ESCRITOR POETA E CRÍTICO LITERÁRIO, Paulo Ursine Krettli, COMENTA A SÁTIRA "DA INFECÇÃO À ESCLEROSE MÚLTIPLA"


“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”, (Brás Cubas): a sinistralidade do sarcasmo.
E há que se considerar o sarcasmo como um dos marcos mais proeminentes do Barroco Moderno, chegando a nos chocar com uma tirania perversa do eu em relação do outro, muitas vezes se usurpando de si para valorizar-se não importando em que e em que circunstâncias.


Convém destacar que o sarcasmo advém da mitologia grega e, certamente, percorre o mundo literário e artístico-cultural desde o Trovadorismo, logo na fase inicial da Idade Média, na confecção das cantigas de escárnio, passando por Bocage com suas sátiras sociais no Arcadismo em Portugal, assim como Tomás Antônio Gonzaga no Arcadismo no Brasileiro, ainda por Gregório de Matos Guerra no Barroco Brasileiro, ganhando altivez no Realismo com Machado de Assis, para esmiuçar-se nas alcunhas do Modernismo.


Posso considerar um ponto comum no tocante ao sarcasmo: as crises das sociedades em seus momentos e movimentos sociopolíticos, morais e econômicos, cujas premissas provêm do embate entre classes sociais que se antagonizam.


Paulo Ursine Krettli


**DA IN-FECÇÃO À ESCLEROSE MÚLTIPLA**
SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


De Brás Cubas ao escritor Manoel Ferreira Neto com as vênias do reconhecimento.


