#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



XI PARTE..................


A transposição dos conceitos marxistas para o campo do literário feita por Eduardo Prado Coelho remete-nos às idéias de Northrop Frye, que, em O Caminho Crítico, lança mão de conceitos idênticos: o de mito de interesse e o de mito de liberdade, aos quais praticamente condiciona ou reduz todo o relacionamento da literatura com o contexto social. Mas continuando o estudo da problemática neo-realista, no esforço de situar com clareza o que na realidade representa tal movimento, vale citar ainda o ensaio de Eduardo Prado Coelho:


“O ‘neo-realismo’ português foi, em primeiro lugar, uma arte de combate, intimamente ligada ao progresso duma classe: o proletariado. Os seus objetivos primeiros eram muito simples: contribuir de qualquer modo para a aceleração de todo o processo histórico que deveria conduzir à vitória do proletariado. A arte deveria ser denúnica, desmistificação, exaltação. O ‘neo-realismo’ era um súbito alargamento de realidade ( a todas as zonas e temas que a idelogia das classes dominantes censurava), uma adesão ao nosso humanismo (designação quase sempre utilizada para dizer “marxismo”) e uma expressão de um novo grupo social: o operariado”.


Do ponto de vista do conhecimento, a fissura entre objeto/sujeito – assim preferimos identificar, pois que a colocação de “e” vem mostrar uma separação. Jean-Claude Brisville, crítico e biógrafo de Albert Camus, entrevistando-o em 1959 fez-lhe a seguinte pergunta: “Você escreveu um dia: “O segredo do meu universo: imaginar Deus sem a imortalidade da alma’. Pode precisar o seu pensamento?” Albert Camus respondeu: “Posso. Tenho o sentido do sagrado e não creio na vida futura. É tudo” Portanto, esta relação objeto/sujeito está sob visão de absurdo, uma contradição estúpida e mesquinha, do ponto de vista de alguns ensaístas acerca do pensamento de Camus, mas que não deixa de ser uma verdade. É imaginar o objeto sem a imortalidade da razão.


O sentido, expressão do logos verdadeiro, é aquele que traduz a verdade do ser em verdade para-o-sujeito, abrindo-o assim à universalidade do bem. Portanto, todo enunciado verdadeiro de sentido exprime alguma forma de correspondência com o ser. A alternativa que se oferece a essa primazia do ser na gênese do sentido somente pode apresentar-se como tentativa de “desconstrução” da sua estrutura ontológica pela substituição da aparência ao ser e do simulacro à verdade. A inelutabilidade dessa alternativa foi definitivamente demonstrada por Platão no diálogo Sofista. Essas páginas célebres, ao mesmo tempo em que estabelecem as articulações lógicas elementares de uma ciência do ser, levam a seu termo a longa querela que vinha opondo o filósofo segundo Platão ao sofista. Este é então retirado da sombra do não-ser onde se refugiara, para ser definido, à luz da ciência do ser, como artífice de aparência. Tal a demonstração decisiva, que se eleva no pórtico da cultura ocidental e estabelece, com irrefutável necessidade, a referência do sentido ao ser, circunscrevendo o não-sentido ao domínio da aparência, cujo lugar dialético é justamente a imanência absolutizada do sujeito.


Esta experiência intelectual típica da modernidade grega conserva um caráter exemplar para a compreensão da crise da nossa própria modernidade. Com efeito, nela podemos descobrir a lógica inelutável que transforma a produção humana do sentido em fábrica da aparência e do não-sentido, no momento em que, tendo rompido seu vínculo essencial com o ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-ser.


Mas a exemplaridade da experiência grega do não sentido, sobretudo na leitura genial que dela faz Platão, não deve ocultar a profunda originalidade e mesmo a novidade que caracterizam essa mesma experiência na modernidade ocidental. O que era lá exercício teórico de alguns sofistas, que seduzia apenas a jovem aristocracia ateniense desencantada com a crise e o declínio político da sua cidade, torna-se, aqui, um fato universal de civilização e um estilo emblemático de ser e de viver. A refutação platônico-aristotélica do relativismo sofístico acabou por inspirar, como é sabido, as grandes correntes de pensamento da antigüidade clássica. Ao invés, o que prevalece nos tempos modernos é a ampla elaboração teórica da lógica da aparência, que recebe um estatuto gnosiológico extremamente sofisticado nas diversas versões da teoria da representação, e uma poderosa instrumentação epistemológica nas diversas formas do modelo poético do conhecimento. Desta sorte, a racionalidade moderna se edifica e se exerce tendo como horizonte último o mundo dos fenômenos. Na sua gênese tem lugar a aparição histórica do sujeito típico da modernidade, que se opõe como correlato intencional ativo do inesgotável fluxo dos fenômenos oferecido à sua poiésis, à construção de um mundo que se propõe ser enfim plenamente humano.O sujeito apresenta-se, assim, como o hypokeimenon, a substância primeira que sustenta todo o edifício simbólico da cultura moderna. Nessa, a primazia incontestada é atribuída ao modelo poiético do conhecimento. Ele guia o sujeito na imensa construção da tecnociência, na invenção de uma nova ciência da natureza e na reformulacão, segundo novos pressupostos, dos antigos saberes sobre o homem e a sociedade.


