**DE COMO OS JEGUES PASSAM POMPOSOS PUXANDO A CARROÇA E O VULGO DEBULHA O TERÇO ALHEIO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
“My mule is
sick, my horse is blind”
(Ain´t talkin
– Bob Dylan)
Estamos sim necessitados de mudanças no sistema das eleições, não
aquelas profundas, profundíssimas, porque o povo não as compreenderia, teria
sérias dificuldades na hora “h”, na hora de depositar o voto nas urnas seria
aquele “Deus nos acuda”, mas mudanças simples, digamos até superficiais. Outro
dia fui cumprimentar um amigo na polícia civil, usei o termo que conheço, isto
é, “agente”: “Como vai agente Faustino”, respondendo-me: “Tudo bem, e você? Mas
agora não sou mais agente, sou investigador”. O agente caiu do galho, o
investigador subiu na árvore genealógica das importâncias civis. Se isto
acontecesse na polícia militar, fosse cumprimentar um amigo: “Como vai, tira
Mundico”. Ele me respondesse com toda a finesse que lhe é peculiar, um
gentleman: “Tudo bem. Não sou mais tira. Sou agora “põe”.
A única coisa que não sofre este tipo de mudança é o jogo de bicho.
Burro é “3”, será até a consumação dos tempos. Porco é “18”, será até a
consumação dos tempos. Se houvesse mudança aqui, o burro ser “18”, o porco ser
“3”, haveriam reclamações dos dois: o porco iria achar ruim de ser chamado de
burro, destituído de qualquer inteligência, o burro iria achar ruim por ser
chamado de imundo, viver no meio das merdas.
Estive pensando nas eleições. Comuns nos “santinhos” são o nome do
candidato, o número, o número do partido. Na hora de depositar o voto nas urnas
suficientes o nome e o número, este já é o do partido. E se ao invés do nome do
candidato fosse usado o nome de bicho, com a foto do candidato e não do animal
em seu habitat natural. Um é touro, outro pavão, outro girafa, outro cavalo,
outro borboleta, etc. Ninguém iria escolher o burro, por ser só instinto, na
política a inteligência é fundamental - o que serão das estratégias e tramóias
sem ela? Ao final do mandato, sairia com uma mão na frente, outra atrás, nada
pôde surripiar, com nada pôde beneficiar-se sem a inteligência que é o objeto
específico disto. Ninguém iria escolher o rato, por a sua imagem estar mais do
que denegrida no métier político, símbolo de ladrão, corrupto – não iria
receber voto sequer. Mesmo porque o “rato” já fora banido de uma ata num
plenário, o Tribunal de Justiça Eleitoral não iria permitir tal acinte ao
decoro eleitoral e político. Ninguém iria escolher o porco, por simplesmente
ser símbolo da sujeira, da imundície. Cachorro também ninguém escolheria,
símbolo do mau caráter, do sujeito sem escrúpulos. Já pensou, leitor, rato e
cachorro na Câmara dos Vereadores, porco assumindo a autoridade máxima do
município? Inconcebível, não é mesmo? Se bem que com o nome real dos candidatos
existam inúmeros porcos, ratos e cachorros, bem escondidos atrás dos colarinhos
e das gravatas, debaixo dos punhos das camisas de seda pura.
Nas referências que fizessem uns aos outros adotariam o costume de
anexar ao nome um qualificativo honrado, digno, de altíssima idoneidade: o
brioso Cavalo, o magnífico Pavão, o indomável Touro, a galante Borboleta, etc.,
etc., fazendo dessas controvérsias, tão fáceis de azedar, verdadeira escola de
educação. E mesmo no meio do povo, as conversas mudariam de tom. Uns iriam
votar na borboleta, pois que ela vive voando, são necessárias autoridades
voadoras, que alcem vôos bem altos, traduzindo na linguagem específica dos
homens, os sonhadores, aqueles que querem real-izar grandes coisas para a
comunidade, deixarem seus nomes inscritos na história por seus grandes feitos,
serem estudados na história, tornarem-se heróis. Outros iriam votar no cavalo,
puxador de carroça, levador de gado para o matadouro, atração nos jóqueis,
marchador, na política os cavalos são necessários, têm de puxar a carroça da
história, têm de brilhar nos eventos sociais, artísticos, políticos, econômicos,
desfilarem no dia 7 de setembro todo empetecado, cela de primeira, freio e
ferradura de ouro, todo escovado, crina penteada, cheirosa, com perfume francês
de última geração, têm de fazer os acontecimentos marcharem em direção ao
progresso e desenvolvimento. Outros iriam votar na cobra, Deus não lhe deu
asas.
