**SE A DITA DOS MILITARES ENDURECE...** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Nova pré-ocupação – velhas tenho-as aos montes, não sei se os anos que ainda tenho de vida me possibilitarão resolvê-las a contento, verei realizado o que sonho -, trivial, pueril, abate-se sobre mim, mais uma a que me entregarei com todas as volúpias e ímpetos.
Lembrei-me de repente que havia sido convidado para um jantar, após o lançamento de uma obra de cunho histórico, cujo tema era a “Ditadura Militar” – “Nunca ouvira dizer que a dita dos militares endurecia”, ironizando, disse ao historiador, autor da obra, caindo na gargalhada, minha índole cínica como sempre à flor da pele; não era pergunta para se responder em público, numa fila de banco, poderia afiançar-me que catuaba, ovos de codorna, Viagra não surtem efeito algum, a resposta mesma com todos os detalhes ser-me-ia dada noutra ocasião em sua casa, no escritório, na minha, no mesmo lugar, de porta fechada. Uma reunião de homens sérios, intelectuais de ponta e lâmina afiadíssimas, indivíduos engajados com a verdade.
Imaginei-me no meio de uma multidão comportada e discreta, onde cada um é dono de si próprio, onde cada um depena as frangas de suas idéias e utopias com os mais egrégios argumentos, dialéticas todas na ponta da língua, num piscar de olhos; do ouvinte, cai o queixo, esbugalham-se os olhos, que magnífica inteligência, não sendo exagero ou paradoxo, que sublime genialidade, mas na história continuam as arbitrariedades. Sendo obrigado a esconder cuidadosamente o estado do meu espírito de por baixo da luz das muitas lâmpadas.
Estava quase certo de conseguir, ser sério e discreto no meio das tantas celebridades do intelecto e cultura, dos gênios e deuses militares com suas empáfias de representantes da lei, donos do poder, ser comportado, não soltar uma in-vertida sarcástica, deixando todos incomodados e desajeitados, os bagos dos olhos saltando das órbitas de tanta raiva e ódio, loucos por me jogarem no olho da rua, impedindo a diplomacia, serem objeto de comentários os mais radicais, pois que a minha fala não fora outra senão o que se encontra bem escondidinho nos bastidores da ditadura militar; sentia-me quase desfalecendo ao pensar nos esforços de vontade que teria de desenvolver numa reunião cujos tema e assunto outros não seriam senão a “Ditadura Militar”, perfeito ícone de ironia, absoluto objeto de troças mil, tomando de início em consideração que o levante militar aconteceu em 1º de abril, Dia Internacional da Mentira, passando a ser nos livros de história em 31 de março – dizer “revolução” é ser imbecil, em verdade os militares tomaram o poder, queriam provar à nação brasileira que eram poderosos, eram os salvadores da pátria, defensores do povo, o comunismo era um acinte ao povo de bons princípios éticos e morais.
Por não sei que acidente, as palavras do Evangelho se me re-velaram de imediato: “Ai de quem escandalizar o próximo” – os intelectuais escandalizaram os militares, foram sumidos ou exilados, presos; alguém, aliás, certa vez dissera-me que se eu estivesse atuando, publicando o meu jornal na época da ditadura, seria sumido ou exilado, sou carne de pescoço, dura de mastigar – acabava de fazer irrupção na minha memória e, querendo esquecê-las, esforçando-me para esquecê-las, repetia-as incessantemente na minha mente.
Com efeito, era a minha manifestação de medo de estar presente no lançamento da obra histórica, no jantar; militares estariam presentes, só de imaginar que são reais, detêm o poder, existem, a todos os civis olham de banda, esperam qualquer deslize para o bote, só não o fazem com os bandidos, sujam as calças só de pensar neles; o espírito de troça se me re-vela, ou menor, “espírito trocador”, não tenho força para policiá-lo, isto porque o poder deles é aparente, no fundo são fracos, inúteis, atoleimados, ostentam poder para esconderem as mazelas psíquicas e emocionais.
