**DEUS DOS RELINCHOS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Uma destas épocas ricas, esplendorosas, humanas em que o homem separado de sua sombra riria a bandeiras soltas de si mesmo e de sua sombra, e esta diria: “Ah, coitada de mim!... Mereço lágrimas de toda a humanidade, lágrimas ardentes e conscientes do que é isto a minha sombra que sou eu. Rio de você, caríssima sombra, porque você está aí no chão, refletida pela luz em cima do meu corpo, eu estou aqui, sentado no meu trono, sem luz alguma a refletir-me neste espaço, eu, um ser só e solitário, longe de tudo e de todos, representando a dor de toda a humanidade, como um deus grego, Zeus, o mais poderoso, quem usa das sombras dos deuses menores para satisfazer os seus sonhos supérfluos, fétidos. Aeiou... Aeiou.... Fétido, féretro, feto. Preciso de carinho, amor, felicidade...”
O suspiro é lento. O rosto se contrai, mudando as afeições, antes de um deus glorioso, agora um deus decadente, enfim Deus está morto. Fica o homem triste, após ouvir a sombra dialogar com ele, o diálogo da solidão e da completude, e a sombra diz: “Oh, pedaços de mim, por que vos entristecestes tão rápido, o que na vossa imagem, a sombra que sou eu, vos entristeceis tanto? Seria que eu não realizo o vosso sonho maior, o de harmonizar-vos convosco mesmo, o de sentir que vós sois a imagem da vida refletida realmente, vossas alegrias e tristezas bem representadas neste espelho que são você e a representação de mim? Se tristes estais vós assim, porque não me abraçais novamente? Aconchega-me no vosso útero de criação, no vosso útero à palavra, pois que o Filho de Deus ensinou a todos os homens que a palavra é a salvação de toda a solidão, de toda a incompreensão do que acontece e do que existe, de todas as sombras que se projetam a partir de meu corpo. Basta que vós quereis, desejais com todo o ímpeto do coração e da alma, se possível unir a eles o espírito, o espírito que purifica a vida. Não vos negarei a minha própria sombra, embora vós não podeis ver esta minha sombra, sombra esta que vos guardais, vos iluminais, vos santificais... Aliás, meu amigo, a vocação dos homens é ser justamente santos, como Jesus o dissera...”
“Sombra, prestai bem atenção nestas minhas palavras, aliás, uma resposta às vossas!... Olho a minha mão. Com efeito, olhando-a, prestando atenção aos seus traços, passos que foram dados na existência, registrados nela, observo e vos digo, sombra, que vos negarei serdes vós o sacrário de mim, pois que eu sou este sacrário de minha vida, de meu “eu”, de minha redenção e ressurreição. Digo-vos ainda mais: “Aqui, sombra, é o fim de tudo, onde começa o reflexo do mundo, o lugar de repouso de todas as sombras sem sacrários que sonham os raios solares do Éden, as felicidades que todos nós somos merecedores, somos vocacionados para a Felicidade Eterna, o Reino de Deus...”
“Homem, mesmo que vós não aceitais ser eu a vossa sombra, ser eu quem de algum modo o identifica com o mundo e a vida, ainda assim serei eu como o exemplo do palhaço que usa um objeto no nariz para mostrar a sua hilaridade, serei eu quem diz as verdades por caminhos tortos, como se é costume dizer sobre Deus: que Ele resolve os problemas dos homens por caminhos sinuosos, mas Ele é a Redenção, a Ressurreição, a Sombra que cobre todo o universo. Serei, homem, mesmo que não aceitais quem lhe dirá os caminhos do campo!...”
E eu acredito no Amor, na Esperança, no Dom do Espírito!...
Sem o que imaginar, sem o que pensar, seguem Guido Neves, Beatriz Escullaxo, o amigo-carroceiro, conduzidos por Tílburi dos Carrapatos, à beira da montanha a leste, os vales longínquos, o olhar inda que próximo da vegetação, da grama verde, perscruta à distância os desejos de encontro da vida que contempla os amores vindouros e sedentos de serenidade. Nada imagina, nada pensa, contudo, delineia e burila no espírito imagens que revelem e manifestem as idéias e ideais de beleza, de esplendor, do mundo.
Isto de com verdades simuladas, pontos de vista dissimulados, com as mãos loucas ao longo do corpo gesticulando e tremendo, o coração insano e desvairado, desejando um porto onde estabelecer alguma segurança, rico e confortável em mentiras tão singelas, viveu entre os homens por anos a fio, ouvindo-lhes, observando-lhes, tendo vontade de virar-lhes as costas, seguindo em frente, de tudo largar e sumir no mundo, é um pouco diferente. A questão se lhe afigura que em si está sincero e esplendoroso, os próprios segundos e minutos completam todo o círculo do relógio, correm céleres as horas, pois na obscuridade o tempo parece mais pesado que a luz. Que em si está franco e iluminado, e os sentimentos acompanhados de desejos, sonhos, vontades, e as emoções admiradas com as imagens e cenários de toda a vida despertam para as lonjuras, pois nas curvas de estradas antes de quaisquer outras os olhares parecem sedentos, mais sedentos de paisagens que de utopias e sonhos.
Há procissão de águas na moldura da vidraça. Encontra o sentido do amor e da amizade. Numa refração de ouro claro, surge o momento em que palpitam as asas de uma águia, esta águia que lhe segue a cada passo dado à busca do pleno e do absoluto, re-colhendo a sin-fonia de águas revestidas de silêncio. Surpreendo a sombra e o deserto sob a ambigüidade. A face dos ventos arrasta e dispersa as nuvens, agora tudo se amassa em encantamento ou em indiferença ou em absurdo, e faz sair um brilho nos olhos, que experimenta a vereda, que evoca com as asas ensopadas, o horizonte em que se encontra é a distância verdadeira, segue-o como cumpre fazê-lo. O sol deita-se e as nuvens azuis colorem os terraços brancos. Afigura-se-me haver distendido uma mola no interior. Parece-lhe, em princípio, haver sentido uma eclosão, por haver dito com o mais singular, manifestando-se para além do inteligível.
Posso relinchar, gesticular, imbuído de todas as oratórias, de todas as cortesias do bom senso e da diplomacia, e na verdade, tudo o que relincho com finesse lhes ressoa como um elogio, um elogio às palavras. No mínimo, deveria sentir-me lisonjeado por saber usá-las, de com elas ser possível um encontro, um desejo de completude e sublimidade.
Sigo a minha estrada infinita pensando, relinchando, mas nalgum ponto da eternidade o que mereci fora reconhecido e de aí em diante o deus dos asnos, não condenarei nenhum jumento pela sua jumentice de pensador, mas julgarei o nível das asnices de cada um. Ao inferno, os que foram apenas puxadores de carroça.


(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE MARÇO DE 2017)


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