Ah, sim, gostaria de com-partilhar com alguns, muito poucos, e só Deus saberia o porquê, algumas gargalhadas a plenos pulmões, risinhos de soslaio, risadas diplomatas e estratégicas, isso se considerar sejam pensamentos e intuições de um ser humano, se de um asno, só Deus saberia também o porquê, dizer as diferenças de um e outro, e, se fizer qualquer menção a isto, serei condenado a tecer outra rede do último nó até ao seu início, sem desmanchar um só ponto, também Deus sabe o porquê gratuitamente doou este dom...
Sinto que estou me tornando alguém entre línguas, muitas estratégias e tramóias, mas os dentes não perdoam, mordem com solenidades, e, acontecendo, aí os verbos ficam sem a carne. Mas isto não é que estou mudando de personalidade e caráter, mas um modo de arrancar os risos rasgados, e só assim é possível.
Aconselharam-me a contratar alguém especializado em "etiquetas da lingua", a minha andava sem qualquer princípio, ética, moral, verbos sem carne são inconcebíveis, os câes é que apreciam sobremodo o osso. A especialista em "etiquetas da língua" está a ensinar-me com excelência a arrancar risos.
Deixemos de preâmbulos e escusas as mais diversas, e digamos que só resta a alguns saírem dividindo as palavras aleatória e inconseqüentemente, dizendo assim que estão transformando o sentido das palavras, dando-lhes o seu real valor, isto dentro de certos princípios intelectuais, que não interessam a ninguém e nem a mim, contudo, se olhadas de soslaio, divididas e até colocadas em negrito e itálico, enfatizando que o vocabulário está muito modificado e humanizado, que, enfim, encontrou a expressão do momento, e todo o resto não interessa mais, pode-se dizer algo diferente e inusitado, algo que compromete até a medula espinhal.
Aliás, devo lembrar de antemão e revezes que afirmara “resta a alguns saírem dividindo as palavras”... Disse-o. Se houver alguma dúvida, é o caso de in-vestigar, lendo, desde o início, o parágrafo anterior a este. Não resta qualquer.
Se houver alguém que, ao escrever “infecção”, dividisse-a, “in-fecção”, colocando ou não as aspas, mas usando o hífen, para mostrar que os seus conceitos acerca do mundo e da realidade se evangelizaram desde dentro, não há de se crer, em hipótese alguma, que a sua inteligência e cultura, imiscuídos nas entranhas mais sórdidas do intelecto, estejam crescendo, re-colhendo e a-colhendo outras linguísticas e semânticas, estejam amadurecendo, daí a sabedoria plena e toda poderosa, e muito menos iriam fazê-lo, dariam crédito total e absoluto à linguagem vulgar: “quem tenta imitar o que não é imitável, acabará sendo ridículo”.
Não faria isto nunca. Será entregar-se de graça e falta de propósito numa bandeja. Se alguém fosse in-vestigar muito profundamente a palavra escrita, de modo normal, respeitando os princípios clássicos e eruditos da língua, dissesse, então, que, embora não a escrevesse, separando-a, mas nas entrelinhas, com um risinho de escárnio usara, para ridicularizar e espezinhar alguém que o faz de modo espontâneo e singular. Negaria, de pés juntos, que não tivera essa intenção, mostrando os porquês e entretantos por não o ter feito. E por quê?
Aí, está o escárnio, provocando os risinhos, gargalhadas, sorrisos, e tudo o mais que se possa imaginar ou criar, a respeito desta questão tão singular e originalmente dizendo, se não se acreditar nisto é só nas entrelinhas intuir o além das linhas, como dissera alguém a respeito de um seu amigo a quem adorava e venerava por sua enorme capacidade de brincar com as palavras, jogava-as fora e não se esgotavam nunca, isto era impressionante, ainda o é, se assim posso dizer. Há quem não tenha única palavra no instante da necessidade, e este joga palavras fora, nunca se esgotam. Isto é que é!...
Inveja. Dizem que a inveja é própria dos incapazes, inúteis. Não é de minha intenção exclusivíssima negligenciar este princípio secular, milenar, eterno, assim creio eu. Acrescentaria algo ainda muito sutil, não havendo ainda palavras que possam de algum modo conceituar, diminuindo o termo, aumentando, sei não, mas “definir”. Acrescentaria que a inveja não divide as palavras; reconhece quem sente inveja que são indivisíveis; os seus interesses é que são divididos de um extremo ao outro, desde o corpo, alma, espírito, até o resto que se possa encontrar nos vernáculos da língua e dos princípios, dos instintos e dos ossos honrados e dignos.
Ninguém iria separar a palavra para mostrar que os seus conceitos estão passando por mudanças e transformações, estaria decidido, desde então, a buscar caminhos outros que levam à originalidade e autenticidade. Não faria também a proeza de não a dividir, deixando-a como manda os figurinos dos séculos e milênios, intacta, extática e inerte. Não diria “in-feccionar”, usando ou não as aspas, para mostrar inteligência e espírito aberto ao seu tempo e época. Não usaria a palavra de modo normal, desejando que nas entrelinhas estivesse no sentido da outra dividida pelo hífen. De algum modo, as algemas e correntes estariam no chão de todas as pedras: “caíra num extremo ridículo”, aliás, dito não sei por quem acerca de alguém por quem tinha sérias e sinceras admirações pela sua originalidade da brincadeira com as palavras, mas quem tentasse imitar cairia num ridículo sem limites e fronteiras, estaria condenado a ser lembrado por seu ridículo.
Talvez ele não se referisse em hipótese alguma a esta palavra, saltasse-a, mas no seu espírito e alma estivesse desde toda a eternidade inscrito isto, não podendo negligenciar ou ridicularizar, escrevendo “à esclerose múltipla”, o que elimina em absoluto o sentido da palavra - outras idéias, intenções e intuições - e alguém quem aprendera desde a eternidade as correntes-algemas das palavras se encontram nos abismos da alma, de onde os ventos frios, vindos de todos os cantos do mundo e da humanidade, se reúnem e deixam a “saudade” de algo que sacia a sede e a fome.
Não cairia no ridículo de tentar imitar o que é inimitável. Antes, de acordo com os seus interesses e particularismos, reconheceria o inimitável, e nem procuraria o original, autêntico, seguiria simplesmente os seus instintos vulgares e imbecis, o de que sente inveja e nem as cinzas se esquecerão de tamanha inércia e inépcia – possível um homem assim, preferindo a inveja do que se ver por dentro, buscando algum modo de se superar, mas in-felizmente no seu espírito a palavra se acha dividida para que não se depare nunca com o que é e representa no mundo.
Se quem ler estas palavras escritas neste diário que trago comigo desde tempos imemoriais, após haver lido desde o início – quinze cadernos de espiral de duzentas folhas – disser que são palavras de um esclerosado, rindo a bandeiras soltas, não tirarei jamais a sua razão e motivos para isto, inclusive quem sabe até pudesse rir com ele, numa brincadeira de “vamos ver quem ri mais alto e o seu riso possa ser ouvido por toda a humanidade”. São sim de um esclerosado.
Agora, e se houvesse alguém quem mergulhasse mais fundo, dizendo que, em verdade, não se trata de mim, não sou quem está esclerosado, mas nas entrelinhas está bem definido e conceituado se tratar de alguém, aliás, quem resolvera aqui e ali imitar o que é inimitável, assim caindo no ridículo, e ainda há quem parabeniza e vanglorie, isto não é admissível.
Bem... para mim. Aprendi assim a ver-me de dentro.


(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE MARÇO DE 2017)


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