**MURALHAS DO EXÍLIO** - ENSAIO: Manoel Ferreira
INÉDITO:
Mais uma obra que se encontrava nas mãos de meu Amigo Escritor e Poeta Paulo
Ursine Krettli. Escrita no início dos anos ´80, 1983
**MURALHAS DO EXÍLIO**
ENSAIO: Manoel Ferreira Neto
À Fiodor Mikhailovitch Dostoievski
Estar no exílio é estar fora do espaço que é próprio ao homem, onde,
angustiado ou em paz consigo mesmo, ele se movimenta, pensa por sua própria
conta, faz tudo o que quer e quer tudo o que ele faz; movimenta-se de um lugar
a outro, sem, contudo, deixar-se a si mesmo. No exílio, ao contrário, não
existe este espaço próprio ao homem – é um lugar imposto – e já não pensa por
conta própria, pois, embora não deixe de estar pensando um instante sequer,
estes pensamentos atropelam-se e remexem-se em sua cabeça, não sabendo nem
mesmo o conteúdo de seus pensamentos.
O que prevalece é somente a angústia, um nó apertado na garganta, uma
água que sobe e desce, indo até a garganta e voltando. Qualquer coisa que este
exilado fizer, a fim de que não sinta esta angústia, sabe-o bem será
impossível, pois ele não está no seu próprio espaço. Se estivesse fora, no meio
dos homens, estaria livre da angústia, estaria no seu próprio espaço, fazendo
tudo o que os homens fazem! Estaria fora das muralhas do exílio, espaço que
separa o homem de um meio a outro, onde a própria muralha estabelece uma
igualdade a todos, que mais não é que a própria ausência de seus movimentos.
Agora, fora, está no seu espaço? Sempre pensei que, a fim de o homem possuir o
seu próprio espaço, ele está no meio dos homens que não possuem um espaço para
si mesmos, este espaço dele é um espaço imposto, um espaço que eles mesmos não
criaram, movimentam como lagartixas nas paredes de um ambiente pertencente a
uma casa; eles não possuem a si mesmos, não dispõem de si mesmos, fazem parte
de um amontoado de bugigangas e objetos inutilizáveis. Este espaço, para este
homem que estava exilado, que agora está no meio dos homens, não existe.
Olhando de norte a sul, leste a oeste, ele sabe que não foram aquelas
muralhas que o separava do mundo, que não foram aquelas grades que o impediam
de estar fora, que não foram aquelas janelas, lá em cima, pelas quais ele
tentava ver pelo menos se estava chovendo ou fazendo sol e que era um homem
exilado. Em qualquer parte, em que estiver, ele é um ser exilado. A sua
angústia é ainda pior, pois atrás das grades, vendo apenas as muralhas do
exílio, ele sabia a causa de sua angústia, de todos os seus sintomas, mas,
fora, ele já mais não sabe, ele não sabe de mais nada. Embora os pensamentos
estivessem confusos e baralhados, ele podia pensar nesta angústia. Fora, ele
não conhece os sintomas desta angústia, ele não se dispõe de si mesmo, ele não
tem as suas próprias garantias. Está angustiado. Não existe um espaço para ele;
desde o seu nascimento, viveu atrás de muralhas, estava no exílio, mas, somente
após ser afastado de tudo e de todos, é que se conscientizou de que não existe
um lugar para si. Todos os lugares são exatamente semelhantes.
Talvez fosse melhor não haver existido, mas nem mesmo de sua vida pode
se dispor, pois não conhece as causas de seu exílio no mundo. Deverá existir,
custe o que custar. Movimentar-se-á como uma guia fora de seu próprio brejo;
uma minhoca na superfície da terra. Trata-se de um homem, que se movimenta como
um animal qualquer. Deverá construir o seu próprio espaço.
