**DESVÃO DE TELHADO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!


Dizem, coisa que não posso afirmar, que qualquer desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
Há quem não tire único vintém de sua carteira no bolso para um cafezinho de cinqüenta centavos, se a esposa disser que acabaram o arroz, feijão, café, argumenta se não seria possível não comerem mais arroz, feijão, café só uma garrafa por semana, viajando não come um salgadinho, seja a viagem de três, quatro dias até o destino pré-determinado. São eles os famosíssimos mãos-de-vaca, dinheiro só para ganhar e não para gastar, são capazes de tudo para aumentar os valores já adquiridos. Na telinha da televisão, uma personagem mão-de-vaca ficou consagrada por sempre, Nonô Miranda, o ator fora Ary Fontoura, o Brasil inteiro ficou conhecendo o que é isso “mão-de-vaca”, embora todos já soubessem, mas em nossa atualidade é necessário a mídia consagrar para se tornar verdadeiro e eterno. Engraçada é a expressão: bois são quadrúpedes, dois pés dianteiros, dois pés traseiros, não têm mãos, e na expressão acabou tendo, talvez por ter acabado tendo é que se tornou interessante, pegara. Mão-de-vaca é o miserável.
Não diria que os brasileiros sejam miseráveis, mas existem inúmeros mãos-de-vaca. Se gastam um tostão, re-clamam dele até a consumação de suas vidas. Existe uma raça que é miserável por natureza, amam o dinheiro, nada no mundo é objeto de tantos prazeres e alegrias que o dinheiro, são capazes de tudo para adquiri-lo, somá-lo à fortuna que já conseguiram, e dizem as más línguas que são desonestos, o que conseguira fora ilicitamente. Às vezes são homens sem qualquer cultura, fizeram apenas o antigo curso primário para aprenderem a fazer contas. Não duvido nem um pouco desta realidade, conheço alguns. São os turcos: “Vá gostar de dinheiro assim lá nos quintos do inferno”, talvez seja o destino deles devido à desonestidade e o oportunismo deslavados, pensaram que o dinheiro seria a tábua de salvação, já que para o cristianismo a vida são dores e sofrimentos na terra, o dinheiro faria a felicidade e o prazer. Deixaram tudo no mundo, foram direto para o inferno. Seja no modernismo, tempo que tudo é permitido, imperam a libertinagem, a permissividade, mas a desonestidade é condenável, São Pedro lá no céu não perdoa mesmo, não deixa a alma desfrutar as belezas e maravilhas do paraíso celestial.
Cidade do interior é daqueles lugares onde todo mundo se conhece, todo mundo sabe da vida de todo mundo, com todos os detalhes e minúcias, nuanças e pormenores, onde a fofoca corre solta, onde ninguém pode saber que haja alguém bem, cuida-se para acabar com todas as alegrias e contentamentos. Dona Yara Nagib, a primeira-dama da cidade, muita querida e considerada por todos devido à sua bondade, aos seus princípios solidários e compassivos, às suas condutas e posturas sociais, ao senso de caridade elevadíssimo, inclusive sendo a mentora intelectual da administração pública, dizem até ser ela quem administra os bens públicos, o marido é um perfeito “banana”, dirigia as obras de caridade. Verificando a lista de donativos para o asilo dos velhinhos, constatou que não constava nenhuma contribuição de seu Salim, um turco muito rico, proprietário de uma rede de supermercados, padarias em cinco bairros de nossa comunidade.
Não, estava errado isso! Pessoas de ganhos bem inferiores, comerciantes com uma portinha aberta para venderem seus produtos contribuíam, porque seu Salim, que era rico, dormia em colchão de notas de cem e travesseiro de notas de cinqüenta, podia rasgar dinheiro e jogar fora, podia sair jogando pelas ruas dinheiro, que não lhe fazia a menor falta, não estava contribuindo com as obras de caridade? Iria procurá-lo, cobrar dele, é dos princípios cristãos ajudarem os pobres, emprestarem a Deus, por menor que fosse a doação, mas era de sua responsabilidade contribuir. O prefeito lhe avisou que iria perder caminhada, nem sob intimação judicial seu Salim iria contribuir. Comprara um esquife de indigente para a mãe, mandara cavar a sepultura, enterrá-la, não quis gastar com a colocação de uma cruz para indicar o local onde havia sido enterrado, com a data de seu nascimento e morte. Tentar não arranca pedaços de ninguém, argumentou dona Yara Balsamão, só iria perder a caminhada e a ajuda para o asilo dos velhinhos, é muito, vale dizer, mas não é mulher de desistir, quanto mais que é por uma boa causa, é para ajudar os velhinhos. O marido já a conhecia, sabia que luta até não haver mais esperança, e sendo que a esperança é a última que morre sempre há um jeito, vence-se pelo cansaço.