O conhecimento intelectual ou científico do Eu é uma impossibilidade porque o sujeito não pode objetivar-se totalmente. O real conhecimento do Eu, segundo o Zen, só se realiza na subjetividade absoluta: “O eu é comparável a um círculo sem circunferência, é sunyata, o vazio. Mas é também o centro desse círculo, que se encontra em toda parte e em toda a parte do círculo. O Eu é o ponto de absoluta subjetividade, capaz de transmitir o sentido da imobilidade ou tranqüilidade. Entretanto, como esse ponto pode ser movido para onde quer que o desejemos, para lugares variados, não é realmente um ponto”.


Eu é imóvel (sempre presente em nós) e móvel (mutante de um momento a outro). Por isso ele é designado pelo mestre Rinzai Gigen (século IX) como “o homem verdadeiro sem posição”. E, não se pode deixar de lembrar aqui o mestre Thich Nhat Hahn, o sentido do homem em verdade real, ou seja, a sintonia e harmonia do homem em todas as suas dimensões, quando a mente se harmoniza com o cotidiano, a mente cotidiana.
A atitude na meditação é exatamente a oposta. Lembre-se do relacionamento entre a luz do sol e a folha verde. Quando iluminamos uma coisa com nossa consciência, ela muda, ela se mistura e se funde com a consciência. Por exemplo, quando você tem consciência de que está feliz, você poderá dizer: “Estou consciente de que estou feliz”.
“O reino da subjetividade absoluta – escreve Suzuki – é onde habita o Eu. “Habitar não é aqui o termo correto, porque sugere apenas o aspecto estático do Eu. Mas o Eu está sempre a mover-se ou a tornar-se. É um zero e uma estaticidade e, ao mesmo tempo, um infinito, a indicar que se move o tempo todo”.
Isto está presente e ausente em toda a obra de Vergílio Ferreira - não condena o pensador ao círculo vicioso da procura de uma ‘objetividade’ situada fora do sujeito, nem à pressão de uma subjetividade alheia à realidade do mundo exterior. Desemboca ao contrário na síntese que permite integrar, superando-a, a clássica oposição entre ‘subjetividade’ e ‘objetividade’. Do ponto de vista existencial, nas palavras de Heidegger, ‘toda objetividade é, como tal, subjetividade’.


Mas se os princípios neo-realistas não permitiam ou pelo menos não aconselhavam que dentro de um romance se desse destaque a determinada personagem, Vergílio Ferreira, ultrapassada a sua primeira fase de produção literária, já em Manhã Submersa – romance que se seguiu à publicação de Mudança – e a apartir do breve texto inicial em que, através de um recurso de técnica narrativa exercita a ficção dentro da ficção quando coloca Antônio Santos Lopes escrevendo sobre Vergílio Ferreira e referindo-se a Vagão “J”, embora sem lhe mencionar expressamente o título, revela claramente uma ampla viragem na sua linha de execução romanesca substituindo a problemática coletiva pelas indagações individuais de uma personalidade marcada pela angústia e por certas dúvidas que são já próprias de um contexto existencial. Não que o cenário social esteja totalmente ausente de Manhã Submersa. Na realidade, ele é basicamente o mesmo de Vagão “J”, mas diluído pela experiência vivida por Antônio Santos Lopes no Seminário, que é na verdade o assunto nuclear do livro. Manhã Submersa é o romance do despertar da consciência de um adolescente para os grandes problemas da existência: Deus, a vida, o sexo, a família, a morte, a religião, a liberdade, o amor, são interrogações questionadas pela mente perplexa de Antônio Lopes. Trata-se, portanto, de um romance construído a partir da própria percepção ou do próprio pensamento da personagem e assim uma obra de recorte psicológico- existencial e conseqüentemente de cunho eminentemente individualista. Aliás, o individualismo de Manhã Submersa é revelado já no texto introdutório do romance, assinado por Lopes, em que ele diz que durante algum tempo pensou em realizar a hipótese levantada por Vergílio Ferreira no final de um dos seus livros e escrever a história da sua gente. Efetivamente, nos últimos momentos de Vagão “J”, o romancista pergunta:


“Quem vem por um fim à história dos Borralhos? Ela não acabou ainda e mal se percebe já onde foi que começou. Talvez, Antônio Borralho, tu a escreva um dia. Tu ao menos descobriste que tinhas inteligência, tu sabe o que sois, o que sempre tendes sido”.


Se o romancista Vergílio Ferreira não conseguiu evitar as contingências históricas e deu início à sua obra dentro dos parâmetros do movimento neo-realista, Vagão “J”, apesar de deliberadamente escrito a partir de uma perspectiva social ou antes socialista, é já um romance que apresenta determinadas inovações ao nível da escrita e da estrutura romanesca que não são comuns ao Neo-Realismo mais autêntico. Dentre essas inovações, percebe-se de imediato, a um simples folhear do livro, a estrutura monolítica do romance, construído num só bloco, sem a tradicional divisão em capítulos, intencionando alcançar um maior dinamismo interno. No plano da linguagem já se pressente a formação do estilista, ou, talvez mais precisamente, a preocupação do escritor em criar ou trabalhar um estilo capaz de sugerir o diapasão da temática tratada. Representa isto também uma novidade dentro do contexto neo-realista, cuja ficção mais ortodoxa, sabe-se, pouco ou nada se preocupou com problemas estilísticos.