Terá de remexer céus e infernos a fim de construir um simples lugarzinho
para si mesmo. Neste simples lugarzinho, ele fará tudo o que quiser e quererá
tudo o que fizer. Dispor-se-á de si mesmo, terá, em mãos, a sua própria
existência. A angústia permanece. Em alguns instantes, ele aperta mais o nó. Os
olhos anuviam-se mais e mais. Ele é somente angústia. No instante de maior
desespero, descobre que o seu lugarzinho está em si mesmo. Que alegria e que
felicidade! Ele mesmo não sabe avaliar. Mas este lugarzinho também causa
angústia e desespero. Ele está fora. Fora das muralhas do exílio, dentro de sua
muralha, da muralha de seu próprio exílio. Ele é um ser que não encontra lugar
seja em que lugar for.
Sempre pensei que as muralhas do exílio fossem exatamente iguais à
liberdade. Existe alguma diferença? Poderia ser que existisse. Não, não existe
coisa alguma diferente. No exílio, ele foi um ser sem sentido. Fora, a sua
ausência de sentido é o próprio sentido da ausência. Terá de mudar isto, custe
o que custar, embora seja a última coisa a ser feita. Com muito esforço e
dedicação constrói a sua liberdade: esta sua liberdade foi uma liberdade
construída, a fim, embora soubesse não haver um lugar para si, de que o mundo
fosse o seu exílio, que ele mesmo fosse o seu exílio. Ele pensava em encontrar
um canto em que descansasse seus ossos, mas nem isso! A sua liberdade era para
não estar fora do mundo, mas, livre, está ainda mais fora do mundo.
O que fazer de si. Não justifica estar existindo. A sua liberdade, ele
sempre o soube, instalação alguma lhe dá; habitat algum é-lhe colocado. O
mundo. Para que estar no mundo? Nada justifica isto. Embora toda esta angústia,
ele precisa continuar os seus passos de lagartixa na parede. E ele continua.
Uma coisa necessitou renunciar aos seus próprios ideais e construir apenas algo
para a sua própria existência.
Construir? Construiu. Agora a sua existência continua com a própria
falta de sabe-tudo.
Eis que a morte chega. Acabou tudo. Ele deixou apenas a sua obra, aquilo
que melhor ele podia legar à humanidade. Não poderia ter desenvolvido um melhor
trabalho no campo em que se escolheu, ou seja, destrinçar o próprio soberano
dos seres humanos. Ele acreditou, piamente, em apenas um “Eu” que seria a
essência, a qual o fez surgir do próprio subterrâneo de suas personagens. Mas
não. Este “Eu” é somente um “eu” incutido no homem através do mundo.
Faltou-lhe descobrir o “Outro”. O movimento é dialético. Não fosse haver
aprofundado no subterrâneo de suas personagens, a fim de procurar uma atitude
moralizante - que desse ao mundo novas vestimentas, que mudasse um pouco o
sentido da História, acreditando no “eu” - o “Outro” não poderia jamais ter
sido pensado. Nietzsche mesmo confessou ter aprendido Psicologia com Fiodor
Mikilovitch Dostoievski. A esta Psicologia, experimental em suas bases, surge
uma nova Psicologia: a Psicologia Fenomenológica, que não está interessada em
experimentações, mas, sim, nas próprias manifestações do mundo diante de seu
próprio absurdo, de sua própria gratuidade, facticidade.
O mundo conheceu Dostoievski; quase todos conheceram Dostoievski e não
conviveram com ele, mas a história conhece Dostoievski através de sua obra.
Conseguiu ele sair da muralha de seu exílio. A morte elimina esta
muralha, mas outra muralha é o entendimento de sua obra. A própria falta de
sentido de uma obra é o seu sentido em todos os termos possíveis e impossíveis.
Resta-nos destrinçar e entender a obra deste exilado russo.
Não sabia ele. Mas existem duas muralhas que dividem o mundo. De um
lado, a Rússia. De outro, os Estados Unidos. O homem e a sua própria muralha. A
humanidade está dividida. A humanidade está fora, fora do mundo, fora de tudo,
fora de todos; existe apenas em sua própria muralha: a do exílio.
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