#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE I# - IMAGEM: GOOGLE/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1 - ORIGENS DO CONHECIMENTO


Se mergulhamos na infância de Dostoiévski, não podemos deixar de sentir as inúmeras oportunidades que esse aspecto teve para se desenvolver. Por exemplo, as origens misteriosas do pai; o sentimento de inferioridade pelo fato de os pais pertencerem às classes sociais mais desprezadas na Rússia (o clero e os comerciantes); as hostis relações entre o pai e a mãe; e, sobretudo, a morte violenta do pai às mãos dos camponeses.
A viva influência da mãe na formação do caráter do escritor, revela-se também pelo modo como Dostoievski acreditava em horóscopos e presságios, adivinhos e profetas de feira. Na verdade, a mãe pertencia à classe russa mais presa às superstições, além de ser extremamente religiosa. Andrey narra certo episódio bem significativo, ocorrido em 1831. O pai de Dostoievski estava por comprar a pequena propriedade de Darovoye, acerca de cem milhas de Moscovo, decidindo-se, num dia de Verão, a ir vê-la.


Depois de se despedir da mãe e de todos nós – escreve Andrey -, o pai meteu-se na carruagem e afastou-se, tencionando ausentar-se por quase uma semana. Duas horas depois, quando estávamos sentados à mesa a tomar chá, vimos a carruagem aproximar-se novamente de casa e o pai saltar dela. Parece que se esquecera do pasaporte, sem o qual não o deixariam passar a barreira de entrada para a povoação [... E eis que, ao deparar de novo com o meu pai, a mãe caiu para o lado desmaiada! [...] Este episódio – conclui Andrey -, ou seja, o regresso súbito do meu pai, foi interpretado lá em casa como mau agouro: sinal de que a propriedade que íamos adquirir nos traria desgraças .


Como se davam o pai e a mãe de Dostoievski? Que não era união perfeita, sabemos nós pelo testemunho de dois camponeses da propriedade. Daniel Makarov declara que o patrão era cruel, “um homem mau”, enquanto a senhora era “uma mulher de coração”. Uma camponesa, Avdotyia Spiridonovna, afirma que “o danado do nosso patrão queria esfolar vivos os camponeses, mas a pobre senhora chorava e gemia, implorando-lhe em nome de Cristo que não os castigasse. Então, ele fechava-a na arrecadação – berrando-lhe que não se atrevesse a falar nisso”.


O fato de que o pai de Dostoievski se tenha abstido de açoitar os filhos ao passo que não tinha escrúpulos em açoitar os camponeses, demonstra apenas que seguia as idéias dominantes entre os proprietários rurais da Rússia de então, que consideravam os camponeses bens móveis. Mesmo a mãe de Dostoievski via os filhos recém-nascidos dos camponeses como se fosse uma ninhada de porcos – já que podia dispor de uns e de outros, vendendo-os.


Dostoievski menciona Alyona Frolovna, a governanta que permaneceu ligada á família Dostoievski até ao fim, num trecho autobiográfico de Pobre gente ele dá o nome dela à ama de Lisa Tuchin em Os possessos. Em 1876, evoca o seguinte incidente da infância:


Tinha eu ainda nove anos, era uma Terça-Feira de Páscoa, cerca das seis da tarde, e toda a família – os meus pais e os meus irmãos – estava reunida à mesa, conversando como habitualmente sobre a região e as conseqüências do Estio. De súbito, a porta da sala foi aberta precipitadamente, e na soleira surgiu o nosso criado Grigory Vassilyev, a quem fora confiada a administração da propriedade na ausência do proprietário. E eis que nos surge, em vez do “administrador” que sempre vestia à européia e tinha um aspecto altamente respitável, um homem vestido com um velho casado de camponês e de tamancos. Vinha da nossa propriedade, e ali ficou, especado, sem dizer palavra.


“Que aconteceu? – gritou, alarmado, o meu pai.- “olhem para ele! Que aconteceu?”
“A herdade está a arder, senhor!” – anunciou Grigory Vassilyev num tom dramático.


Não consigo descrever a cena que se seguiu; os meus pais não eram ricos, tinham de trabalhar àrduamente para viver – e era aquele o presente de Páscoa que recebiam! Constava que tudo fora arrasado pelo fogo – as habitações dos camponeses, o celeiro, os estábulos, e até as sementes da Primavera estavam queimadas, e morrera parte do gado e um camponês chamado Arkhip! Vimo-nos logo arruinados, perdidos. Ajoelhamos todos e começámos a rezar. A minha mãe chorava. E então, sùbitamente, a nossa governanta Alyona Frolovna (que recebia um ordenado por ser uma mulher livre de nascença, filha de um artífice de Moscxovo), levantou-se e dirigiu-se à minha mãe. Criara-nos a todos. Tinha então quarenta e cinco anos, e, com o seu temperamento terno e alegre, costumava contar-nos lendas maravilhosas. Durante muitos anos recusara-se a receber o ordenado, dizendo que não precisava de dinheiro; os salários dela tinham sido depositados no banco. Assim, estavam lá depositados por esta altura cerca de quinhentos rublos, de que ela tencionava fazer uso na velhice. E agora, inesperadamente ei-la a sugerir à minha mãe:
“Se precisar de algum dinheiro, utilize-se do meu. Não me importo. Não o quero para nada”.
Mas os meus pais não o utilizaram. Arranjaram-se sem ele, de qualquer maneira [...] .


