À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA NAS PALAVRAS DE SARTRE - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



1.0 - LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - IV PARTE


Em termos da dimensão estética, Herbert Marcuse, mostra que o fato de uma obra representar verdadeiramente os interesses ou a visão do proletariado ou da burguesia não faz dela verdadeira obra de arte. Esta qualidade material pode faciliar o seu acolhimento, pode torná-la mais concreta, mas de modo algum é constitutiva. A universalidade da arte não pode radicar no mundo e na imagem do mundo de uma determinada classe. A arte visiona uma humanidade concreta, universal, que não pode ser personificada por uma classe particular, nem mesmo pelo proletariado, a “classe universal”.


No que concerne a Althusser, quando em sua entrevista, Jean-Paul Sartre responde, sendo perguntado como explicaria a moda de Althusser junto aos mesmos intelectuais que apóiam Levi-Strauss, Foucault ou Lacan, assim diz:


Althusser sustenta que o homem faz a história sem o saber. Não é a história que exige o homem, mas o conjunto estrutural no qual ele está situado que o condiciona. A história mergulha nas estruturas. Mas Althusser não vê que existe uma contradição permanente entre a estrutura prático-inerte e o homem que se descobre condicionado por ela. [...] Althusser, como Foucault, atém-se à análise das estruturas. Do ponto de vista epistemológico, isso vem a ser tomar partido a favor do conceito contra a noção. O conceito é a-atemporal. Pode-se estudar como os conceitos engendram-se uns aos outros no interior de categorias determinadas. Mas nem o próprio tempo, nem por conseqüência a história, não podem constituir o objeto de um conceito. Há nisso uma contradição nos próprios termos. Desde que se introduz a temporalidade, deve-se considerar, que no interior do desenvolvimento temporal, o conceito se modifica. A noção, pelo contrário, pode ser definida como o esforço sintético para produzir uma idéia que se desenvolve a si mesma, por contradições e superações sucessivas, e que é, portanto, homogênea ao desenvolvimento das coisas. É o que Foucault chama de “doxologia” e que ele repudia .


Acreditamos o melhor modo de se relacionar com as facções é partir daquilo em que todas concordam. A idéia-chave é o “engajamento” não apenas de intelectuais, escritores, atores, artistas-plásticos, músicos, personalidades e empresários, mas de toda comunidade. A intenção se justifica a partir do que todos concordam: “somos culpados de nossa história”, assim o diz Walter Benjamin.


A obra global de um intelectual apresenta muitas camadas de transformações estruturais, que só são inteligíveis como preservações substitutivas (ou substituições preservadoras), cada vez mais complexas, da estrutura original.


Quem diz intelectual diz um céu de valores universais de que ele se faz intermediário, para trazê-los aos homens concretos; ora, essa noção de “Universal”, essa idéia de poder haver um Certo, um Verdadeiro, um Bom, válidos em todos os lugares, em todos os tempos, como essências cristalizadas, independentes da situação, é uma idéia em que Sartre deixou de acreditar desde, pelo menos, Que é a literatura? - e essa figura do intermediário, essa imagem do clerc vindo garantir a junção entre a ordem do profano e a dos princípios, essa idéia de uma mediação entre um céu de valores e uma cidade terrestre é exatamente o que Sartre acaba de tomar como alvo em As palavras: edificar um povo? iluminá-lo? trazer-lhe o fogo de uma cultura compartilhada?


Não basta referir-se à dialética da continuidade e da descontinuidade, da lembrança e do esquecimento, da luz e das trevas. Dizer que a história, tanto individual quanto coletiva, manifesta-se por meio da continuidade e mudanças ganharia o status de um truísmo, não fosse o fato de que “interesses ideológicos” determinados fazem disso uma proposição teórica debatida com ardor.


Há duas teorias sartreanas do “engajamento”. Em primeira instância, a que triunfará nos anos ´50, depois nos ´60, e que, infelizmente, vem ao espírito: companheirismo de estrada com os comunistas; imagens familiares e terríveis de Sartre e Simone de Beauvoir na Rússia ou em Cuba; naufrágio de uma grande filosofia e de uma não menor literatura, que se põem a serviço de uma propaganda e imolam-se no altar dos poderes totalitários; o engajamento compreendido e entendido como enquadramento, mortificação, ódio e aniquilamento da literatura.


