**À LAIA DE SÁTIRA ERRANTE** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
Eis a estória que o Escritor Quarqué contou a Zé Prequeté/Que tira
bichos no pé/E chama sua muié/Pra cumê no coité:
Nada mais do que a volumosa poeira da estrada, vermelha, grossa e quente
– ao final, tem-se a sensação viva e presente de que se está calçado de poeira;
os sapatos são produtos de imaginação fértil; tem todas as características de
calçado de grife, lindo e resistente, brilhante, o único problema é a chuva,
muda todo, torna-se calçado de lama, avançar único passo é que são elas -, nada
mais que o capinzal dos morros. Poeira e capinzal aqui, capinzal e poeira
acolá, talvez cheguem aos confins da Cochinchina – e quando chegarem, quê
esplendido panorama não há de ser, perfeita cena cinematográfica, os
protagonistas enlaçados num beijo eterno -, talvez cheguem nas arribas onde
Judas dependurou as chuteiras – e quando chegarem, que maravilha de visão para
os espíritos românticos -, do modo como as coisas andam o crescimento do capim
e o aumento da poeira, por todos os lados, recantos e cantos, encontraremos
isto, a visão do verdadeiro mundo, este em que Deus colocou todas as suas
criaturas para uma aventura de vida e de morte. De tão esplendido espetáculo de
poeira e capim no mundo os olhos estarão todos esbugalhados para melhor
re-colhê-los, para melhor a-colhê-los, e quem foi agraciado com o dom de compor
versos possa real-izar obras-primas, a imortalidade não exigirá qualquer
esforço; esta que acabo de compor, apenas imaginando a poeira e o capinzal no
mundo, não é prima, é apenas um deleite dos sentimentos e emoções que se
a-nunciam bem longínquos de meu intelecto e razão, se revelam palmo diante de
minha sensibilidade, intuição, percepção, imaginação, tenho até vontade de
berrar bem alto para os homens todos ouvirem: “aos vencedores, as batatas”.
Minha terra tem poeira
Para os pés nela se atolarem.
Ruas, avenidas, becos, alamedas por inteiro estão
Entupigaitados de capim viçoso
Para saciar as fomes seculares
E milenares de toda a comunidade
Sem exceção de raça, credos.
À noite, estrelas piscando de infinito a infinito ou não, para
espairecer as idéias, não prolongar pela madrugada a fora o pensamento do capim
e poeira estarem tomando conta do mundo, em breve só isto existindo nele, além
dos homens obviamente, andava por todas as ruas empoeiradas, terrenos baldios
em que neles crescia capim, de cabeça baixa ou não, respiração ofegante,
coração opresso, de peito estufado ou não, sentindo-me maravilhosamente bem,
enquanto pensava noutras coisas bem interessantes, no morro dos ventos
uivantes, na casa do sol poente, na sepultura de P. P. Brasil, no mausoléu de
Gregório Ventura, na flor e na fera, na montanha mágica, nas veredas do grande
sertão; sentia-me alegre, feliz e saltitante com estes pensamentos, extasiado
com a serenidade do espírito, com eles em mente capim e poeira sumiam,
desapareciam, em verdade nunca existiram. Caminhava pela periferia, pois o novo
prefeito mandou asfaltar todas as ruas do centro, a poeira do asfalto é quase
invisível, não se nasce capim no asfalto, podem-se encontrar caídos de algumas
sacolas batatinhas, jilós, tomates, que algumas pessoas sem o que fazer
costumam sair apanhando, um deleite novo dos preguiçosos e folgados, uma
di-versão para os problemas e sofrimentos do cotidiano.
Se a presença de poeira e capim me incomoda tanto, deixa-me cismado com
o futuro, deveria ter amado a atitude, o senso de desenvolvimento e progresso
do novo prefeito em asfaltar as ruas do centro, não mais haverá sapatos
empoeirados, bainhas de calças imundas, colarinhos na cor específica do burro
fugido, dinheiro difícil de ganhar não será mais gasto com tinta ou graxa para
limpeza dos sapatos, lavagem das calças, além de ser bem agradável andar no
asfalto, a sola dos pés se sente agradecida. Mas não. Ando preocupado com o
futuro da poeira e do capim. Pode ter feito isto só para manter a aparência de
sua administração, não cair na língua do povo como defensor jumentado de poeira
e capim, poderá até incentivar o turismo, aumentar as receitas dos cofres
públicos. “Visitem a cidade do capim e da poeira” – ao invés disso, “Visitai a
cidade das ruas, becos, alamedas, avenidas asfaltadas”. Não há como exportar poeira
para outros municípios, mas há como fazê-lo com o capim para municípios de
grande produção de gado, e como o capim é muito uma fortuna será obtida,
podendo até aumentar a produção para atender a demanda, para satisfazer todos
os desejos de poder e bens materiais. Algumas pessoas de visão aguçada ficaram
insatisfeitas com isto de asfaltar as ruas, isto porque o prefeito estava
acabando com a originalidade de nossa região, enfim sertão é lugar de poeira e
capim, era preciso conservar as origens, origens são identidade.