Fora à padaria da Vila de Lourdes, onde encontrar seu Salim Nagib era certo, de lá é que ele administrava toda sua rede comercial, lá não tinha funcionária no caixa, ele é que ficava nele, sempre recebendo, recebendo, recebendo.
Em primeira instância, por objetivo mesmo de encher lingüiça, chegou ao caixa e pediu um cafezinho, precisava muito conversar com o turco Salim Nagib, não era assunto demorado, assim lhe disse. Salim a olhou fixamente, espremendo os olhinhos de sapo à beira da morte inevitável, perguntando em silêncio qual era o assunto que a primeira-dama queria tratar com ele, talvez fosse a areia que havia pedido ao prefeito para fazer uma nova calçada em sua padaria, estava por inteiro esburacada, estava perdendo clientes com isso. Havia três semanas o pedido fora feito, assim mesmo com muita dificuldade para falar com o prefeito, não gosta de atender os comerciantes, estão sempre pedindo alguma coisa. Como era ela que mandava e desmandava na prefeitura, com certeza fora lá para lhe comunicar os sacos de areia estavam garantidos. Uma boa notícia. Felizmente! Dona Yara tomava o seu cafezinho, sentada no banquinho do balcão. Salim chamou uma das funcionárias para cuidar do caixa, era a única de sua confiança, trabalhavam lá quatro ou cinco. Terminava o café, quando Salim se aproximou, dizendo-lhe estar à sua disposição, fossem juntos ao escritório, lá estariam mais à vontade para tratar do assunto que a levara à padaria. Educadamente, perguntara pelo marido, se ele estava bem, soubera que havia tido um problema de rins, fora internado por três dias. Respondeu que já estava bem, estava dando duro na prefeitura.
Foram ao escritório. Educadamente, Salim Nagib puxou a cadeira para dona Yara Balsamão, contornou a mesa, sentou-se em sua cadeira. A mesa estava repleta de papéis.
- Pois não, dona Yara – acendera um cigarro de palha. Seus olhos brilhavam. Estava esperando a notícia dos sacos de areia para a nova calçada da padaria.
- Seu Salim, o senhor que está tão bem de vida, deveria pensar nos pobres coitados desta cidade, que lhe ajudam a aumentar a renda, a sua riqueza. Estive fazendo umas pesquisas e constatei que o senhor tem renda suficiente para dar uma gorda contribuição para os pobres... – Salim tossiu seco, remexeu-se na cadeira. Aquele arzinho de felicidade, o assunto eram os sacos de areia, esvaneceu-se em seu rosto. Ficou sério, muito sério.
- Ora, pois se a dona Yara pesquisasse mais, iria ver que minha mulher está doente, úlcera, mas come pimenta com farinha, o resultado é esse, e gasta uma fortuna em remédios.
- Não sabia, sinto muito...
E o turco Salim Nagib continuou:
E se a senhora xeretasse mais minha vida, iria saber que tenho um irmão inválido, desastre de motocicleta, que tem cinco filhos pequenos, sendo que minha cunhada está desempregada! – disse isso com todas as representações, até a fisionomia era teatral, não sei se o peito estava confrangido, se o coração batia lentamente, provável que sim.
- Nossa... A esposa com problema de úlcera, o irmão inválido, a cunhada desempregada... O senhor está precisando rezar um pouco mais. Sinto muito, Deus é grande, existem fases na vida das pessoas, tudo é passageiro.
- A senhora sabia que o marido de minha irmã morreu o mês passado, num acidente de carro, numa ponte perto de Monjolos, também estava correndo muito, caiu dentro do córrego, numa altura de vinte metros, deixando-a sem nenhum dinheiro e com três crianças.
- Meu Deus, a coisa está mesmo preta para o lado do senhor. Não fazia a menor idéia disso tudo... Quase não tenho tempo para nada nesta vida. Vinte e quatro horas não dão para resolver tudo em minha vida. Já lhe disse: precisa rezar mais. O senhor vai à missa? Reza todos os dias quando se levanta, quando vai dormir? Talvez o que esteja faltando na vida do senhor sejam as orações. Vou rezar para o senhor. É o máximo que posso fazer. Sinto muito...
A funcionária chegou ao escritório dizendo que havia um senhor lhe procurando, dissera ser a respeito de uns sacos de farinha que estava lhe devendo fazia uns dois meses, estava necessitado da quantia para levar o filho à capital. Duro e seco, dissera à funcionária para dizer houvera se enganado, ele saíra, só voltaria no final da tarde, se pudesse, voltasse mais tarde. Estava ocupado, não estava vendo? Tratava de assunto muito importante.
