula da perereca tupiniquim?” Perguntara com todos os jeitos e trejeitos
de quem mangava de mim, ouvira dizer ser eu um homem de inteligência incomum, e
não entendera a fábula. Olhei-o de banda. Disse-lhe que havia entendido a moral
da fábula, era outra coisa que não estava entendendo.
-
O que entendeu, então?
-
Entendi que quanto mais tempo duram as
preliminares, mais molhada fica a perereca. Porém, cuidado! Se não comer logo,
vem outro e come. Isso é o que entendi.
Era
essa mesma a moral da história, disseram todos em uníssono. E por que não rira?
Ou eu não sabia que “perereca” tem outro sentido? Estive quase dizendo que
jamais ouvira o outro sentido que o povo dava à perereca, embora eu não
soubesse mesmo, mas para ver a reação de todos. Se eles iriam explicar-me,
pareceu-me que o sentido era impróprio, conforme a impropriedade não iriam
poder fazê-lo, pois estava uma senhora tomando um lanche com o seu filhinho de
uns seis anos. Não o fiz.
-
Diga, imbecil, o que não entendera da fábula da perereca tupiniquim! – dissera
Paixão em tom sério.
-
O que mesmo não entendi foi a razão de a perereca ser tupiniquim? Qual a razão
da tupiniquinidade da perereca? Haveria alguma?
Todos
caíram na gargalhada. Paixão engasgara com a pinga, dera uma golada como se faz
com a cerveja, trocou os copos, saírão lágrimas nos seus olhos.
-
É isso que dá contar fábulas para intelectuais! – dissera Paixão, ainda
derramando lágrimas devido à troca da cerveja pela pinga.
(**RIO
DE JANEIRO**, 17 DE MARÇO DE 2017)
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