ANA JÚLIA MACHADO ESCRITORA POETISA E CRÍTICA LITERÁRIA ANALISA E INTERPRETA O ENSAIO SOBRE VERGÍLIO FERREIRA /**LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VERGÍLIO FERREIRA**/



#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA#


Epígrafe:


"Filosofia não é um processo de deslindar a realidade. É, como a arte, um processo de a conceber."(Ana Júlia Machado)




No que concerne a este tema vou-me debruçar sobre a relação de Virgílio Ferreira com a escrita.


Sem perplexidade. A conexão de Vergílio Ferreira com a escrita é coerciva, impetuosa, desmesurada, assinalada por um caráter aflitivo. A sua existência da escrita é sentida como um fôlego do espírito, como um sinal em que se engendra a ideia. Está bem visível no texto “Do impossível repouso” essa ligação vivencial com o Vocábulo que não possibilita a suspensão, inconciliável com a persistência de uma urgência tão essencial como resfolegar. Uma “escrita desmesurada”, como por ocasiões verbaliza.


Encaro que a denominação dos romances virgilianos como “romances de reflexões” é muito restritiva. É uma circunstância que existe incessantemente assuntos (ou enigmas) racionais que lhes subordinam: o Eu, o Eu-Tu, a Palavra, o Tempo, a Finitude, a Reminiscência, o Físico, entre outros. Mas esses assuntos racionais não brotam nos romances a descoberto, como simples sintaxes ideólogas: civilizam-se, são abrangidas por uma vaga de sensação inspiradora e fortalecidas pela execução estesia.


A escrita de Vergílio Ferreira é possante, penetrante e sentimental, é uma prosa repleta de compasso em que a robustez inspiradora se difunde. É uma prática integral do achado do domínio do Verbo, débil questão sonante, fonética, que alcança existência porque denota, possui um teor sabedor e sensível. Mas que, como matéria sonante, pode ser investigada na arte como tema melodioso, rítmica. A entoação, a melopeia, o compasso são lineamentos inspiradores salientes na prosa virgiliana.


Ao mencionar esse curso enérgico, esse abalo, não possuo em intelecto somente a especto que está associado a valores ou significados negativos, ligada à plangência, à aflição, mas igualmente o lado entusiástico, ditoso e exaltante, aposto à posse emocionante e douta da génese beleza. O que nos espicaça, ao decifrar Vergílio Ferreira, não é somente a profundeza das reflexões, é a sua idoneidade de as vazar em arte com uma sensação e uma pujança sublime que difundem às ideias o domínio de nos sensibilizar. É a plenidão da execução harmoniosa que converte radiante a leitura dos seus textos, mesmo quando o seu teor é fatídico.


O próprio escritor discursa da emoção que sente quando redige: [escrever] “um romance é para mim um modo específico de estar comovido e de descobrir o mundo e a vida dentro dessa comoção.” (Conta-corrente II). Do mesmo modo poderemos verbalizar que decifrar Vergílio Ferreira é um jeito particular de encontrar-se emocionado e de desvendar o planeta e a existência interiormente dessa emoção.


“Filosofia e Literatura (…) incumbem liquefazer-se e existir arte no considerar como entendimento na arte. (…) Santo Agostinho, Pascal, Nietzsche, mesmo Bergson, até Jaspers e talvez Heidegger, são filósofos do sentir, do cogitar trespassado de comoção e que por isso nos atingem na mente à afectividade.”.


Filosofia não é um processo de deslindar a realidade. É, como a arte, um processo de a conceber.


Ana Júlia Machado


Tomo a liberdade de epigrafar a interpretação da "relação de Vergílio Ferreira com a escrita", pois que ipsis verbis elucida a Arte do grande e eterno escritor português, e a filosofia nesta escrita presente.


Em toda a obra do escritor está presente isto de não ser um processo de deslindar a realidade, sim um processo de concebê-la. E dois de seus romances re-presentam com primor o que é isto de conceber a realidade, que são ESTRELA POLAR e ALEGRIA BREVE. Alegria Breve é o processo de construção do Novo Homem. O autor des-facela, multifaceta a Linguagem para criar outra Linguagem que re-vele os dramas da contingência humana, e o estilo nasce desta Linguagem, o estilo vergiliano.


