#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO


DEUS ESTÁ MORTO - CAPÍTULO XX


Como percebemos, aliás, citamos no início de nossa reflexão, onde Nietzsche dizia em um fragmento que a sua filosofia remete à experiência do niilismo, mas um niilismo radical, onde ele não só procura negar a metafísica clássica, isto é, as idéias de Deus, imortalidade da alma, a vida pós-morte, mas ele quer ir além e descobrir as raízes onde estas concepções surgiram e tomaram uma forma. Com isso, é preciso fazer uma crítica ferrenha às raízes de tais aparatos, é preciso, segundo Nietzsche, abrir um processo de “desvalorização dos valores”, inaugurando uma história da decadência.


Esta decadência para Nietzsche deve sua origem à doutrina dos dois mundos de Sócrates e Platão, isto é, um mundo ideal, transcendente em si, que como realidade está subordinado ao mundo sensível, considerado mero mundo aparente. Essa desvalorização dos valores supremos tem seu início com a teoria platônica dos dois mundos, que causa uma dicotomia no ser.


Em inúmeros textos, Nietzsche associa a decadência a uma condenação da vida. Assim, no Crepúsculo dos ídolos, ao afirmar que a moral, tal como foi entendida até hoje, é “negação da vontade de vida”, Nietzsche conclui que esta moral “é o próprio instinto de décadence”. É esta vertente da noção de decadência que agora deve chamar nossa atenção. E fala-se aqui em “vertente”, porque não se trata de outro significado de “decadência”, simplesmente situado ao lado daquele já mencionado. Trata-se de outro ângulo do mesmo fenômeno, uma explicitação daquilo que estava subjacente ao socratismo enquanto domesticação, promoção da tirania de uma parte da alma sobre as demais. É este mesmo fenômeno que, melhor considerado, vai se revelar como negação da vontade de viver – que não é, por sua vez, senão outro nome da negação da vontade de potência, encarada agora sob uma luz peculiar.


Tomando em consideração esta ótica de “interpretação”, a decadência, enquanto é um não dirigido à vida, vai se revelando como aquilo que estava na origem do platonismo, enquanto este foi uma grande estratégia de negação do vir-a-ser. É o momento em que a decadência, enquanto negação dos instintos, negação da vida, reata com a sua ideologia justificadora: negação do mundo dado em benefício de um “verdadeiro mundo”, ficção de um além que virá legitimar a negação do mundo “aparente”. Não é inútil relembrar que, para Nietzsche, o platonismo – filosofia da decadência – tinha sua origem em uma negação dirigida ao mundo do vir-a-ser. Afinal, o platonismo não estava só, enquanto produto de um ato de negação.


Nietzsche observa nesse mundo dicotômico da transcendência e imanência uma ruptura, admitindo que esse mundo supra-sensível é mera utopia, inatingível. Por ora, Platão desvaloriza o mundo da imanência, submetendo a nossa existência terrena como algo aparente, como fase de transição, pois, no além se encontra o mundo ideal, verdadeiro, real. Toda nossa existência tende para além do sensível. Com isso, o platonismo se torna algo prometedor, se torna uma promessa que somente a fé sustenta, tornando-se, deste modo, um platonismo para o povo, isto é, o próprio cristianismo numa visão nietzscheana. Todavia, a ruína do cristianismo provocou essa sensação de vazio absoluto. Mas este sofreu sua decadência, agora, nos resta perceber que a visão cristã do mundo não é a única, mas apenas uma soma, mais uma.


Com a destruição de qualquer certeza metafísica, a crença no mundo ideal desaparece completamente, gerando, em nós, dois questionamentos: o primeiro baseia-se na busca de explicações para o vazio que agora ocupa o lugar do mundo ideal; o segundo volta-se para o mundo sensível, na busca de sentido para este depois da abolição do ideal, para este depois dos anos de subterrâneo, a partir do instante em que sai e começa a trajetória de sua própria vida, a busca da redenção e da ressurreição.


Todavia, surge agora um questionamento ainda maior; se o mundo ideal ou verdadeiro foi abolido, também com ele abolimos o mundo aparente. Eis a chave mestra para poder colocar em cheque e superar o platonismo-niilismo; suprimir o mundo aparente.
Nietzsche tem como objetivo capital superar o niilismo, por isso, ele, quando lança a idéia de superação do mundo sensível, quer suprimir realmente a maneira como este é visto pelo platonismo. Na realidade, ele pretende retirar-lhe o caráter de aparência causado pelo platonismo, e isto exige que de fato haja uma supressão da dicotomia ontológica.


[...] que saberia eu dizer de qualquer essência que não fosse os atributos da sua aparência? Certamente não é uma máscara inanimada que se pode pôr e tirar a um X desconhecido! A aparência é para mim a própria vida e a própria ação, a vida que troça bastante de si para me fazer sentir que há nela apenas aparência, fogo-fátuo, dança dos elfos e nada mais: que no meio de tantos sonhadores também eu, “o homem do conhecimento”, danço com o mesmo passo que os outros; que o “conhecedor” é um meio de que ela se serve para prolongar a dança terrestre, e está, assim, entre os mestres-de-cerimônia da existência, e que o sublime espírito de seqüência e coordenação de todos esses conhecimentos é, talvez, o meio supremo que lhe permitirá manter a universalidade dos sonhos, o entendimento de todos estes sonhadores, e assim, a duração do sonho .


No aforismo quinto da obra, Nietzsche apresenta como título Crítica do niilismo, afirmando no mesmo o surgimento do niilismo como uma condição psicológica, assim, o niilismo restringe-se:


[...] ao conhecimento de longo desperdício da força, a tortura que ocasiona esse em vão, a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja – a vergonha de si mesmo, como se fôramos ludibriados por longo tempo...


Como notamos, não é possível desvendar um caráter global da existência com esses três “moventes” ou categorias acima referidas, desta forma, acabamos excluindo o princípio organizador e toda transcendência, remetendo a realidade do mundo a um eterno fluir das coisas, um eterno vir-a-ser. Mas a questão ou o problema agora é que apreendemos o mundo como algo desprovido de sentido e de valor. Por isso, “não tolera mais este mundo, embora não queira negá-lo”.


(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE JULHO DE 2017)


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