O estilo de Vergílio Ferreira assumiria papel de preponderante importância na sua produção romanesca de temática existencial, onde o escritor cria variações estilísticas em função das variações temáticas dos seus livros. E a propósito de temática existencial, certos problemas desta ordem afloram já, embora muito embrionariamente, em algumas passagens de Vagão “J”. Não evidentemente, uma visão existencial ao nível da náusea, da revolta ou da angústia, que são muito mais conseqüências da percepção intelectual do que da experiência do viver, mas uma problemática da existência que se poderia dizer primitiva, representada da existência que se poderia dizer primitiva, representada pelo ódio e pela violência do homem de jorna, que traz no peito a raiva surda que a vida desgraçada acumulou. Esta colocação existencial é praticamente decorrente da própria ess6encia do Neo-Realismo, visto que reside na questão mais primária da estratificação das classes sociais. O homem de jorna, o trabalhador alugado, odiava o patrão e a vida porque nada tinha de seu: Toda a gente possuia qualquer coisa para afirmar a sua existência; - o homem da jorna tinha apenas o seu ódio. Encontram-se no romance outros indícios da temática existencial levemente aflorada e representada por outras vias, como por exemplo, a do imenso amor à vida repentinamente descoberto por Chico Borralho – um inutilizado que vegetava preso a uma cama- quando posto em contato com uma natureza exuberante:


“Nos campos a vida grita uma plenitude de sangue fresco, o céu é azul. Por isto custa morrer. Sempre em torno rebenta a esperança dos que começam, a vida renova-se, as crianças nascem, abrem os olhos, completam-se, músculos novos, enquanto outras crianças vão nascendo e levam os olhos da gente que vai envelhecendo e vê a vida renovar-se. Por isto custa morrer. A vida é sempre um primeiro dia, a hora, o minuto primeiro, não o momento e a hora que se somaram a outras horas e minutos. Por isso custa morrer e Chico Borralho sofre”`.


Vergílio Ferreira, como toda a geração neo-realista preocupou-se de tal modo com a reproduçào da realidade, que Vagão “J” chega a beirar o documental. É importante lembrar que grande parte da ficção neo-realista portuguesa não foi ou quase não foi além do documentário. Isto, aliás, por preocupaçào dos próprios escritores, a quem só a realidade palpável interessava. Preocupaçào que nasceu com o primeiro romance neo-realista português, Gaibéus, de Alves Redol, que traz este texto à guise de epígrafe:


‘Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”.


A propósito deste livro e da vocação da geração neo-realista para o documentário, importa também saber que Gaibéus, antes de ser realizado como romance, foi concebido por Alves Redol como um estudo etnográfico que o escritor pretendia fazer sobre um grupo de ceifeiros que vendia o seu trabalho nos arrozais do Ribatejo: a gente da Glória, tão diferenciada no vestuário como nos hábitos de vida e de trabalho dos outros alugados dali.
Alves Redol não consegue criar personagens complexas, reais. Se aqui e ali elas manifestam algo de individual, isto se dilui logo em seguida, perde-se no coletivo. Este é o seu verdadeiro personagem: o coletivo. O ser humano que ri, pensa, chora, sente, ou seja, o ser humano real, não tem lugar no seu “realismo”.


A estória que o romance nos conta é a de um grupo de gaibéus – vale explicar: trabalhadores de outra região contratados para o trabalho no Alentejo. O romance não trata das pessoas que foram o grupo, mas do grupo em si, enquanto realidade social. O narrador tenta revelar-nos, em perspectiva, a vida dura dessas pessoas, fruto da injustiça social. Às vezes, ele se aproxima mais de alguma personagem, tenta sondar o seu interior, o que nos mostra, entretanto, não é propriamente uma pessoa, mas um tipo.


O ceifeiro rebelde, outra personagem de quem o narrador procura aproximar-se, revela-se menos ainda pessoa. É simplesmente alegoria das idéias de libertação do narrador, e mesmo do autor. Ele não sente o mundo, não experimenta o mundo, simplesmente o analisa a partir de categorias sociológicas, disfarçadas de idéias e emoções de um gaibéu que, depois de mergulhar na vida, decepciona-se com ela e comeá a desenvolver a consciência crítica. Se o narrador tivesse conseguido acompanhar este processo, teria conseguido criar uma grande obra, mas ele não consegue, já apresenta-o numa leitura pronta, acabada, de fora.


É importante frisar aqui que não se trata de negar uma verdadeira, e mais que legítima, simpatia do autor para com os trabalhadores pobres e injustiçados. O que me parece é que este procedimento – de sobreposiçào de idéias – não valoriza e respeita a vida e cultura destes mesmos trabalhadores, pessoas, representadas por aquelas personagens.


(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE ABRIL DE 2018)



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