Há uma primeira teoria sartreana do engajamento que não diz respeito a essa caricatura; há um primeiro Sartre, jovem, que, em 1944, ao sair da prova sem precedentes por que a consciência européia acabava de passar, se coloca, no fundo, o mesmo tipo de questões que Blanchot, em Le Dernier homme, ou Bataille, em seus últimos textos.


Que é a Literatura é, dentre todos os textos de Sartre, um dos mais difamados. É, para além do escritor-filósofo, o que terminou por se identificar com a idéia de uma sujeição da literatura e dos valores do espírito.


O que Que é a Literatura? não diz: que a literatura deve engajar-se; que é, para ela, obrigação, traçado de rota, missão. E se não o diz, se não faz o apelo ao engajamento, se não diz aos escritores: “Despertem! Mobilizem-se! Sou eu a polícia das letras e exorto-os a que se engajem!”, é pela simples razão de que, “engajada”, a literatura o é natural e espontaneamente e, por assim dizer, automaticamente – se ele não “prega” o engajamento, se não faz disso, contrariamente ao que se repete, de maneira quase pavloviana, há mais de cinqüenta anos, ardente obrigação, imperativo, linha, se está absolutamente fora de questão o esforço de se engajar, de se obrigar ou de ser obrigado a isso, é porque esse engajamento é a conseqüência do fato de que a literatura se escreve com palavras e de que pôr uma palavra em uma coisa é fazê-la perder sua “inocência”, “alterá-la”, dar-lhe outro tipo de existência”, “dimensão nova”, “transformá-la” e, com isso, “engajá-la”.


De sorte que a única coisa que o teórico do engajamento pode, a rigor, esperar do prosador, o único pedido que caberia endereçar-lhe seria: ou bem uma fala que esteja, queiramos ou não, “na onda”, ou “por dentro”, ou como dizia Pascal, “embarcada”; ou bem uma literatura que não cessa de repetir, por ser feita com palavras, tem o inevitável poder de agir sobre o mundo e de transformá-lo; eu, teórico, espero do escritor que tome mais consciência desse estado que lhe compete; espero que faça com que o vivido da “espontaneidade imediata” passe para o “refletido”, que “trate de adquirir a mais lúcida consciência” pelo fato de estar “embarcado” e de que palavras são “compromissos”.


O verdadeiro caráter de um compromisso particular não pode ser reconhecido se não se puser a nu seus vínculos com uma dada totalidade. O particularismo pode e deve reivindicar o status de universalidade, à falta de um quadro de referência abrangente, uma vez que estar em perspectiva transforma o particularismo em sua própria perspectiva e, desse modo, na medida de tudo mais.


Sendo assim, qualquer tentativa de revelar as conexões verdadeiras com a totalidade deve chocar-se com os interesses dos particularismos, ideologias, interesses predominantes. Ao mesmo tempo, o desvelamento dos particularismos não desnuda apenas seus paladinos, mas expõe também, de súbito, a vulnerabilidade de todos aqueles que, anteriormente, tinham condições de encontrar autoconfiança e conforto (ainda que ilusório) nos recantos protegidos dos diversos particularismos.


Outro modo não há. O “espelho crítico” não pode preencher suas funções se se fragmentar em milhares de pedaços. Um espelho quebrado só consegue reproduzir detalhes distorcidos, ainda que pareçam ser fiéis em sua imediatez: distorcidos, porque separados do todo que, apenas ele, lhes pode conferir plena (isto é, verdadeira) significação.


A escolha é inevitável. Ou abandonar a meta de dar testemunho da época em que vive, e deixar de ser um espelho crítico; ou apropriar-se da época do único modo pelo qual se pode fazê-lo escrevendo – mediante a desconfortável e fria limpidez de uma obra que “revele, mostre, demonstre” as conexões da parte com o todo, desmistificando e dissolvendo os fetiches da imediatez aparentemente muito sólida e bem alicerçada na estrutura dinâmica da totalidade sempre em mudança.
O conceito de engajamento não é político que insiste nos deveres sociais do escritor; é filosófico, designa os poderes metafísicos da linguagem, ontológicos da arte.