Para este ensaio investiguei vários críticos, importantes na compreensão da obra. Agora, em nenhum deles encontrei uma definição tão coerente e percuciente: a síntese da Filosofia e a Arte, conservando e preservando os seus eidos, germinar, gerar o processo de deslindar a realidade, e com uma atenuante, Ana Júlia Machado é portuguesa, conhece a obra, interpreta-a aos seus olhos e não apenas, como os críticos, apontam metodologias de interpretação.


Em 1983, estudante de Filosofia, o professor catedrático da cadeira LITERATURA PORTUGUESA I e II, Universidade Católica de Minas Gerais, Onofre de Freitas, escreveu um Ensaio sobre Estrela Polar, analisando-o sob a luz de Jacques Lacan. Onofre de Freitas convidou-me para fazer o prefácio do Livro, tendo eu recusado: "Sob a luz da Psicanálise Existencial, teria imenso prazer em prefaciar a sua dissertação, mas à luz de Lacan não, pois que este romance vem para conceber a realidade, a realidade é a esquizofrenia de Berto, Bertinho, Adalberto. Nada haver com as teorias de Lacan. Não farei este prefácio..." A Universidade Católica de Minas Gerais neste tempo estava entupigaitada de Lacan, tudo era Lacan.


A troca de Aida por Alda, feita por Berto(Adalberto), vem mostrar com veemência este transitar entre a Filosofia e a Arte, que é a característica sine qua non do escritor Vergílio Ferreira, à busca de outros processos linguísticos, semânticos, à busca da consciência estética, construí-la a partir da "anunciação da evidência" A evidência é a pedra de toque na construção estética da realidade das contingencias existenciais.


Primorosa a sua interpretação dos caminhos de Vergílio Ferreira, Ana Júlia Machado. Meus sinceros cumprimentos!


Manoel Ferreira Neto


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Manoel Ferreira Neto: ENSAIO


IV PARTE


Hipoteticamente colocado o tema de Estrela Polar, a situação humana nele representada, embora dotada de uma lógica inegável apresenta-se raiada de uma atmosfera de absurda irrealidade algo semelhante ao que de insólito e brumoso possui o universo romanesco de um Kafka.


Esse absurdo, essa irrealidade, revelam-se muito mais francamente quando se analisa a experiência vivenciada dessa colocação hipotética, que é, afinal, a própria situação nuclear de Estrela Polar, cuja efabulação se pode descrever resumidamente? Adalberto apaixona-se por Aida, que tem uma irmã gêmea (?) chamada Alda, extraordinariamente parecida com ela. A tal ponto vai a semelhança que ele não consegue distinguir uma da outra, estabelecendo-se certa confusão, que o leva, algumas vezes, a trocar Aida por Alda e vice-versa.


A essa confusão segue-se uma espécie de jogo tacitamente aceito entre os três que permite a Adalberto relacionar-se com as duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber em cada vez com qual delas está e que por isso mesmo passam a ser denominadas no romance de Aida-Alda como se as duas se fundissem numa só pessoa. Entretanto, de forma lenta, muito longinquamente algo começa a se definir neste relacionamento de Adalberto com as duas irmãs e a paixão ou o interesse do protagonista se desloca de Aida para Alda, embora ele continue sem saber distinguir uma da outra. Certo dia, quando passeavam de barco numa temporada de praia, as duas sofrem um naufrágio e Alda morre afogada. Adalberto, porém, mais uma vez as confude e acredita que Alda era a sobrevivente. Aida deixa-o permanecer no equívoco e os dois casam-se. Mais tarde, o engano desfaz-se, Aida revela a sua verdadeira identidade e Adalberto acaba por matá-la, porque apesar da extraordinária semelhança que em todos os níveis existia entre ambas, Aida e Alda não eram a mesma pessoa e Aida era exatamente alguém que Adalberto há muito aborrecera e que se lhe gastara.


A direção do pensamento implícita em Estrela Polar praticamente já se revelou, embora de forma excessivamente resumida, através da rápida descrição da fábula do romance e no que de continuidade ele possui em relação a Aparição. Entretanto, há interesse ainda em acompanhar alguns lances da trajetória existencial de Adalberto. Ainda no início do romance, exatamente ao terceiro capítulo, ele diz:


“A minha vida entendo-a na iluminação em que me sinto, me estou vivendo, me sou. E é possível por isso que a todo o meu passado eu o esteja coordenando sem saber, eu o esteja reinventando sem saber, como se ele fosse inimaginável fora de como o estou vivendo. E a que propósito o afirmo, agora, aqui – não aqui, lá?"
Se bem que a perspectiva literária não ofereça ainda um horizonte onde possamos distinguir as conseqüências da obra de Vergílio Ferreira nas letras portuguesas atuais, duas questões devem, no entanto, ser colocadas neste estudo. Qual a influência de Vergílio Ferreira nos seus contemporâneos? Criou ele, como romancista, discípulos que tivesse aproveitado a lição do “ciclo existencial”? A resposta parece ser apenas uma: sem dúvida que sim.


