#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO


DEUS ESTÁ MORTO - CAPÍTULO III......


O Deus cristão é apenas uma de suas máscaras e a “morte de Deus” deve ser compreendendida, antes de tudo, como o fim do “verdadeiro mundo” instituído por Platão. Em vários de seus textos, Nietzsche define sua filosofia a partir da idéia de uma “inversão do platonismo”. Desde então, é daqui que se precisa partir para compreender a relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores.
Que é isto – “inverter” o platonismo? Não significa colocar o platonismo “sobre os seus pés”, como um famoso ortopedista alemão pensou em fazer com a dialética hegeliana. Sendo apenas assim, o ganho seria bem magro: enquanto Platão valorizava o supra-sensível e desvalorizava o mundo sensível, Nietzsche faria apenas uma mudança de sinal, mantendo uma hierarquia que já é platônica.


A oposição – diz Nietzsche - entre o mundo aparência e o mundo-verdade se reduz à oposição entre o mundo e o nada .


Nesse sentido, “inverter” o platonismo não é inverter a hierarquia platônica e declarar amor ao mundo sensível. Mas, então, inverter o platonismo seria recusar o dualismo ontológico? Se decapitamos o “verdadeiro mundo”, sobre o mundo-aparência, e talvez permaneçamos platônicos desgostosos, por não termos mais o mundo ideal.
Augusto Comte, depois de uma célebre refutação da psicologia do espiritualismo eclético, acrescenta enfim às seis ciências fundamentais uma sétima ciência do indivíduo humano, que ele denomina significativamente de “moral”. Desenredemos aqui a extraordinária complexidade das expressões que cercam uma psicologia que se pretende radicalmente nova: o título de “rainha das ciências”, que lhe foi atribuído, pertence tradicionalmente à filosofia; as ciências são suas servas como a filosofia medieval pretendia ser a serva da teologia. Mas ela não implica nenhum “sacrifício” da inteligência à fé, nenhum rebaixamento pascaliano da razão diante do “coração”.


A moral de senhores nasce de uma consideração de si mesmo, de um sim que o senhor dirige a si mesmo. Seu modo de valoração “age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer sim a si mesmo ainda com maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, o “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes” .


Nesse nível de análise nietzscheana, a oposição entre senhor e escravo não se resume a uma diferença de valores, mas se traduz também por dois momentos distintos de reconhecimento: o senhor reconhece a si mesmo, enquanto o escravo, para reconhecer-se, precisa passar antes pela mediação de seu oposto, o senhor.
A relação que Nietzsche estabelece entre senhor e escravo nunca se confundirá com sua homônima hegeliana, ali na Fenomenologia do espírito. O senhor hegeliano traz as marcas do escravo de Nietzsche, enquanto ele é uma consciência que está em relação consigo mesmo apenas pela mediação de seu outro. A dialética do senhor e do escravo consistira essencialmente em mostrar que o senhor se revela em sua verdade como o escravo do escravo, o escravo como o senhor do senhor. Como nota Hyppolyte, através disso a desigualdade presente na forma unilateral do reconhecimento é ultrapassada, e a igualdade é restabelecida. Se na dialética, como sempre, a oposição se revela aparente, o senhor e o escravo de Nietzsche permanecem opostos tanto no modo de reconhecimento quanto nos valores morais.
Como nota Hannah Arendt, o livre-arbítrio era uma faculdade virtualmente desconhecida para a Antiguidade clássica e foi somente com o cristianismo, com Agostinho, que a liberdade desprendeu-se de seu domínio original, a vida política, para transformar-se em um fenômeno da vontade .
Nietzsche não nutria nenhuma simpatia pelo “livre-arbítrio e o apresentava como um artifício, inventado pelos teólogos, para tornar a humanidade “responsável” pelos seus atos. O sacerdote busca responsabilidades para poder castigar e julgar, a teoria da vontade livre foi inventada tendo em vista o castigo, por uma vontade de encontrar culpados. Para que os homens pudessem ser culpáveis, era preciso imaginar que toda ação é querida, que a origem de toda ação se encontra na consciência, no livre-arbítrio.
Seja qual for a lucidez terrível de um La Rochefoucauld ou de um Pascal, ela permanece tributária dos valores morais e religiosos, e Nietzsche evoca “a fé de pascal que se assemelha de modo terrível a um contínuo suicídio da razão” . Convém notar o protesto de Nietzsche antes de tachar, como se fez muitas vezes, seu pensamento de irracionalismo!
O homem ainda não se deu conta de que possui um sistema neurológico, aliás, poucos detêm tal conhecimento. Nietzsche não admite no homem a existência de uma alma, mas tão somente um sistema nervoso que integra todo o aspecto fisiológico.
Este mesmo homem acredita que os maus estados da alma, como doença, enfraquecimento, pobreza são decorrentes de hesitação, pecados, autocríticas. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para todos os céus e abismos, algo, em suma, que, também, vagueia no oculto, que, também, vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante de dor.
É do procedimento contrário que se origina a moral de escravo, que nasce de uma consideração do outro, de um não dirigido ao outro.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um ´fora´, a um ´outro´, um ´não eu´- e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, ao invés de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto exterior, falando fisiologicamente, requer estímulos exteriores para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.
Todavia, nem sempre permanecemos em um dado estado por toda a vida, após a tempestade vem sempre a bonança e, após muito sofrimento e esgotamento, o homem se reergue, como uma fênix , e pergunta a/em si mesmo: “como é possível que eu seja tão livre, tão libertado? É um milagre. Só Deus podia fazê-lo por mim” .


(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE JULHO DE 2017)


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