*DEZESSETE E SETECENTOS DE TROCO AOS VINTE "MIL RÉIS" DADOS PARA COBRAR DOIS E TREZENTOS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


EPÍGRAFE:


"...inspiração para anexar à minha filosofia uma parte dogmática e litúrgica..." (Manoel Ferreira Neto)


Bons dias!


Nalgumas páginas atrás – não acredite quem quiser, verdade é que jamais leio uma edição terminada; em certas ocasiões, denomino-as “bem especiais”, visto as considerações do leitor a um texto, faço-o para me certificar das interpretações feitas, das gargalhadas que causaram a ponto de alguém íntimo se ad-mirar por estar ele rindo sozinho, bem inusitado, inédito, nem sempre concordo, mas respeito, sinto grande estima por ele, no mais repudio não a interpretação, as gargalhadas, mas o texto, poderia haver sido melhor; quando escrevi achei o máximo, o tempo é mestre em desfazer os delírios da vaidade -, dizendo eu que tenho cinqüenta e umas beiradinhas de anos, acrescentando até com uma pequena mangofa atravessada na garganta: “Sinto que o meu estilo não é tão sublime como em tempos idos, aqueles da volúpia e êxtases idolatrados”.
Há quem, quiçá, ache esta frase incompreensível – tudo que é empolado demais acaba sendo incompreensível, há-de se escrever não com os sentimentos à flor dos instintos, mas no sangue que percorrer o corpo inteiro -, sabendo-se o meu atual estado, larguei um pouco da pena fissurada com a linguagem profunda, dou asas às mangofas críticas; e isto pelo que ouço dos leitores está agradando bastante, o estilo é mais escorreito, a profundidade caiu nas pernas das entre-linhas; chamo a atenção nestas linhas para a sutileza daquele pensamento, pois que foi, senão esquecido, negligenciado em nome da análise fácil, o que sempre deturpa as idéias, protelada para outros tempos vindouros
O que desejo dizer – esclarecer não vale, a sutileza seria eliminada por inteiro, elucidar não tem o mínimo sentido, acabaria no puro solipsismo barato – não é que agora esteja mais velho do que quando comecei a garatujar palavras no papel; na juventude não estava velho, estava jovem de ideais e sonhos, embora velho desde sempre fora, não se escreve sem experiências, vivências, é na velhice que são verdadeiras e eternas, e são respeitadas pelos mais novos, objetos de reflexão para a vida ser diferente, o jovem não tem quaisquer, quando as tem são fúteis, aquela estorieta de alguém lhe chamar carinhosamente de "jovem cinquentão". Quero dizer, sim, em cada fase de minha vida de letras, quimeras e fantasias di-versas, experimento a sensação de o estilo estar envelhecendo, suas experiências foram várias e verdadeiras, quiçá a pena tivesse talento para as re-velar a todas, e mesmo que tivesse negar-me-ia a ser-lhe servil, odiaria ser amouco de penas. A morte não envelhece, e que ironia do destino, o estilo envelhece, só que ele não morre. Valha-me Deus! é preciso explicar tudo. Quanto mais se explica menos inteligível se torna, passa-se a vida inteira explicando, só a morte pode dar termo a ela, e é quando se torna inteligível.
Conto-lhe, leitor, uma historieta que ouvi num dos botequins da vida – quem ma contou fê-lo com aquele espírito comum às pessoas, o escritor se empola todo ao saber destas historietas, são objetos de grandes e inesquecíveis inspirações, são tesouros da crônica, da sátira especialmente, isto se a engenhosidade e arte são eficientes.
Um fazendeiro muitíssimo rico parou num botequim para um aperitivo depois de uma longa viagem, levando um gado de corte vendido para o matadouro. Montava um cavalo bonito, crinas grandes. O proprietário mostrou-lhe todas as qualidades do animal. Vendeu por um preço absurdo, tudo que é caro é de boa qualidade. Passados três meses, o fazendeiro voltou ao botequim da estrada. O proprietário rasgou todos os verbos, xingou o fazendeiro de tudo quanto é nome feio, o cavalo não era nada do que havia dito, um verdadeiro pangaré. O fazendeiro ouviu com bastante atenção as reclamações do proprietário, e quando terminou de vociferar, disse-lhe: “Não fique falando mal do seu cavalo; assim não faz negócio com ele”.