Minha terra tem capim
Para encher os coxos
Engordar o gado de corte, leiteiro,
Aumentar a riqueza do município é o seu fim.
Em certa ocasião, quando ainda o capim estava nascendo nos pastos, capim
meloso que digníssimo fazendeiro plantou sementes numa grande extensão de terra
para aumentar o peso de seus bois nelores, sustentar os açougues de carne
gorda, ganharem mais dinheiro com picanha para churrascos – nos coxos, pode
faltar ração de primeira qualidade, não pode é faltar o capim; na mesa de nosso
povo, pode faltar tudo, mas não pode faltar a carne bovina ou suína -, pensei
escrever sobre o capim só para contrariar os interesses, ufanizá-lo, mas
desisti da empreitada, tive medo de passar para a história como autor do capim,
como um escritor conservador, avesso ao progresso e ao desenvolvimento. A
poeira abaixou, e quando o fez pude enxergar um palmo diante do meu nariz
adunco, embora uma narina nada sinta, fora obstruída devido a uma queda de
gangorra, não corria o risco de cair dentro da vala no meio da rua – não sei
dizer o que está acontecendo, verdade é que os esgotos estão sempre com
problemas, as ruas vivem cheias de buracos -, dar com a fuça no poste de
cimento armado, ousei garatujar uma sátira errante à laia de uma memória que se
comprazia com armazenar as poeiras das ruas para espairecer as idéias
metafísicas do inaudito, que se felicitava e extasiava em con-templar os
capinzais molhados da neblina da noite, após dias e dias de chuva, para
conservar a fertilidade da imaginação sempre à cata de novos infinitos além das
arribas, mas fora algo tão ridículo e despropositado que larguei de lado os
objetivos que tinha, a sátira não habitava as pré-fundas de minhas críticas à
modernidade das poeiras metafísicas e do capim antropológico, estava mesmo era
perdendo o senso das coisas do mundo e da vida, continuasse insistindo, com
efeito, ensandeceria, poeira e capim foram apenas quimeras e fantasias de uma
mente desvairada, para satisfazer a minha imaginação sem fertilidade serviam-me
capim nas três refeições quotidianas, cama de poeira feita no meu catre.
Mesmo assim, continuava a perambular pela periferia da cidade, lugares
outros inda não visitados por mim, desejava certificar-me de que a poeira
aumentava, o capim crescia, queria que a cidade adquirisse outro panorama a ser
vislumbrado, a maravilha mesma só seria real-izada com o capim e a poeira, nada
mais é capaz de felicitar e alegrar as retinas que isto. À noite, antes de
conciliar o sono, ficava pensando em todos os lugares por mim visitados, os
sapatos e bainhas das calças imundas de tanta poeira, quando aos poucos fui
des-cobrindo que possuo algo a que denomino valor, algo que até o presente
momento aniquilou em mim todo senso de humor sombrio, no lugar da sombriedade
nasceu o sarcástico. Esse valor fez-me deter por fim e dizer em versos:
O capim é o melhor dos artífices
Dos instintos para uma terra
Que só tem poeira.
O capim também alegra os paladares
Exigentes e carentes da pura delícia.
E o paladar e a carência são o precipício
Mais profundo:
Tão profundo quando o homem os sente na vida,
Mais profundo o vê no sofrimento.
Um burrico sem cor do pelo definida
De tanta sujeira devido à poeira dos pastos
Onde pastava,
Que subia com ar de desafio por entre precipícios,
Um burrico perverso e solitário
Que já nem queria erva nem matas,
Um burrico de montanha relinchava
Ante o desafio dos meus passos.
Poeira e capinzal aqui, capinzal e poeira acolá. À laia de sátira
errante, uma estrebaria humilde e simples aquece-me mais do que um leito
magnífico, porque sou zeloso da minha miséria, pois que minha terra tem poeira
para os pés nela se atolarem, o mundo inteiro está entupigaitado de capim
viçoso para saciar as fomes seculares e milenares de todos. E no inverno é
quando a minha miséria me é mais fiel. Apraz-me também fazer-me cócegas com um
estilete de capim, para enfim permitir ao corpo se sentir menos sujo de poeira,
com uma velazinha, para enfim permitir ao céu sair da aurora pardacenta, aos
olhos verem algo através da poeira levantada, com a passagem de algum
automóvel. Sinto-me mais comprazido é de madrugada, quando chiam os baldes nas
cisternas e os cavalos relincham pelas ruas sombrias. Então espero, impaciente,
ansioso, que se apresente o céu luminoso, o céu hibernal de nívea barba, o
velho de cabeleira branca: o silencioso céu hibernal que até sobre o seu sol às
vezes conserva silêncio.
Como conseguiria suportar a minha felicidade numa terra de poeira aqui,
capinzal acolá, se eu não os cercasse de pensamentos e idéias do porvir?
(**RIO DE JANEIRO**, 01 DE ABRIL DE 2017)
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