É sempre ingrato apontar influências. Acontece muitas vezes que os autores ‘influenciados” não conheciam as obras que os “influenciaram”. Há alguns casos destes na literatura portuguesa, a começar por Eça de Queiroz. Os autores negam a influência, recusam-na com sinceridade, porque muitas vezes nem deram por ela. É isso que permitiu a Vergílio Ferreira dizer que “acasos de biografia, de leituras, de encontros e decerto de tendências, acabaram por cristalizar em mim os temas que mais importam”. Eis, portanto, o que acontece com os escritores de uma ou duas gerações consecutivas. Por essa razão podemos detectar a influência do autor de Mudança em alguns dos mais destacados representantes da ficção portuguesa contemporânea. Um Infinito Silêncio (1970), de Antonio Rebordão Navarro, por exemplo, acusa a leitura da experiência de Alberto Soares, até por certa semelhança das situações. Assim como a escrita também parece confirmá-lo. A leitura do romance de Rebordão Navarro leva-nos a evocar o espaço de Aparição: em Viamonte, o personagem-narrador executa igualmente o milagre da visitação de si a si próprio e, simultaneamente, o exercício memoralista de Estrela Polar.


“... um dia, recordarei Viamonte sem exaltação, sem repugnância, sem saudade lerei talvez estes apontamentos sem me aperceber de que esta primeira pessoa do singular fui eu num dado tempo, numa vila a nordeste que, aos poucos, se despovoava, o som perderá o seu significado ou ganhará um outro, todos os sons evoluirão assim, significarão diferentemente palavras que são nomes de pessoas: Miguel João, Tomàzinho, Olímpia, perguntar-me-ei se existem, se existiram, se existirão ali ou noutro qualquer lugar, perguntarei se existe Viamonte com a sua igreja, o pelourinho, o tribunal, as ruas enlameadas ou poeirentas, os cafés, a estação dos Correios, o Hospital, o casarão amarelo dos Bombeiros Voluntários”.


Quem, ao ler este fim de romance, não evocará as linhas finais de Estrela Polar, com a memória de Penalva, de Aida e Alda que aí habitavam ou habitam? E quem não evocará também o solitário professor que abandonou Évora, marcado para sempre pela ‘anunciação da evidência’?


Mario Sacramento coloca, portanto, Vergílio Ferreira entre os fatores que ocasionaram a evolução literária de Fernando Namora, levando depois o problema para o terreno meramente histórico, quando pretende traçar as delimitações do Neo-realismo, dividindo-o em duas fases, colocando o que ele chama de segundo Neo-Realismo a partir de 1950, historicamente condicionado a um sentimento de angústia ou de tensão universal originado pela chamada “guerra fria”, que instaurou sobre o mundo a eminente ameaça de um conflito nuclear.


Vergílio Ferreira, como se poderia ver depois pela perspectiva de distanciamento cronológico e pela própria seqüência da obra do romancista, não representaria apenas uma mudança de enfoque neo-realista ou uma abertura para o aproveitamento de novos temas ou o ensaio de novas técnicas romanescas. Na realidade, o romance, apesar dos elementos que ainda explorava e que eram próprios da ficção social, implicava uma mudança bem mais radical: significava a ruptura do escritor com um movimento e uma geração literária, era o início de um caminho que Vergílio Ferreira percorreria solitariamente. Mas essa ruptura iniciada pelo escritor de maneira lenta e paulatina lançou certa ambigüidade no âmago de Mudança, o seu romance-limite, ambigüidade que não permitiu à crítica da época, descobrir, de imediato, as verdadeiras intenções do romancista e o integral significado do seu livro. É comentando este aspecto da obra que Eduardo Lourenço afirma:


“Por isso se pode dizer que Vergílio Ferreira não escreveu nunca melhor romance neo-realista do que “Mudança” – e os críticos neo-realistas assim o entenderam – e ao mesmo tempo que nas suas páginas agoniza já a forma habitual desse neo-realismo. Todavia, esta leitura que torna “Mudança” não só o mais ambíguo dos romances do autor, como o romance da ambigüidade nascente que será, em seguida e em toda a plenitude, a criação específica e a orignalidade indiscutível de Vergílio Ferreira, é o futuro só que a instaurará fazendo pender a balança naquele sentido que em “Mudança” é apenas potencial”.