Não estou falando mal de meu estilo hoje, com ele até me sinto orgulhoso e lisonjeado, os leitores estão apreciando muito, elogiam, reconhecem, sentem que a sensibilidade e visão da vida e mundo está amadurecendo, estão aprendendo de modo bem sutil as observações críticas, vêem tudo com outros olhos – houve quem já me pedira que escrevesse um “bons dias” sobre os olhos, a única dificuldade deles é como atuarem com os olhos, que trejeito lhes dar para enfatizar os sentimentos de mangofa que lhes perpassam o íntimo; respondi-lhes que não saberia isto escrever, porque não me olho no espelho no momento das observações críticas; fosse assim, se me preocupasse em saber como os olhos reagem, teria de estar sempre com um espelho em mão, mas se me pedissem para escrever sobre a língua, que depois da observação se revela, teria muito a dizer.
Estou apenas explicando que, jovem, imbuído dos sonhos e ideais da eternidade, aquilo de ser considerado e reconhecido sábio, e, portanto, idéias e linguagem transcendem as experiências do mundo, o estilo deve fazer-lhes jus. Os tempos são idos. O que restou, apesar de todas as esperanças da imortalidade, não são os sonhos e ideais da importância e glória, mas a eternidade da vida, que é feita com todos os sofrimentos e dores, não com os braços acolhendo a lua, as pernas cobrindo o sol e as estrelas, de cabeça para baixo, rindo das hipocrisias e farsas da humanidade, mas com os pés no chão e sapatos sujos de poeira e lama.
Publiquei o meu jornal – é o momento mais feliz de todo o processo de feitura, no mais, tudo são grandes esforços e preocupações com a qualidade em todos os níveis, saber que os leitores irão ler, apreciar, rirem, gargalharem, admirarem com a criatividade, com as idéias e pensamentos frescos e suaves, só mesmo com talento para realizar um jornal de porte e postura. Apesar de meu secretário sair pela manhã de sábado, entregando os exemplares a domicílio aos leitores, há muitos que só eu o faço, é uma oportunidade minha de re-ver os grandes amigos, sentir o prazer de suas presenças, trocarmos uns dedos de prosa, é sempre uma grande alegria re-ver-lhes. Ademais, a idade já não me permite tanto andar por todos os cantos da cidade, em direções opostas, da rua Santo Antônio da Estrada à rua Chile, do bairro Curiango ao Esperança, canso-me bastante. Houve tempo que saía às sete horas da manhã e só retornava a casa às dez da noite, deram bolhas de água nos pés.
Quarenta e oito horas depois, aparecia em outro jornal uma declaração do Barbosa Pernóstico, dizendo, em substância, que, posto a velhice re-velar com propriedade os valores mesmos de um homem, isto é, mostra que ele nada é, suas experiências não contribuem com nada, só chamam a atenção de pessoas que não sabem separar os alhos e bugalhos. Acho conveniente esclarecer ao leitor que este homem, diretor-proprietário do jornal, não está envelhecendo, sempre foi um velho caquético, nas letras, não tem idéias, só tem instintos, o que, aliás, é a razão de sua popularidade com os sensacionalismos de sua linha editorial, isto lhe proporciona a cerveja e as porções nos barzinhos com os jovens de sua grande preferência. Reprovo inteiramente suas idéias e procedimentos.
Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas vezes, coloquei os óculos, apanhei na gaveta de minha mesa uma lupa, e reli a crítica feita as minhas palavras na frase: “Sinto que o meu estilo não é tão sublime, como em tempos idos, aqueles da volúpia e êxtases idolatrados”. Se Barbosa Pernóstico tem-me como um grande e perfeito imbecil, um sujeito cujas idéias não passam de disparates e despautérios, que lhe importava dizer eu que o meu estilo não é o mesmo de outrora, na aurora de meus sonhos e utopias das letras? Não se dá atenção ao que não tem qualquer valor, desconhece-lhe com categoria, não se emite única palavra verbal acerca, é-lhe indiferente até nos pensamentos. O que justifica desperdiçar espaço de coluna para criticar o que não tem sentido? Por que pensar nos despautérios e disparates? Por que tirar o tempo do leitor com coisas chinfrins? Tais perguntas não são de sua cepa; ainda que fossem de antemão às revezes, sei e conheço as qualidades de respostas. Era mister que fizesse a crítica, sensacionalismo é o seu valor supremo na imprensa, ridículos são as virtudes primordiais. Se houvesse compreendido o sentido delas, não tomaria da pena para escrever, pois as suas letras iriam denunciar-lhe nos brios, o seu estilo ser caquético, enchafurdado nos dogmas e chavões da atualidade jornalística, não escreve, não garatuja palavras no seu jornal, rabisca idiotices para ser servil àqueles que não têm quaisquer condições de ver a realidade. Se fosse inteligente como se empola todo para