**NEM QUE O BODE SOLTE CHAMAS DE FOGO PELAS FUÇAS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Não matei cachorro a gritos nem pulgas a beliscões. Levar-me a isto faz-se mister algo que ultrapasse todos os limites, não quaisquer uns, mas os inimagináveis, inconcebíveis, irracionais. Corre em minhas veias sangue de barata? Nem tanto o céu nem tanto o inferno.
Palavras ao léu não me tocam, não me fazem cócegas no cógito, quando mais em se tratando de quem as pronunciou: pela escassez de seu vocabulário, pela pequenez de sua inteligência, gastou tempo inimaginável para encontrá-las em estado bruto, sem arrebiques, de modo que me fizesse re-fletir, meditar, fizesse-me re-troceder no tempo, analisando as coisas, vendo com clareza os olhos de sol que tem as tardes, sentindo no mais profundo das pre-fundas medo de no futuro as desgraças, in-fortúnios caíssem sobre mim, considerando aí o quanto arbitrário, gratuito, o quão errado estive no passado.
Tais palavras pronunciadas com o fervor da alma, qual um grito escondido há muito saindo a plenos pulmões, ensurdecendo até os habitantes da Cochinchina, mostraram-me apenas a pessoa não sabia nem a minha cara, muito menos conhecer-me superficialmente, para ela não existia, não estava no mundo, não era um fantasma. Não as diria, se me conhecesse, procuraria outras na sua caverna sem fundo.
Dizer-me que o meu destino estava marcado é um disparate, despautério. Estava ele marcando-o, era um deus pre-determinando os meus caminhos, não haveria quaisquer modos de re-vertê-los por mais fizesse, lutasse, estrebuchasse nas bocas de lobo do mundo, tornar-me-ia cinzas e nada iria mudar, para o inferno iria com o que escrevia na pedra de mármore para mim. Pronunciando: "Seu destino está marcado. Sem retorno...", estive quase a dizer-lhe em contra-partida: "Caríssimo, não existe isso de você marcar o meu destino, visto ser eu quem o faz, constrói, elabora..." Não o fiz, contudo. Fazê-lo, dariam panos para mangas, teria de me utilizar de todas as verborréias, elencá-las com esplendor e excelência, horas e horas seriam precisas, até que percebesse as coisas com lucidez. Palavras são muito difíceis de encontrá-las, e gastá-las à toa não faz qualquer sentido, não possuía ele condições de entender, compreender. Vive ele no tempo dos deuses, eles é que condenavam os homens. Tudo nele mostra ser retrógrado, démodé, nada irá mudar isto até o seu fim irreversível.
Alfim, tive uma idéia salvadora... Ah, trapézio das concepções abstrusas! A idéia salvadora trabalhou em mim. Era nada menos que fasciná-la, fasciná-la à revelia. Não medi as consequências. Re-corri-me ao espelho, mostrar-lhe a imagem de suas palavras re-fletida nele.
- Meu digníssimo, dissera-me que o meu destino está marcado, não há retorno. Não quer mais saber de quaisquer relações comigo. No futuro, desgraças e infortúnios podem cair sobre mim, irei precisar procurar-lhe, e isto não irá permitir nem que o bode solte chamas de fogo pelas fuças tal e qual Satanás. Você está marcando o seu destino a meu respeito, predeterminando os seus caminhos em relação a mim. Se refletir aí com os seus miolos, realizará com toda a pompa que já lhe mostrei com todas as letras sou quem não interessa mais a sua presença, e para ter mais ciência do que lhe estou a dizer: qualquer a-nunciação de sua sombra a qualquer distância virarei as costas, seguirei por outra alameda.
Ouvia-me, passando a sola do sapato na grossa raiz do ipê amarelo. Terminando, virou-me as costas: "Espero que nem no além não nos encontremos."
- Amém... Amém... Amém...
Abri a porta do meu casebre, sentindo-me ter retirado uma tonelada de coisas nas costas com que andei por longos e longos anos. Livre... Livre... Livre...



(**RIO DE JANEIRO**, 23 DE MARÇO DE 2017)


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