**CONSERVADA PARA A POSTERIDADE** - PINTURA: Graça Fontis​/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto​


Bons dias!


Disseram em tempos de muitos outroras que na natureza nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma, o que é uma verdade inconteste. Esqueceram de dizer com toda essa pomposidade, com todo esse senso de uma verdade que jamais será contestada, os milênios todos que ainda esperam pela humanidade não desmentirão, que a natureza é caprichosa, que também na natureza há aberrações inacreditáveis, muito mais do que no reino dos racionais, o que não é compreensível, pois que a razão não tem tão supimpas poderes para impedir a aberração, aliás por causa dela mesma as coisas no mundo andam de cabeça para baixo.
Em verdade, jamais presenciei aberrações que me fizessem virar os olhos, perder o fôlego, cair o queixo, colocar um palmo de língua para fora da boca, embora já tenha visto coisas ininteligíveis nesta vida, se fosse elencá-las gastaria um tempo danado, e se não elencasse, falasse apenas de uma das aberrações que já vira, com efeito, ninguém iria acreditar, diria apenas que tenho uma imaginação muito fértil, tenho nas pré-fundas uma capacidade inominável para criar as coisas. No que tange a algumas, ainda me pergunto com toda a percuciência se vira a coisa mesma, se não estava ensandecido, se não fora um pesadelo, confundi-o com a realidade. Não tenho coragem de contar as coisas que vi, guardo-as para perguntar a Deus, quando estiver lá no paraíso celestial, se tudo o que vi no mundo era mesmo verdade ou se eu durante toda a minha vida não fiz outra coisa senão inventar coisas para passar a vida.
O que me contaram no velório de Alfredo Jasmine está no cardápio das aberrações da natureza. Não posso dizer que tenha isto acontecido mesmo ou se fora invenção de Honório, não se pode confiar em tudo que ele diz, e também em ambiente de velório as histórias muitas vezes são espetaculares, crendo eu que para a pessoa afastar um pouco os sentimentos que a morte provocam no homem, especialmente o de morrer e ir para o inferno.
Um funcionário... Estava ele trabalhando na funerária havia uns três meses, fora o único emprego que encontrara, depois de ser despedido da farmácia de Lincoln Pereira, por haver trocado o medicamento de um paciente e este tivera sérios problemas de estômago. Este funcionário examinava um cadáver, identificado como sendo do Sr. Chagas, médico dos mais famosos em nosso município, diziam que faltavam alguns parafusos na sua cachola, era completamente ensandecido, mas muito querido por seus clientes, caridoso, ajudara muito os pobres, todos os dias atendia em seu consultório dois que não podiam pagar a consulta, e se tivesse os remédios eram doados, e, quando não havia, mandava à farmácia com um bilhete, no final do mês pagava. A morte de Chagas deixara um vazio enorme no peito dos clientes. Médico igual a ele nem depois da consumação da modernidade e atualidade iria haver neste mundo.
O funcionário, examinando o cadáver de Chagas, que deveria ser cremado, a pedido dele, e suas cinzas jogadas no rio que passava ao lado do hospital, descobriu que ele tinha um pênis inacreditável de tão grande, coisa que ele jamais havia visto neste mundo. Até passou a mão nos olhos para tirar deles alguma coisa que estivesse aumentando as coisas. Não. Não havia nada em seus olhos. Era verdade. Chagas tinha um pênis enorme.
Olhando aquela aberração toda, pedira desculpas ao Chagas, mas não podia mandá-lo para o crematório com aquela coisa enorme. Tinha que ser conservada para a posteridade. Coisas assim são estudadas pela ciência, são objetos para a observação das pessoas, são até expostas em museus. Estaria o funcionário fazendo um favor para a humanidade, para a ciência, com seus estudos e investigações haveria progresso, desenvolvimento, poder-se-ia chegar a coisas inimagináveis no futuro, beneficiando a todos. Era esse o propósito maior da ciência.
Com um bisturi, removeu o pênis do cadáver de Chagas, guardando-o num frasco. Preparou todo o cadáver para ser cremado setenta e duas horas depois, como é de práxis. O cadáver ficaria exposto no velório, que aconteceria no salão nobre da Prefeitura Municipal, para a visitação pública, despedirem-se as pessoas do grande médico que a nossa comunidade já teve, do homem caridoso, prestativo, misericordioso. Não teria qualquer problema, ninguém iria desconfiar que o funcionário houvera tirado o pênis e guardado num frasco. Não teria ele qualquer conseqüência pelo seu “ato criminoso”.
