**NEUROSE DE PREFEITO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Piada não é; fosse, causar-me-ia risos, gargalhadas, embora haja centenas de piadas sem graça alguma. Há quem afirme não existirem piadas que não sejam engraçadas – piadas são risos e risos são piadas-, o que falta é saber contá-las, é preciso ter talento. Algumas pessoas têm talento de sobra nesta instância, conheço algumas. As piadas não me fizeram rir, em verdade quase chorei de vergonha por uma pessoa – se não o fiz, é que não iria atinar com estar chorando por me haver colocado na sua carne e ossos, senti vergonha por ela. O talento foi desperdiçado, jogar talento fora é inconcebível. Fazer rir é uma arte, os artistas dizem ser dificílimo, o verdadeiro artista só pode ser reconhecido, quando representa uma comédia. Fazer rir nas letras é ainda mais difícil que no teatro, na televisão.
Invenção também não é. Qual o propósito em publicar uma invenção, vale ressaltar, ridícula? Só para preencher o espaço vazio, aumentasse a fonte da letra na página para preenchê-lo. Quem iria rir com despropósito? Quem iria chorar com despautério? Inventar também exige uma intenção, digam os alcoviteiros. Comprometeria a idoneidade do tablóide. Para quê? Bem, chega a um ponto de só cretinices, sensacionalismos, irresponsabilidades, não mais importam os comentários, as censuras, as recriminações, punidade não está havendo, tudo é mais que permitido, pode-se seguir a trilha das cretinices, nada vai acontecer mesmo, no máximo narizes torcidos, olhares de banda, insatisfação, ódio, raiva, inimizade, mas isto não quer dizer coisa alguma, as edições estarem circulando é o que interessa.
Não estou questionando a veracidade da informação, do que fora escrito. Não vou gastar tempo neste empreendimento, a nenhuma conclusão iria chegar. Fique a indagação, são o sal e o tempero de quem lê, de quem comenta para saber a reação do interlocutor, para quem quiser ir até à redação e perguntar, ficar na esquina da José Bonifácio com D. Pedro II, ao lado do Frigorífico, e perguntar a todos os transeuntes se é verdade o que lera no tablóide: “É verdade que houve um enterro ontem às oito horas com o cemitério às escuras?” A intenção verdadeira é me divertir um pouco com as cretinices dos tablóides, há algum tempo que não me divirto segundo apenas.
Fico imaginando um velório sem choro. As pessoas presentes, parentes, amigos, íntimos, esbanjando alegrias, felicidades, conversando tranquilamente, contando até piadas, fazendo negócios lucrativos. Talvez houvesse sinceridade, seriedade, sentimentos verdadeiros, alfim o morto queria isto mesmo, estivesse presenciando o seu velório, sentir-se-ia feliz e satisfeito, até mesmo não merecedor destas manifestações sensíveis de todos. O espetáculo da hipocrisia, da farsa, da falsidade, da mentira em todos os velórios já está mesmo démodé, o que mais há são lágrimas de crocodilo, palavras de escol, o morto entristecido e angustiado, em vida chegou a pensar que todos iriam manifestar de verdade os sentimentos de perda, sentir-se-iam angustiados e entristecidos com sua morte. Quê equivoco! Quê frustração! Quê decepção! É levar-lhes para os sete palmos.
O que é a atualidade! Agora, o povo chora no velório, dá pitis, esgoela, desmaia, e tudo isso vai parar em programa de rádio, de preferência programa de maior audiência, o alto índice de ibope é coisa das mais importantes. Quem quiser que ria, que ache até engraçadas as minhas ironias, sarcasmos, cinismos, mas não posso fechar os ouvidos a essa gritaria toda. No velório, a choradeira, a gritaria estavam reduzidas ao ambiente, à sala da funerária, no programa da rádio, não há quem não ouça, torna-se até hilário imaginar a comunidade com os ouvidos no aparelho, ouvindo isto. Estão todos precisando ouvir choradeiras, só se ouve risadas por todos os cantos, a realidade está do balaco-baco, só mesmo rindo. Alguns rindo, outros chorando. Os que estão acostumados a rir choram e os que estão acostumados a chorar riem. A intenção fora realizada: fazer rir com a choradeira das pessoas no velório.
A cobra não ter asas é perfeitamente inteligível, não podia mesmo ter. Deus sabe o que faz. “Deus não deu asas à cobra” tem sua serventia nalgumas situações ou circunstâncias. Dizem que cobra não tem ouvidos – confesso jamais ter ouvido esta -, mas a minha cobra tem. Não vou explicar a sua reação, ouvindo a choradeira dos presentes no velório, pois que é de minha querência respeitar a família, os amigos e íntimos do falecido, seria desumano, seria insensibilidade de minha parte, além de me servir de tudo sem escrúpulos para as minhas matérias. Fosse alguém sobre quem fiquei sabendo de seus despautérios, disparates, suas desmiolices, aí eu explicaria com todos os venenos em riste na ponta das palavras. Não é. Rio de choradeira em velório, quando a pujança das lágrimas são hipócritas, psicopata dando espetáculo. Já presenciei isto: deu-me vontade de lhe colocar para fora do cemitério aos chutes e pancadas. O canalha aos olhos da família seria eu, não ele.