Dostoievski evoca este episódio da infância para refutar os argumentos dos que não aceitavam a sua concepção do camponês russo como único sacrário da bondade e da sabedoria divinas, o que, sem dúvida inconscientemente, o fez deturpar alguns fatos.


O próprio Dostoïévski tinha profunda consciência da importância das experiências infantis na evolução do caráter. Ao escrever no Diário de um escritor, de Julho-Agosto de 1877, acerca da única visita que fizera à propriedade outrora dos pais, onde passara os mais radiosos anos da infância, Dostoïévski declara que esse período tinha deixado nele uma profunda e poderosa impressão.


Nenhum ser humano pode viver sem as sagradas e preciosas recordações da infância. Ainda que não pense nelas, guarda-as inconscientemente no íntimo. E mesmo as recordações mais ácidas e pungentes se metamorfoseiam em algo de sagrado para a alma. Aliás, o homem é naturalmente propenso a examinar algumas experiências do seu passado, de forma a poder guiar-se para o futuro. E as recordações mais poderosas vêm quase sempre da infância .


Se observamos com perspicácia, vemos com lucidez que as lembranças da infância estão presentes, inconscientes ou não, se conscientes o que sentimos e pensamos, são as lembranças boas, e o que nos ensinou ao longo da vida, aquelas ruins que praticamos, que vivemos, as marcas e cicatrizes que dentro em nós trazemos. Comungadas, metamorfoseiam em algo de sagrado para a alma.


Dostoïévski era sobremodo sensível aos sofrimentos de infância, como revela a descrição dos maus tratos infligidos às crianças em Os irmãos Karamázovi. Essa impressionabilidade brotou, sem dúvida, das torturas morais com que o pai o feriu, tais as lições de Latim narradas por Andrei, seu irmão mais novo. Decerto, Dostoïévski sangrava com a autocracia paterna mais que toda a família, pois – como nota Andrey -, era constantemente “uma pilha de nervos”, na expressão dos pais.


O meu irmão Fyodor – declara Andrey – era muito arrebatado, costumando teimar enèrgicamente nas suas opiniões e exprimir-se àcidamente. Sempre que isto acontecia, o meu pai dizia-lhe: “Fedya, aprenda a dominar-se! Ouça o que lhe digo, se não, acabará mal! Lembre-se do gorro vermelho!...”. Cito as palavras de meu pai não como uma profecia – apressa-se Andrey a explicar, já que, claro, no caso de Dostoievsky essas palavras vieram a ser verdadeiras – pois uma profecia origina-se num cálculo racional, e o meu pai nunca conceberia que os filhos viessem a cometer qualquer delito. Simplesmente, cito essas palavras como prova da impetuosidade de carácter do meu irmão quando rapaz .


Numa análise grafológica de uma carta de 9 de dezembro de 1866, diz o caráter de Dostoiévski é ciclotímico, ou seja, apresenta alternâncias cíclicas de exaltação, euforia, confiança em si, ambição, e depois de dúvida, melancolia, hipocondria, masoquismo. Mistura de fraqueza e força, de agressividade e doçura, de controle e instabilidade psíquica.


O pai de Dostoïévski era alcoólatra e crê-se que sofria de delirium tremens (a dipsomania era uma fraqueza hereditária de Dostoïévski – tio do escritor e dois dos seus irmãos morreram por causa dela), mas os ataques podiam também ter sido o princípio de uma epilepsia que não chegou a manifestar-se em todos os sintomas característicos – babadura, perda de consciência, espasmos musculares e incapacidade de apreender o sucedido mesmo após o ataque – sintomas que Dostoïévski descreveu tão pormenorizadamente nos seus romances. Tal fato justificaria, pelo menos, o mal hereditário da epilepsia na família de Dostoïévski, mal que vitimou o primeiro filho do escritor aos três anos de idade.


Até onde é possível determinar, o primeiro ataque verdadeiro ocorreu em algum dia do ano de 1850 e, conforme descreveu um relatório médico sete anos após, o ataque caracterizou-se por gritos agudos, perda de consciência, movimentos convulsivos do rosto, braços e pernas, baba pela boca, respiração rouca e pulsação fraca, rápida e irregular. O relatório informa ainda que um ataque semelhante aconteceu em 1853; e que desde então os acessos haviam se repetido numa média de um por mês.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)


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