mostrar, teria descido a pua na frase-feita, outro despautério por não o ser, e analisaria o lugar-comum daqueles que desejam imortalizar-se às custas dela, comunizarem-se na língua do populacho, serem espirituosos, deixarem polêmicas as mais di-versas. Escrevendo o que escreveu, não há duvidar que esperava com ela que seu jornal alcançasse maior crédito, esgotasse a edição em poucas horas de único dia. Saíram pela culatra todas as suas intenções, pois três dias depois os exemplares estavam na banca de revista, foram vendidos dois únicos, garantiu-me o jornaleiro. Enxerguei com os meus próprios olhos o seu funcionário distribuindo os exemplares na praça da cidade. Recebi inúmeros telefonemas de leitores indignados com a sua ousadia de escrever asnice ao meu respeito, o que me deixou sobremodo lisonjeado, alguns sugeriram até que judicialmente recolhesse a edição. Não era preciso tanto, mais valiam as opiniões e considerações dos leitores.
Nem todos os cidadãos, leitores, personalidades que acham bons ou maus os meus “bons dias” fazem declarações escusas, pois que são de idônea inteligência. Realmente só há uma explicação cabível e real para o que disse em sua coluna “Leitura Fútil”, que antes era “Cultura”, uma verdadeira rasgação de seda a algumas pessoas por seus livretos, além de leitura desvirtuada do contexto, com intenções claras e transparentes de fazer ideologias. Nossas relações jamais foram lhanas e benévolas, embora só agora lhe dou o troco de dezessete e setecentos dos vinte réis que me deu para cobrar dois e trezentos, e com categoria não terá resposta. Rogo a Deus que não seja vítima de prisão de ventre com tanto sapo seco que lhe sirvo de menu; não me lembro de nenhum dissentimento entre nós, diretamente, faz suas críticas quase nas minhas barbas, a minha reação é tergiversar o olhar para outras direções da rua, observando os transeuntes que seguem a jornada de suas vidas com muito trabalho e esforços para recuperarem o prejuízo. Acho graça mais pela vulgaridade de seus instintos.
Sendo realmente um estilista nas letras, o que Barbosa Pernóstico dissera em sua matéria a favor de minha velhice estilística serviu-me de inspiração para anexar à minha filosofia uma parte dogmática e litúrgica. A sátira há-de ser, comecem os despautérios da vida num século, terminem nalgum milênio longínquo, uma religião, a do futuro – Apuleio escreveu O asno ; hoje o asno é verdadeiramente reconhecido como o imbecil da raça, e como na Literatura tudo são metáforas, símbolos, signos e significados, é pensar o homem, a única realidade nua e crua. O homem sozinho é verdadeiramente uma dádiva divina, mas, se juntar a outro, é uma praga de Ferluci.
Os fenômenos da consciência – escrevendo a frase, não o fiz sustentado nalgum subjetivismo da insatisfação por as mudanças de estilo estarem sendo bem visíveis, e nestes termos o medo de perder as alegrias da glória, os elogios e reconhecimentos dos leitores, não saber em que trilha estou andando, para onde estou indo são gritantes, mas com consciência de que são mudanças peculiares à velhice das experiências e vivências – são de difícil análise; por outro lado, se revelasse um deles, com sutilezas e perspicácias indescritíveis, teria de revelar todos os que a ele se prendessem, e acabaria fazendo um capítulo de critica literária, e quando alguém se mete a se teorizar, pode-se sem qualquer pejo julgar que está imbecilizando tudo o que escreveu. Afirmo somente que é a fase mais brilhante de minha vida. Os pontos de vista são gozados, então, quando se truncam nas teias de aranha da realidade e da in-versão das hipocrisias e farsas, causam fissura aos instintos adormecidos no vulcão do ridículo, os risos são inevitáveis; têm a monotonia da desgraça e da vergonha pública, que são tão aborrecidas como a do gozo precoce, e quiçá pior. Mas a alegria que dá a alma dos que necessitam deles para a continuidade da vida, daqueles que têm sede e fome de perceberem com categoria a hipocrisia humana para não se frustrarem e fracassarem nas relações, é recompensa de algum valor; não me diga alguém que é negativa, niilista, por só recebê-la o obsequiado. Não. Recebo tais risos dos leitores de um modo reflexo, é tanto que a frase me veio pura e singular, e ainda assim grande, tão grande que me dá excelente idéia de mim mesmo.


(**RIO DE JANEIRO**, 28 DE MARÇO DE 2017)


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