#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE V# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



2.0


GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO


Foi apodrecendo, como a semente na terra, que brotou sua obra apocalíptica. Lançou-se no plano mental genético. Na origem estética da vida. Na sua revivência pela arte. Assim, sua imensa obra romanesca, baseada, sem dúvida, no mistério da vocação (nasce-se romancista, como se nasce poeta), mas projetada por essa concepção integral da existência, baseada na transcendência de Deus, que parece haver sido o segredo dessa obra perturbadora.


Desdobra-se nela, na multidão de seus estranhos personagens, tanto masculinos como femininos, o próprio gênero humano, em suas dimensões supremas e irredutíveis, a imanente e a transcendente, em suas condições de sofrimento e dor. O homem telúrico e social, de carne e osso, devorado pelas paixões ou superado pelas intuições. E o homem transnatural, como “imagem de Deus”, em luta incessante contra o espírito do Mal.


As personagens de Dostoievski têm com freqüência uma aparência familiar, se não externamente pelo menos em sua psicologia, e não seria forçar demais apontar uma conexão entre a maltrapilha Néli, de Humilhados e ofendidos, e a gloriosa e bela Nastássia Filipovna de O idiota, cercada de todos os acessórios luxuosos da riqueza. Ambas são consumidas pelo “sofrimento egoísta” – Néli como uma reação aos tormentos de sua chocante existência, Nastássia porque fora atraída contra a vontade para uma vida de vergonha. Ambas exibem um orgulho ardente, uma tendência à auto-humilhação masoquista e um ódio eterno a seus perseguidores e opressores. Néli, no final, vence o seu egoísmo à custa da vida; o mesmo faz Nastássia ao se oferecer como vítima à faca de Rogójin. O que é apenas triste no primeiro romance, porém, torna-se trágico no outro.


A mesma diferença de nível pode ser observada no caso de Aliocha Valkóvski, Humilhados e ofendidos, que, de forma sobremodo inesperada, mostra ser a primeira versão do mais comovente esforço de Dostoievski para retratar seu ideal moral na figura do príncipe Michkin. A enorme diferença de impressão produzida por uma e por outra personagem ilustra como Dostoievski pode empregar traços quase idênticos para obter tipos muito diferentes de expressão; pois, mesmo que as características de Michkin estejam retratadas fracamente em Aliocha, ainda não existe neste nenhum traço da suprema santidade daquele.
Humilhados e ofendidos é a história de uma mulher abandonada, que vivia dos restos de sua felicidade, doente, alquebrada e esquecida por todos, repudiada pela última criatura a quem podia recorrer – seu pai, a quem magoara em outros tempos e que acabara por perder a razão por não suportar tantos sofrimentos.


A história de uma mulher levada ao extremo do desespero, que, juntamente com a filha a quem considerava ainda um bebê, perambulava pelas ruas frias e sujas de Petersburgo, a pedir esmolas. [...] Era uma história lúgubre, um desses dramas sombrios e dolorosos que, com tanta freqüência e sem serem vistos, se representam, quase misteriosos, debaixo do céu soturno de Petersburgo, nos cantos lôbregos dessa vasta cidade, entre vidas loucas e tumultuosas, profundos egoísmos, interesses em conflito, entre vícios tenebrosos e crimes secretos, nesse antro mais profundo de uma vida desenfreada e anormal...


A exemplo de seus protótipos do século XVIII, Valkóvski, quando cede às tentações da sensualidade e aos prazeres sádicos da profanação e dominação, acha conveniente ter à mão uma doutrina de interesse pessoal egoísta para dar um fundamento filosófico a seus piores instintos. Visto que todo mundo possui esses instintos, até mesmo os “bons” caracteres, que acreditam firmemente numa moral do amor e do auto-sacrifício, podem facilmente cair vítimas das paixões do “egoísmo”; e o príncipe Valkovski ilustra o que poderia encontrar se o “egoísmo” fosse adotado, seriamente, como a principal norma de conduta.


Qual foi o primeiro a dizer que o homem só comete ações más porque ignora seus verdadeiros interesses, e que se estes lhe fossem revelados cessaria logo de ser a coisa vergonhosa e vil que é: porque, compreendendo seus verdadeiros interesses, encontrá-los-ia na virtude?


Antes de ser preso, condenado à morte – a pena sendo comutada para quatro anos de trabalho forçado na Sibéria – Dostoïévski havia retratado pessoas que viviam na extrema pobreza – Pobre gente , O sósia, suas primeiras novelas -, mas os personagens verdadeiramente corruptos sempre procediam das classes altas, ou tinham trabalhado a serviço de seus vícios.


Dostoïévski não estava preparado para encontrar entre os presos camponeses a mesma degeneração moral que anteriormente atribuíra aos setores sociais mais altos. Mesmo que pudesse suspeitar de algo parecido, a realidade mostrou-se muito mais intolerável do que ele poderia haver antecipado.


Ficou horrorizado com a depravação moral que encontrou entre os demais condenados (cuja vasta maioria eram camponeses) e chocou-se quando descobriu que o olhavam como a um estranho e um inimigo, simplesmente porque fazia parte da classe instruída. Além disso, o comportamento de seus colegas de prisão revelava, com considerável clareza, não só o impulso egoísta do ser humano a satisfazer seus instintos mais baixos, mas também, e de forma muito mais inesperada, a irracionalidade e a autodestruição a que poderia chegar um ser destituído de um senso da própria autonomia. No futuro, nenhuma concepção da vida humana seria viável para Dostoievski se não levasse em conta essa necessidade da psique de se sentir livre e independente e de, assim, assevar a dignidade de seu autodomínio.


Escrevera a respeito de ver-se subitamente jogado no meio dos condenados:


[...] fiquei perplexo e transtornado, como se até então não tivesse suspeitado ou sequer ouvido falar daquilo tudo e, no entanto, eu sabia e aprendera sobre aquilo. Mas a realidade causa uma impressão muito diferente do que se aprende pelos livros e por ouvir dizer .
Quanto aos condenados, eu já contactara com alguns em Tobolsk, mas aqui em Omsk tinha de viver com eles durante quatro anos. São gente brutal, exacerbada, maldosa. Odeiam as pessoas de ascendência nobre e, por isso, ao receber-nos, não esconderam o seu gozo cruel pela nossa infelicidade. Ter-nos-iam devorado vivos se pudessem. [...] Eram para nós cento e cinquenta inimigos sempre a perseguir-nos com o maior prazer. Ficaram assim entretidos, tinham assim uma diversão, e a única maneira que nos restava para evitar sarilhos graves era mostrarmo-nos indiferentes e moralmente superiores, o que eles não podiam deixar de reconhecer e respeitar. Tinham sempre a consciência da nossa superioridade. Não faziam a menor idéia da natureza do nosso crime. Nós nunca falávamos disso: eis a razão por que não nos entendíamos [...] .


O universo dostoïévskiano se desdobra na plenitude da vida, para lá de todas as mortes, biológicas, históricas ou filosóficas, como um renascimento próprio da vida humana, em cada geração de leitores.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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