Sartre, em Jean-Paul Sartre responde, questionado se rejeita o estruturalismo, responde:


Não sou em nada hostil ao estruturalismo enquanto o estruturalista permanece consciente dos limites desse método. Assim nos diz Benveniste, depois de Sausurre: “Abusou-se da diacronia no estudo da língua. Já é tempo de encarar esta última de um ponto de vista sincrônico, como sistema de oposições”. Aceito essa idéia tanto mais facilmente quanto, para mim, o pensamento não se confunde com a linguagem. Houve um tempo em que se definia o pensamento independentemente da linguagem, como qualquer coisa de inapreensível, de inefável que pré-existia à expressão. Hoje, cai-se no erro contrário. Gostariam de nos fazer acreditar que o pensamento é apenas linguagem, como se a própria linguagem não fosse falada.


Na realidade, existem dois níveis. Num primeiro nível, a linguagem se apresenta, com efeito, como um sistema autônomo, que reflete a unificação social. A linguagem é um elemento do “prático-inerte”, uma matéria sonora ainda por um conjunto de práticas .


O lingüista toma em mãos como objeto de estudo a totalidade das relações. Fá-lo por estar constituída.


[...] É o momento da estrutura em que a totalidade aparece como a coisa sem o homem, uma rede de oposições em que cada elemento se define por um outro, onde não há termo, mas somente relações, diferenças .


Podemos dizer que a crise da metafísica, dentro da qual estamos desde Hegel, traz consigo a reivindicação do “físico” – precisamente a reivindicação que faz com que a transcendência deixe de ser fundamento: apropria-se assim o pensamento da densidade ontológica do finito considerado em sua própria finitude. Em certo sentido, explica-se que em Sartre o plano da transcendência onto-teo-lógica seja abandonado e que o fundado se torne físico. A metafísica da linguagem é abandonada, tornando-a ação.


Neste sentido, faz-se mister esclarecer que toda e qualquer linguagem só se torna revolucionária – caráter de busca de transformação, mudança, - revolvendo a radicalidade da linguagem em todos os níveis e modos do relacionamento entre o ser e sua realidade, o ente em sua realização e a verdade em seu advento histórico.


Quando, pois, se nega a verdade da arte ou se põe em causa tal verdade mediante um confronto da “realidade” com a “ficção” estética, ignoram-se as raízes profundas do problema, essas em que se evidencia já a tonalidade afetiva da própria percepção como até, em referência à própria problemática de uma obra de arte, o que há de contraditório no recusar tal obra em nome de tal problemática e no aceitá-la em sua atualidade estética.


Para Heidegger, a verdade é a abertura do Ser, a sua revelação. Mas tal revelação não é completa, implica uma “reserva”. A essência da verdade é a não-verdade, ou seja, que a verdade implica, com a desocultação, uma ocultação.


Falar de engajamento não é “requisitar” os homens de letras; antes, é lembrar-lhes do que cada um sabe, conhece, contempla, ou deveria fazê-lo: que cada ato de nomeação “integra-se no espírito objetivo”; que, com isso, ele dá à palavra ou à coisa uma “dimensão nova”; que cada palavra pronunciada contribui para “desvelar” o mundo e que o desvendar será sempre, e desde já, “mudá-lo”.


Espírito Objetivo, expressão esta utilizada por Sartre sem nenhum laivo pejorativo. Porque o Espírito Objetivo define-se como “a cultura como prático-inerte”; na origem da cultura encontramos o trabalho vivido, atual à medida que, por definição, ultrapassa e retém em si a natureza. Assim o trabalho é por si mesmo a anti-physis, isto é, a sua definição está em ser natureza antinatureza, e isso é precisamente a essência de todo fenômeno cultural.


(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE ABRIL DE 2018)


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