Os nomes de todos, isto é, os nomes dos animais correspondentes seriam
colocados na urna, não pelo magistrado, mas pelos próprios candidatos. Logo que
o nome de um aparecesse, o dever do magistrado seria proclamá-lo, mas não
chegaria a ser ouvido, tão estrondosa, calorosa, eufórica seria a aclamação do
povo: - “Ganhou o Touro! Ganhou a Cobra! Ganhou o Elefante!” Touro para
prefeito, cobra para deputado estadual, elefante para deputado federal, leão
para senador, águia para prefeito, veado para presidente. Este grito, repetido
de rua em rua, de avenida em avenida, de alameda em alameda, de beco em beco,
chegaria aos últimos limites da cidade, como verdadeiro incêndio, em poucos
segundos. O alvoroço seria enorme, seria um delírio. Homens, mulheres e
crianças encontrar-se-iam e bradariam a todos os ventos: “Ganhou o veado para
presidente! Ganhou o Pavão para prefeito!”
Se fosse me candidatar a algum cargo político nalguma eleição, iria
escolher o jegue, simplesmente porque a inteligência, como a beleza que não põe
mesa, nunca fez nada pelo povo, pela comunidade, só serviu para ajudar os
políticos na hora dos discursos e das conversas ao pé do ouvido para
persuadirem a serem votados, das tramóias, das canalhices, das estratégias,
quanto mais inteligente o político mais benefícios e privilégios adquire, mais
sobe na árvore dos princípios espúrios, na genealogia da natureza humana,
aquela das hipocrisias, farsas, falsidades, do caráter súcia, da personalidade
caguincha, mais os bolsos engordam com o trabalho duro do povo. Jegue não faria
parte desse rebanho, ser-me-ia impossível criar as tramóias mais engenhosas, as
estratégias mais impressionantes pelos interesses e ideologias mais criativos,
as verborréias mais belas e estéticas, todas as oratórias perderiam para elas,
falácias as mais incomuns, sorrisos de orelha a orelha, tudo para impressionar
e ser fácil ser eleito. Nos palanques não abriria os discursos, dizendo: “Se
for eleito, prometo diminuir os juros exorbitantes, prometo asfaltar todas as
ruas, prometo canalizar todos os esgotos a céu aberto, prometo... prometo...
prometo...”. Abriria os discursos: “Na condição de jegue, puxarei a minha
carroça por todos os cantos, levando tijolos, areia, sacos de cimento, para os
miseráveis construírem seus pequenos casebres. Na minha condição de jegue,
levarei cestas básicas para todos os favelados das periferias de nosso
município. Na minha condição de jegue, darei carona às celebridades a caminho
de suas visitas às obras, aos eventos sociais, artísticos, a Brasília para
pedir verbas ao governo federal para as obras sociais. A carroça será o meu
instrumento de trabalho em nome da dignidade e honra de nosso povo”. Isto não é
promessa, é realidade. Jegue só trabalha se houver uma carroça à sua
dis-posição, carroça só funciona se houver um jegue para a puxar. Não haveria
insultos aos pavões, elefantes, cobras, veados, touros, borboletas. No reino
animal, cada animal tem a sua própria função. Como eu iria descer a pua na
borboleta, se eu não sei voar? Como eu mandaria o sarrafo nas pavões, se não
tenho belas penas, se os meus pés não são enrugados? Como eu iria destilar os
ácidos críticos no leão, se não sou o rei da selva? Nem eles iriam descascar os
meus pepinos, não aceitariam ser chamados de destituídos de inteligência,
unicamente instintos. Cada um de nós ficaria na nossa, cumprindo realizar as
nossas próprias funções, cumprindo ser reconhecidos, aplaudidos pelo nosso
trabalho digno e honrado.
Mas então os vencidos não gemeriam, não blasfemariam, não rangeriam os
dentes? Os sapos, os calangos, os tatus não xingariam as antas, os hipopótamos,
os cavalos, as cobras por não terem ganhado nas eleições. Nas próximas eleições
haveria lugar para eles, todos chegariam ao poder algum dia. Não, caríssimo
leitor, e aí está a prova de minha intuição política de reformador. Os
cidadãos, levados pelo impulso que os faz não descrer jamais da Fortuna,
lançariam apostas, grandes e pequenas, sobre o nome dos candidatos. Tais apostas
parece que deveriam agravar a dor dos vencidos, uma vez que perdiam candidato e
dinheiro; mas, em verdade, não perdem as duas coisas. Os cidadãos fariam disto
uma espécie de perde-ganha; cada partidário aposta no adversário, de modo que
quem perde o candidato ganha o dinheiro, e quem perde o dinheiro ganha o
candidato. Assim, ao invés de deixar ódios e vinganças, cada eleição
estreitaria mais os vínculos políticos do povo.