Minha desgraça (pois era uma verdadeira desgraça) tomou então proporções grandiosas. Resolvi, apesar de minha fraqueza, fazer um ato enérgico e consultar um psicólogo, pois desconhecia os antídotos para a compulsão dos cinismos, ironias, sarcasmos na ponta da língua, à flor da pele, quando se diz respeito a estar no meio dos militares, e queria ir ao lançamento do livro de meu amigo, cujo tema era a ditadura militar, de espírito livre e des-impedido na sociedade onde o dever me chamava, devia cobrir o evento, escrever algumas linhas no jornal, parabenizando o historiador por sua cor-agem e determinação em jogar as cartas da “Ditadura Militar” sobre a mesa, sem piedade e dó, correndo riscos os mais sérios de ser perseguido.
Na porta do consultório da psicóloga, fui repentinamente assaltado por um pensamento que me fez parar alguns instantes e deu-me o que pensar. Acabava de olhar-me, no caminho, no espelho de uma vitrine de roupas prontas, e meu rosto tinha me espantado. A palidez, os lábios para dentro, os olhos enormes! Jamais vira a minha imagem re-fletida assim, até desconfiei de que alguém estava atrás de mim, era a dele que se refletia, a minha mesma não o estava. Virei-me, ninguém. Era a minha imagem. Vi-me transformado num monstro.
Do caixa, olhava-me um homem, creio ser o proprietário. Da imagem no espelho, observava-o, dizendo-me: “Vou deixar esse bom homem preocupado, pensei, e por tamanha bobagem”. Acrescente-se a isso o sentimento de ridículo que queria evitar, o receio de achar gente na loja, todos estarem a observar-me através da imagem no espelho. Mas minha repentina benevolência para com o lojista dominava todos os outros sentimentos. Imaginava aquele homem tanto sensível quanto eu naquele momento funesto, a caminho de um consultório de psicólogo, para saber o antídoto contra cinismo, ironia, sarcasmo, quando só imagino militares, quando tenho de estar no meio deles e, como também imaginava que seu ouvido e sua alma deviam, como os meus, vibrar ao menor ruído, resolvi aproximar do caixa, perguntar sobre um terno de linho branco, calça e paletó, se tinha o meu número, calça 40, caminha 4. Tinha de usar da máxima discrição, enfim continuavam em mim presente a palidez, os lábios para dentro, os olhos enormes, re-colhidos e a-colhidos na imagem do espelho, com um homem em que vou inspirar piedade, precisa com urgência de terno de linho branco para mudar a minha imagem. Também, a caminho do caixa, prometia-me abafar o som da minha voz, como o barulho dos meus passos, a voz do medo, da angústia, do espanto. Grave, profunda, gutural, parecendo muito com a dos velhos nazistas alemães, com os cinqüentões ditadores brasileiros. Dei meia volta, saí da loja às pressas, naquele momento passavam devidamente fardados, muito bem engomados, calças vincadas, sapatos marrons brilhando à luz do sol, dois militares, sérios, compenetrados, olharam-me de soslaio, cochicharam algo, continuando andando.
Entrei no consultório. A psicóloga estava sem paciente naquele momento. Atendeu-me. Todas aquelas determinações a que me propus na loja de roupas prontas, após ver a minha imagem re-fletida no espelho, pus em prática. O resultado foi oposto do que desejava obter. Resolvido a tranqüilizar a psicóloga, estava apavorando-a.Nada sabia daquela doença, só de imaginar militares, de ter de estar no meio deles num evento, intelectual ou apenas social, as troças se me revelam espontâneas, descasco as mazelas militares até na medula, nunca tinha ouvido falar nisso. Entretanto, olhava-me ela com uma curiosidade matizada de des-confiança. Imaginava ela que era eu um desvairado, um imbecil, um artista da mais alta índole. Talvez nem uma coisa nem outra, mas todas essas idéias absurdas atravessaram meu cérebro de ponta a ponta, in-versa e verticalmente.
