#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
CAPÍTULO
IV
Se
a correlação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores é convincente
para o tomista, é porque ela apenas reafirma seus pressupostos. Essa correlação
não seria convincente, por exemplo, para o leitor de Kant, e no limite só
exprimiria a evidência de que quem a formula não meditou o suficiente sobre a
Crítica da razão pura. Se ali se proibia todo e qualquer conhecimento teórico
sobre a existência de Deus, isso não fazia de Kant um fanfarrão do niilismo,
nem tornava a Crítica da razão prática um exemplo gritante de inconsistência na
filosofia. Dúvida que não deixou de ser insinuada por Victor Goldschmidt. “Por
que – pergunta ele -, se Deus estivesse morto, tudo seria permitido? Para
acreditá-lo (e desejá-lo), é preciso nunca ter compreendido a Crítica da razão
prática...”
Quanto
à vontade de valor, ela é satisfeita ao vermos nossa imagem re-fletida no
mundo, quando o mundo é visto como "deveria ser", seja ou não assim.
O naturalismo de Nietzsche permite que a vontade de valor seja satisfeita de um
modo que não só evita conflito com a vontade de verdade, mas na realidade a
serve.
À
medida que um ser pode ser visto como um agente, como um ser racional, o ser
deve, na maior parte das vezes, se comportar de acordo com nossos padrões de
comportamento racional. Tratando-se de iniciativa, as coisas são, por
definição, como deveriam ser (pelo menos em geral) - se não fossem assim, não
seria uma iniciativa. Se assim o for, então verdades sobre agentes só podem ser
conseguidas a partir de uma perspectiva constituída por valores, por nossa
compreensão de como deveríamos agir ou pensar - e só, sem dúvida, quando a
vontade de valor é satisfeita.
Num
diálogo entre ambos, com efeito, Nietzsche relembraria que Deus, eliminado do
conhecimento teórico pela primeira Crítica, permanece um “postulado” da razão
prática, algo que o agente sempre deve supor para realizar a lei moral. Não nos
esqueçamos de que Dostoievski lera Crítica da razão pura, Critica da razão
prática, escrevera ao irmão, logo que saiu da penitenciária, tinha com esta
leitura seus propósitos e objetivos. Excluído do domínio do conhecimento
teórico, Deus subsiste enquanto “ideal” – e o ideal transcendental, não sendo
objeto de conhecimento teórico, nem por isso deixa de ter uma “significação”.
Eliminemos os postulados da razão prática, diria Nietzsche, e vejamos então o
que acontece com a moral; eliminemos até mesmo a “significação” Deus, e
verifiquemos o que resta do imperativo categórico...
Diante
dessa apresentação, podemos compreender a correlação entre a morte de Deus e a
desvalorização dos valores? Ainda não. Concedamos tudo a Nietsche: o Deus
clássico não figura mais em nosso horizonte nem como existência demonstrada,
nem como significação ou postulado.
Nem
assim o niilismo parece ser a conseqüência necessária da morte de Deus. No
sentido dessa compreensão suficiente consultar Sartre. Sartre situa o “ponto de
partida” do existencialismo na evidência de que “se Deus não existe, então tudo
é permitido”, é para concluir, aparentemente com Nietzsche, que com a morte de
Deus “não encontramos, diante de nós, valores ou imposições que nos legitimem o
comportamento” .
A
libertação pela contemplação estética, pela moral da piedade, da compaixão, da
solidariedade, pela abnegação da vontade por ela mesma, supõe que seja abolido
o egoísmo do desejo individual e que seja reconhecida a unidade profunda da
vontade de viver.
As
formas do princípio de individuação, muitas vezes evocado no Nascimento da
tragédia, são as do mundo fenomenal: espaço, tempo, causalidade. Schopenhauer
admite que a individualidade tem raízes profundas no mundo da vontade, sem
falar da multiplicidade das idéias. Sua metafísica sempre negou ser uma
mística. Nietzsche adota uma interpretação da metafísica que é redutora, como
já era a de Wagner, e dá prioridade à oposição entre o individuo e a vontade
“universal”, isto é, entre a visão apolínea e o êxtase dionisíaco:
Poderíamos
caracterizar o próprio Apolo como a magnífica imagem divina do princípio de
individuação, cuja atitude e olhar exprimem aos nossos olhos todo o prazer e a
sabedoria da aparência única à beleza.
De
outro lado,
Transponde
em quadro o Hino à alegria, de Beethoven, e não deixeis vossa faculdade de
imaginar para trás, quando milhões de seres se prostram tremendo no chão: é
assim que se pode aceder ao dionisíaco [...] O homem não é mais artista, mas
tornou obra de arte; o que se revela aqui, no frêmito do êxtase, é a força
artística da natureza inteira à busca do supremo apaziguamento voluptuoso
encontrado no Um originário. Com a argila mais fina o mármore mais precioso, é
modelado, é talhado o homem e, com os golpes de cinzel do demiurgo dionisíaco,
retine o apelo do mito eleusiano: “milhões de seres, vós vos prostrais por
terra? Mundo, pressente teu criador.
Como
é possível o poeta lírico como artista? A resposta não pode estar numa
dialética interna à poesia, mas na identidade, reconhecida na Antiguidade,
porém esquecida desde então, do poeta e do músico – em verdade, uma de nossas
intenções ao longo da leitura da vida e obra de Dostoievski é que a dialética
interna habita na prosa de Dostoievski, dialética que se multiplica,
dialéticas-moventes, como a concebemos, em busca da totalidade da vida, a Vida
mesma, nossa intenção de demonstrar isso nas páginas que se seguem.
Nietzsche
cita o testEmunho de Schiller para quem um estado de “alma musical” precede a
idéia poética. Poderíamos citar Paul Valéry dizendo do Cimetière marin: “Ele
nasceu, como a maioria de meus poemas, da presença inesperada no meu espírito
de um certo ritmo”, e ainda: “Do que me lembro é de ter tentado manter
condições musicais constantes, isto é, que me esforcei para obedecer a cada
instante à vontade ou à intenção de satisfazer o sentido auditivo” .
(**RIO
DE JANEIRO**, 04 DE JULHO DE 2017)
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