Embrulhou bem o frasco e colocou dentro de sua pasta. Foi embora. Estava muito cansado. Fazia um calor enorme naquele dia. Aproveitou para passar no barzinho para tomar uma cerveja geladinha. O jantar estaria pronto às sete horas, eram ainda cinco e meia, podia tomar a cerveja tranquilamente, apreciando-lhe o gosto. Sentou-se. Pediu ao garçom a cerveja e uma dose de vodka com limão em rodela e gelo. Ficou pensativo. O garçom que já o conhecia, tinha sempre um assunto interessante a contar, os fregueses gostavam de seu papo, achou estranho o funcionário da funerária estar naquele silêncio todo. Aproximou-se da mesa, perguntando-lhe se estava com algum problema sério, parecia que sim, estava muito calado. Amigo nestas horas ajuda muito. Não. Não estava com problema algum, estava muito cansado, o garçom não podia nem imaginar o trabalho que dá preparar um cadáver para ser cremado. Sr. Chagas seria cremado. Estava muito cansado, esse era o motivo de seu silêncio, não se preocupasse, tudo estava bem com ele, até lhe agradeceu a generosidade.
Como é que podia ter um pênis daquele tamanho? Por que há estas aberrações no mundo? Tinha que haver alguma razão para isso. Seria que ele não tivesse tido relações com ninguém? Era solteiro. Um caso aqui, outro ali, é normal para um homem solteiro. Qual a mulher iria querer transar com um homem com um pênis tão descomunal. O mundo andava mesmo muito estranho, coisas inimagináveis estavam acontecendo. Onde é que tudo isso iria parar? Não era possível. Nem pênis de cavalo é tão grande como era o do Sr. Chagas. Era engraçado, como ele guardava aquilo dentro das calças, que não eram tão largas assim? Todos esses questionamentos e pensamentos perpassavam a mente e os sentimentos do funcionário da funerária. Estava mesmo abestalhado com aquilo.
Antes de dar-se com a língua nos dentes, confessar que havia tirado o pênis do Sr. Chagas, sendo seu interesse contribuir com a medicina, deveria guardá-lo a sete chaves. Quanto tempo iria esperar para a confissão? Onde é que guardaria o frasco? Felizmente, a mulher era um sepulcro, sabia guardar todos os segredos. Teria de falar com ela o que havia feito, mostrar-lhe o pênis do Sr. Chagas, a sua aberração. Com efeito, ela iria tomar um susto daqueles com aquele tamanho de pênis.
Chegara a casa, fora direto para o seu escritório, guardando o frasco dentro de uma das partes de sua estante de livros. A mulher observou que alguma coisa estava errada com o marido, pareceu-lhe estar muito preocupado. Nada comentara, alfim estava trabalhando numa funerária, tinha de preparar os cadáveres para serem colocados no esquife, não havia ainda se acostumado com isso, ficava impressionado, inclusive tendo pesadelos à noite. Era uma coisa normal. Não devia ela se preocupar. Com o tempo iria se acostumar, seria coisa bem trivial para ele.
O que mais impressionava o funcionário era o tamanho do pênis do Sr. Chagas, realmente uma aberração. Soubera de alguém, inclusive vestia calças bem largas, e mesmo assim era possível observar o volume mais acentuado, era alcoólatra devido a isto, mulher alguma queria ter relações com ele. Impressionante. Por que tantas aberrações neste mundo? Poder-se-ia dizer essa ser ainda simples, havia outras muito mais impressionantes. Ouvira contar de outro caso: o pênis do indivíduo era menor que o salário do Professor Raimundo, e a mulher vivia reclamando que não dava nem para fazer cócegas. Enfurecido, consultou médico que lhe receitou uns comprimidos. Tomasse-o sempre à noite, antes de se deitar. Estando do tamanho que desejava, era só parar de tomar. Tomou conforme a prescrição médica. Seis meses depois a mulher ainda reclamava, dizia que não fazia nem cócegas. Enfurecido, tomou três caixas num só fôlego. De madrugada, quando acordou, por triz não teve um enfarto, vendo aquela coisa enorme dando voltas no quarto. O que fazer? Passara o resto da madrugada, olhando para o tamanho de seu pênis, pensando como iria resolver aquela situação. Pela manhã, enrolou bem, passou um pano e amarrou. Chamou o seu capataz, dizendo-lhe que o levasse para a cidade. Fosse bem devagar. Não passasse por sobre buracos na estrada. Era capaz de dar-lhe um tiro bem no centro da testa, se isto acontecesse. Com muito cuidado na direção do carro, levou o patrão até a cidade, até à clinica do médico. Chegaram por volta das três horas da tarde. Sentou-se na poltrona da recepção, pegara revistas e começara a ler. Estava sentado como uma múmia, só os olhos faziam os movimentos da leitura, nada nele fazia o menor movimento. Entravam e saiam clientes, mandava que outros entrassem, a secretária estava incomodada com aquilo, a vez dele já tinha passado havia bom tempo. Há pessoas que brigam se alguém passa na frente, numa linguagem vulgar, fura a fila, há outras que pedem para a pessoa ser gentil, permitir que seja consultada antes dela, estão com pressa, têm coisas a resolver, responsabilidades a serem cumpridas. O que estaria acontecendo com aquele fazendeiro. Contudo, dissera-lhe ele que o assunto era particular, esperaria até às oito horas até terminarem as consultas. A secretária aceitou a justificativa, disse-lhe apenas que ficasse à vontade. Até lhe oferecera um cafezinho para fumar um “paieiro”.