Fui forçado a explicar-lhe (que cansaço, meu Deus! Nunca consegui entender tanta dificuldade de explicar as coisas!) o que era a ironia, o cinismo, o sarcasmo, o porquê de eu ser irônico, sarcástico, cínico com os militares, com tudo que diz respeito à lei, à repressão, aos limites dos direitos, ao ilimite dos deveres, à falta de liberdade, repetindo sempre que para mim o poder militar é um farsa, os militares como homens são fracos, inúteis, valor algum têm, não havia problema de ser detido por desacato à autoridade, sabia usar as palavras críticas, destilar os ácidos com percuciência, só estava pedindo um meio de amenizar os meus impulsos e ímpetos, estaria em breve num lançamento e jantar de amigo, um de meus maiores amigos, não desejava insatisfazer o amigo nem aos seus amigos e familiares com os meus ácidos críticos aos militares, a “Ditadura Militar Brasileira”, a famosa e célebre “DMB”, tendo a psicóloga dado uma risada estridente, talvez tenha associado a minha fala ao partido político às avessas, insistindo freqüentemente no sincero medo que tenho de ser preso, sumido ou exilado.
Por haver perguntado ao historiador se a dita dos militares endurece, como andam as coisas no país, já deviam estar sabendo desta pergunta cínica, fosse preso, diriam apenas que iriam me mostrar como a dita não endurece, tirariam as minhas bolas, eu saberia responder a alguém que me perguntasse o porquê de a minha dita não endurecer mais. Seria para mim muito triste não mais poder degustar as delícias e prazeres de uma transa, só com a língua os prazeres não são tantos, para serem completos precisava da dita e da língua bem pontiaguda.
Finalmente – entendam os caríssimos e digníssimos leitores, toda a humilhação contida para mim nestas palavras, a psicóloga simplesmente pediu que me retirasse de seu consultório.
À noite daquela dia em que a psicóloga pediu-me que retirasse de seu consultório, assisti ao evento em silêncio absoluto, arriscando percentagem, diria que noventa e oito por cento dos presentes eram militares, muito bem trajados, sérios e compenetrados, os dois por cento restantes era de intelectuais, historiadores, professores da faculdade, o povo mesmo não esteve presente, queriam distância dos militares, só de imaginarem como foi o tempo da Ditadura Militar sentiam o maior medo, tinha-se de ficar com a boca fechada por todo o tempo, qualquer palavra seria arriscada, podia-se ser preso, levar surra daqueles, ser dependurado no pau. Só prestei atenção às palavras da oratória do mestre-cerimônia e de todos os que tinham os mais egrégios motivos para parabenizar a responsabilidade dos métodos de pesquisa e avaliação do processo histórico. Ninguém suspeitou dos esforços sobre-humanos que tive de fazer para parecer-me com todo mundo, sério e compenetrado.
Mas nunca esquecerei as torturas de uma embriaguez ultra-política, atrapalhada pela cerimônia e contrariada por uma obrigação. Embora naturalmente inclinado a simpatizar com todos os sofrimentos causa imaginação fértil que me habita, não posso deixar de rir dos meus todos medos de estar presente no lançamento da obra, não fui ao jantar, não iria comer à vontade, isto é, livremente, sendo circundado por só militares. Sentei-me num botequim, só de civis, já tontos, embriagados, falando alto, pedi uma porção de pé de porco, uma cerveja, pinga, comi e bebi tranqüilo, estava com efeito no meu métier. Podia esperar uma noitada tranquila e sem pré-ocupação.
Um leve frescor já tinha se manifestado na minha mão direita, na ponta dos meus dedos; logo transformou-se em frio intenso como se estivesse com as duas mãos mergulhadas num balde de água gelada. A sensação aguda penetrava em mim mais como uma volúpia. Os sentimentos que tinha reprimido desde que recebi o convite do amigo para o lançamento de sua obra, com toda a fraca energia de que podia dispor para policiá-la, fizeram então irrupção, e entreguei-me ao frenesi de escrever a respeito. Era meia-noite e meia quando terminei. Chamei um táxi e fui para casa. Não seria burro de ir à pé, algum militar podia abordar-me no caminho, pedir-me o que havia escrito, viu-me escrevendo no botequim.


(**RIO DE JANEIRO**, 01 DE ABRIL DE 2017)


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