Não sei se grandes cidades como Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro
iriam adotar tal sistema nas eleições; seria duvidoso. Quantos jegues seriam
necessários para construir Brasília? Um só não daria conta do recado, arrearia
as patas no primeiro frete para construir a Granja do Torto. Quantos camelos
seriam necessários para construir o “minhocão” de São Paulo? Os peregrinos
iriam sofrer o pão que o diabo amassou com o rabo para atravessarem o deserto,
os camelos todos teriam de ser exportados para o Brasil? Mas para cidades
pequenas não creio que haja nada melhor que este sistema de candidatura. Tem a
doçura, sem a monotonia, o tédio do víspora. E, leitor, deixe-me que lhe diga
francamente, apelando para os seus deuses, este povo, que conserva as crenças
errôneas da raça originária, pensa que são eles que o ajudam; mas, em verdade,
é a Providência Divina. Se um touro fosse eleito para prefeito em nosso
município, que é pequeno, não tão pequeno quanto possa ser imaginado, ele teria
o trabalho único de não ser toureado pelos vereadores da câmara municipal,
pelos leões, pelos tigres, teria de unicamente chifrá-los a todos com toda a
arrogância e pomposidade, mostrar-lhes suas verdadeiras funções como políticos
da natureza e do reino de Deus. Se uma borboleta fosse eleita para prefeita, os
vereadores teriam de fechar todas as janelas da câmara, todas as frestas por
onde pudessem passar, caso contrário ficaria sabendo de todas as oposições à
sua administração.
Não sei se você, leitor, já teve a curiosidade de observar o prédio da
nossa câmara municipal! – sem dúvida uma preciosidade da arquitetura moderna.
Aos meus olhos de lince, parece uma arca. Na arca de Noé cabe todos os bichos
da terra.
Mas, retornando a algo que não cheguei a terminar. Dizia sobre a
Providência Divina. Pois bem... Ela é que governa a terra toda, governa todas
as criaturas, e dá luz à escuridão dos espíritos. Está em Isaías: “Ouvi, ilhas,
e atendei, povos de longe.” Está nos Salmos: “Do Senhor é a redondeza da terra
e todos os seus habitadores, porque ele a fundou sobre os mares e sobre os
rios”.
Haveria muito que discutir sobre as funções políticas dos
candidatos-bichos, suas plataformas políticas, suas idéias, interesses e
ideologias. Quais seriam as de um macaco? Muitas responsabilidades, muitos
compromissos, pois que a origem nossa de homens vem dele, isto de acordo com
Darwin, na evolução das espécies. O prefeito-macaco teria que garantir por a +
b a evolução, progresso, desenvolvimento do povo, de toda a comunidade, sem
discriminação de raça, credo, caso contrário a sua hegemonia de origem da raça
humana cairia por terra, os ossos de Darwin mexeriam na sepultura.
Mas paro por aqui. Conto estar de volta daqui a quatro anos com outras
reformas sugestivas no sistema político de nossa querida e amada nação, deitada
em berço esplendido que sempre esteve, de nossa querida terra-natal, deitada na
manjedoura magnífica que sempre esteve. Nestes quatro anos procurarei
aprofundar e amadurecer as minhas idéias sobre a administração pública dos
bichos. Quem sabe não me candidate na próxima eleição para vereador, o meu
bicho escolhido será mesmo o jegue. Ninguém apostará em mim, nem no jogo do
bicho nem na loteria existe este animal, só há o burro. Os cidadãos podem
apostar entre si durante o processo de candidatura: “Aposto que o jegue irá ser
eleito para prefeito”, “Aposto que é o tamanduá”. “Feito, vale um jantar na
Casa Grande”. É com ele que me id-ent-ifico, com ele tenho as idéias e projetos
mais supimpas. Aliás, neste Natal ganhei de minha Josefina um jegue artesanal
de presente que de imediato dependurei na parede de meu escritório de frente ao
meu computador. Disse-me ela: “Você gosta tanto dos jegues! É o meu presente de
natal para você”. Uma filmadora não me deixaria tão feliz e satisfeito quanto
me sentira com este presente de Josefina. Estava faltando este arrebique,
ornamento na parede de meu escritório.
Adeus, meus caros leitores; creiam-me seu muito obediente servo, aquele
que só pensa no bem-estar de vocês, aquele que só deseja que vocês sejam
respeitados nos seus direitos de cidadãos, indivíduos, homens, aquele que sonha
ver o progresso, desenvolvimento de nosso município.
Abraços deste que se julga o grande reformador da nossa modernidade
política.
(**RIO DE JANEIRO**, 04 DE MARÇO DE 2017)
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