- Então, continuemos... A senhora desculpe-me pela interferência da funcionária. Já disse centenas de vezes para não me interromper quando estou com alguém no escritório. Cabeça-duras, dona Yara, não aprendem nem se abrir uma valeta a machadada e colocar a ordem dentro. Se aqui estou, é para resolver assuntos importantes para os meus negócios.
Dona Yara Nagib prestara muita atenção à desculpa dada, havia saído, só voltaria no final da tarde. A pessoa estava com filho doente, necessitando ir à capital, estava lhe devendo sacos de farinha. Quê coisa! Mas ela não desistiria.
- Pois é, senhor Salim Nagib... Estou aqui para pedir ao senhor uma contribuição, por menor que seja, para o nosso asilo dos velhinhos. O senhor tem condições disso – tivera o ímpeto de dizer que toda a onda de doenças que estava acontecendo na família era de sua responsabilidade, não ajuda ninguém, Deus lhe está castigando. Não dissera porque tais palavras iriam prejudicar as suas intenções, não daria a contribuição, escorraçá-la-ia do escritório e da padaria, dizendo-lhe para não mais pisar na calçada.
E o turco Salim Nagib completa:
- Dona Yara, e se Salim Nagib não deu dinheiro para nenhum deles, para as pessoas que estão doentes na família, por que Salim Nagib daria dinheiro para a senhora, dona Yara?
Dona Yara perdeu todas as cores de seu rosto, ficou branquinha. Os lábios tremeram. Os olhos reviraram-se. Mexeu-se na cadeira. Salim Nagib não tivera nenhuma reação com as reações da primeira-dama. Não era possível haver alguém tão mão-de-vaca quanto aquele turco, qualquer contribuição era bem-vinda, não estava exigindo quantia alguma.
- Senhor Salim Nagib, o senhor sabe da situação que estão vivendo os velhinhos do asilo? Estão numa situação muito precária.
- Não tenho tempo para prestar atenção nestas coisas. Levanto às quatro da manhã e só Deus sabe a que horas vou dormir. É muito trabalho. Tenho a certeza de que outros irão ajudar a senhora dona Yara Balsamão. No momento, não estou em condições mesmo.
Dona Yara estava tão pasmada com a miséria do turco que por segundos ficou até com vergonha de pedir licença para se retirar do escritório. Agradeceria a atenção dispensada? Diria que noutra oportunidade talvez pudesse fazer a contribuição? Diria ter outros assuntos para tratar com outras pessoas, voltaria outra hora para conversarem? O que iria dizer ao turco? Meu Deus, quê mão-de-vaca danada! Salim Nagib permanecia quieto em sua cadeira, olhando-a, esperando que ela se despedisse, fosse embora logo. Não iria mandá-la se retirar, mesmo através de palavras educadas, são três da tarde, horário de café dos funcionários da redondeza, tinha que receber as despesas no caixa. Se fizesse isso, com efeito, o marido ficaria sabendo, não poderia nem mais passar à porta da prefeitura, quanto mais pedir alguma coisa ao prefeito.
- Desculpe-me – dissera através de um sorriso amareliçado, sua cor normal não havia ainda voltado ao rosto, era o modo mais fácil de sair dali o mais rápido possível -, senhor Salim Nagib, haver incomodado o senhor, não sabia que a sua situação estava tão difícil, mas de qualquer forma muito obrigada por me haver recebido em seu escritório. Peço a Deus que tudo se normalize, a saúde de seus entes íntimos volte a ficar boa, todos desfrutem alegrias e felicidades em suas vidas.
- Não há de quê, dona Yara Nagib. A propósito, o marido da senhora acaso não comentara a respeito de uns sacos de areia. Estou urgentemente necessitado de consertar a calçada de minha padaria, está toda esburacada, estou perdendo clientes com isso. Faz algumas semanas que fiz o pedido. A senhora não está sabendo de nada?
- Não, ele não me disse nada... – quase que gaguejou de tanta raiva do turco – Melhor seria se o senhor pessoalmente fosse à prefeitura para conversar com ele.
- É, vou ter de fazer isso.
- Passar bem, senhor Salim Nagib. Muito obrigada.
- Não há de quê.
Dona Yara saíra da padaria de cabeça baixa de tanta vergonha. Creio que ela soubesse que todas as doenças eram invenções do turco, eram as justificativas que tinha para não fazer a sua contribuição para o asilo dos velhinhos, entrou no jogo dele apenas para tripudiar, com todos os “sinto muito” iria sensibilizá-lo. Nada feito. Não foram a caminhada e a contribuição que perdera, perdera sim o trabalho de tentar convencer o mão-de-vaca Salim Nagib com os seus “sinto muito”. Não mais voltaria ali, e todas as suas amigas iriam ficar sabendo de sua visita, de suas desculpas esfarrapadas, perderia boas clientes.


(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MARÇO DE 2017)


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