Enterro às oito horas da noite? Não é muito tarde para isto? Por que não fora à meia-noite? Por que não fora às três da manhã? Dizem que a meia-noite de fantasmas é pura lenda, mito. A coisa mesma são as três da manhã, porque Jesus morreu às três da tarde. Vá lá... O cemitério estar às escuras é muito estranho. Não haver única vela acesa mais esquisito ainda. Seria um ritual? Pode até ser que o falecido haja pedido que seu enterro fosse assim, às oito horas da noite, sem luz, sem vela, nada faziam senão realizar seu último pedido. Alguém já me disse que o seu último pedido é que o corte em pedaços para que cada pessoa presente carregue um para a sepultura. Por que faria um pedido deste? As pessoas pisando em tudo que está pela frente, tropeçando nas sepulturas, caindo – pior seria cair dentro de uma sepultura aberta, como sair? Não vejo, não intuo, não concebo outra coisa a ser dita senão tratar-se de um enterro tragicômico. Como colocar o esquife dentro da sepultura? Como cumprimentar alguém, visto não ser possível identificar quem é quem, dada à escuridão, e se cumprimentasse uma alma penada, confundindo com um dos enlutados?
Não é que aconteceu isto?! Ainda bem que o tablóide publicou, ninguém poderá dizer estar sendo criação minha, estar ensandecido, minha imaginação não é mais nem fértil, é cadavérica, é sepulcral, o meu humor é negro, suas luzes estão às cegas. E fora por esta razão, o cemitério estar às escuras, que a choradeira foi parar no programa de rádio.
Deixemos os risos e as gargalhadas de lado, pensemos e reflitamos! Isto de o cemitério estar às escuras não é falta de respeito com o falecido, principalmente com os familiares do falecido? Não há duvidar disso. Seria que o tablóide está mesmo preocupado com a falta de respeito ao falecido, aos familiares e amigos? Aí estaria a verdadeira e risível piada, o tablóide merecedor de uma condecoração, o editor merecedor de todos os elogios e cumprimentos. Este tablóide está doente, muito doente, está sofrendo de uma das piores neuroses já existentes nos anais da psicologia, psicanálise, estou ouvindo Freud derramando lágrimas na sepultura, esta não está no meio das tantas que a sua genialidade descobrira, “neurose de prefeito”. Há neurose de transferência, neurose de perseguição, para citar algumas, mas a de prefeito é realmente nova. Não faz muito personalidade política faleceu, o colunista correu à página e escreveu epitáfio – sua intenção não era a de prestar homenagem ao falecido, era servir-se disto para atacar o prefeito. É realizado enterro com o cemitério às escuras, lê-se no final deste verbete: “Huummmmm... pegou mal, hein, prefeito? Quem é mesmo que toma conta dos cemitérios agora, hein?”. Um louco resolve descer as calças frente à sepultura, a culpa e responsabilidades são do prefeito que não cuida de construir um manicômio no município. Escreve-se três palavras, lá vem ataque ao prefeito. Escreve seis palavras, lá vem ataque ao prefeito. Escreve-se nove palavras, lá vem ataque ao prefeito? Isto é que é uma insofismável “neurose de prefeito”. Da razão social do tablóide à última palavrita da coluna social só se vêem ataques ao prefeito.
Estou confuso mesmo. Não sei se é o tablóide que está muitíssimo necessitado de um tratamento psicanalítico, estar sobre o divã do psicanalista, lendo-se com todas as virtudes de uma declamação, de uma oratória, mostrando-se, identificando-se, o psicanalista ouvindo, sugerindo isto, sugerindo aquilo, analisando aqui, interpretando ali, “ulucubrando” lá, fantasiando acolá. Não sei se é o editor-chefe que está urgentemente necessitado de se tratar, ver se há um jeitinho psicanalítico de reverter o seu estado, de salvar a sua alma, para que possa pelo menos chegar ao portão do céu para ouvir a sua sentença, do jeito que está vai se perder a caminho, não chegando nem no inferno, vai ficar vagando no além. Se são o tablóide e o editor-chefe que precisam tratamento. A “neurose de prefeito” de ambos, tablóide e editor-chefe, já ultrapassou todos os limites. Não acredito mesmo que algum psicanalista vá perder tempo em analisar estes dois. Não terá jeito mesmo. Quando a neurose não for do tablóide, for do editor-chefe, quando a neurose não for do editor-chefe e sim do tablóide? Já não se trata mais de neurose, sim de psicose, a sandice será do psicanalista, confundindo “neurose” com “psicose”. A atitude de bom senso do psicanalista será a de mandar o editor-chefe ler tablóide no manicômio.
Não sei o que dizer. Não mesmo. E quem não souber ler, interpretar, analisar, vai entronizar a “neurose de prefeito”, aí a coisa vai ficar mais preta do que já está, o prefeito nem vai pedir demissão do cargo, vai sair correndo do município, sem olhar para trás, daquelas corridas sem fim, só irá parar quando já estiver fora do mundo. E no outro dia lá vem a Manchete: “Prefeito ensandecido sai correndo do município”. Lá vai o tablóide sentar na cadeira do prefeito e administrar o município.


(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE MARÇO DE 2017)


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