Às oito horas, terminaram as consultas. A secretária dissera ao fazendeiro que podia entrar no consultório, o médico estava à sua espera. Assim que se adentrou no consultório, o médico o reconheceu, perguntando-lhe se o remédio havia surtido o efeito esperado, se a mulher deixara de reclamar, o que tinha entre as pernas não estava nem fazendo cócegas. O fazendeiro puxou o pano amarrado, a coisa caiu no chão. O médico dera um salto na cadeira. Os olhos esbugalharam-se.
- Meu Deus! – exclamara o médico estupefato – O que acontecera?
- Doutor, a mulher estava reclamando muito. Para ela, qualquer tamanho pequeno que crescesse ou mesmo grande não lhe satisfazia os interesses. O que fiz, então? Tomei três caixas de uma só vez. Eis aí o resultado! – disse-o preocupado, como quem diz “E agora, o que eu vou fazer com isso tudo?”
O médico olhava, olhava aquilo no chão.
- Mas, diga-me uma coisa: e o resto? Onde está o resto?
- O resto, doutor, está vindo aí numa carroça de boi.
Aberrações. Aberrações. O que está mesmo acontecendo no mundo para haver tantas coisas esquisitas, tantas aberrações, ouvira até dizer que na televisão havia aparecido uma mulher sem rosto num programa, a sua presença lá era para pedir ajuda à medicina, a algum médico que a ajudasse, quem sabe uma operação plástica para que tivesse um rosto, usava máscara. O que mais irá haver de tão aberrativo? Era o fim do mundo? Era o Apocalipse.
Todas estas coisas perpassaram a mente do funcionário da funerária naquela madrugada, desde as duas até às sete horas da manhã, horário da esposa acordar e fazer o café, às oito horas devia o funcionário estar na funerária.
Levantou-se ele. Fora tomar o seu banho, antes de tomar o café da manhã, sempre dois pães com manteiga na chapa, dois copos de leite, três xícaras de café, dois ovos cozidos. No banheiro, ficara pensando como iria dizer à mulher o que estava acontecendo, como iria mostrar o pênis do Sr. Chagas que ele colocara num frasco? Como iria se explicar, alfim cometera um crime, retirara o pênis do médico? A sua intenção era idônea, queria contribuir com a medicina, casos assim são de interesse dela, pesquisas são feitas, investigações são realizadas, explicações e justificativas científicas são registradas com todo o esmero e metodologia, a humanidade fica sabendo, então, o que está acontecendo, remédios são criados para evitar os problemas dessa natureza, tais aberrações. Seria que ela fosse entender? Seria que ela fosse descascar todos os seus pepinos, estava doido, como pudera cometer um crime dessa natureza, retirar o pênis do doutor Chagas?
Terminado o banho, fora até ao quartinho de passar roupas, escolheu a que iria usar naquele dia, passara com toda a calma e serenidade, pensando e espremendo os miolos para encontrar um modo de dizer à esposa o que estava acontecendo. Passara a sua roupa. A mulher estava na cozinha, fazendo o café, arrumando o vasilhame de jantar da noite anterior, até cantando música de Chico Buarque de Holanda, Apesar de você, era a paixão dela, amava Chico Buarque de Holanda, paixão indescritível, ouvia-lhe as músicas o dia inteiro, quando não era através dos velhos discos de vinil, era através de fitas de videocassete, através de CDs no computador, as únicas músicas ouvidas por ela eram do grande e imortal Chico Buarque de Holanda, e ele mesmo, o funcionário da funerária, sabia gostar do músico, mas um gostar simples. O funcionário vestira sua roupa. Engraxara os sapatos, colocando-os à janela para secarem. Tudo isso feito com a maior tranqüilidade e serenidade, a intenção era encontrar um modo de dizer à mulher que havia “castrado” doutor Chagas, o pênis dele estava no frasco, a sua intenção era contribuir com a ciência.
Terminado tudo, dirigiu-se à cozinha. Sentou-se. Como sempre a televisão estava ligada. Passava a Noviça Voadora, que o funcionário da funerária achava muito vulgar, imbecil, idiota, programa que nem empregadinha gostava de assistir. Não houvera qualquer diálogo entre o funcionário e a mulher, silêncio completo e divino durante todo o desjejum. Levantara-se, fora até ao seu escritório, abrira a portinha da estante de seus livros, todos sobre farmácia e química. Apanhara sua pasta com o frasco dentro. Sem querer, encostou-se numa das estantes e alguns livros caíram no chão, especialmente um livro de Freud, sobre o Tabu.
Chegara à cozinha. Abrira a pasta. Tirara o frasco.
Dissera à esposa: “Veja você mesma como andam as aberrações neste mundo”. Mostrou-lhe o pênis do Sr. Chagas que havia retirado para contribuir com a ciência.
- Oh, não, o Chagas morreu...


(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MARÇO DE 2017)


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