A ambigüidade que caracteriza Mudança declara-se a partir do próprio título, igualmente ambíguo, sintomático, aberto a diversos significados porque está relacionado com vários significantes. Mudança, para usar a feliz expressão de Eduardo Lourenço, é um título profético como todos os que convêm à hora que designam. Na interpretação do título deste romance é necessário adotarem-se duas perspectivas diversas: uma voltada para as circunstâncias externas da obra em si, relacionada, entretanto, com a consciência literária do romancista e com o panorama ficcional do seu tempo; a outra, vinculada aos elementos inerentes ao próprio romance, como a estrutura formal, o arcabouço estilístico ou os fatores componentes da trama romanesca. Assim, a partir do primeiro enfoque, o romance de Vergílio Ferreira, desde o título poderia ser interpretado como uma mudança operada na criaçào literária do escritor que, abandonando o esquema neo-realista dos seus romances anteriores, começa a enveredar por outro caminho. Já se disse neste ensaio que Vergílio Ferreira só por contingências históricas fez literatura neo-realista, o que, evidentemente, leva a inferir que a partir de certo momento se operaria uma mudança na consciência artística do escritor. Tal metamorfose registra-se exatamente a partir de Mudança, que, valha o lugar-comum, vem sendo reiteradas vezes apontado como um divisor de águas na obra do escritor português, assinalando o início da sua fase de maturidade, e como um marco na própria ficçào portuguesa deste século, descobrindo-se com ele a temática e o estilo existenciais. Neste sentido, o título do romance significa não só a transformação literária de Vergilio Ferreira originada da evolução da sua consciência artística, mas também um rompimento do escritor com a ficção do seu tempo, com a sua geraçào literária.


Por isso, Mudança é um romance solitário, ambíguo, cujo sentido não foi de imediato totalmente captado. É um livro ao qual, guardadas as devidas proporções, se adaptam bem as palavras que Jean-Paul Sartre escreveu a propósito de O Estrangeiro, de Albert Camus: "No meio da produçào literária desse tempo, este romance era, ele próprio, um estrangeiro."


Do ponto de vista interno da própria obra literária, o romance é a história de uma ampla e universal mudança operada em todo o espaço romanesco, seja ao nível do cenário social em que transcorre a ação, seja ao nível da própria consciência das personagens. Assim, o título do romance poderia simplesmente significar a mudança econômica e social sofrida por José Bruno em conseqüência da crise da economia mundial, apresentada no romance de forma abstrata e dimensões míticas, embora com resultados materiais palpáveis, tão destruidores que, da distância dos países de onde vinha, atingia avassaladoramente os homens das serranias de Vilarim, de Castanheira de Pera e de outros lugares que os mapas não registravam. Mas se a “crise” é a grande responsável por tão radicais transformações, estas não se situam no plano meramente econômico, porque terão profundas conseqüências humanas? É em razão da “crise” que se vai desenvolver a mudança no pensamento de Carlos Bruno, e é a sua derrocada econômica que vai agravar até à separação as suas relações com Berta. Este é também um dos significados contidos no título do romance, mas há outros, totalmente distintos e colocados a partir de outras perspectivas. Há, por exemplo, ao nível político-ideológico, a esperança depositada por algumas personagens do romance – entre elas o próprio Carlos – na vitória de Hitler, já empenhado na guerra e que se esperava desse depois do conflito uma nova ordem ao mundo capaz de fazer imperar a justiça. Uma esperança, diga-se de passagem, logo transformada em decepção com a derrota nazista e principalmente com a revelação das atrocidades praticadas nos seus campos de concentração. Ainda ao nível político sugere-se no romance a perspectiva de mudança que deveria ocorrer em Portugal com a realização das primeiras eleições livres permitidas por Salazar, entretanto frustradas pela burla fascista.
Já se sabe que Mudança evolui de um contexto social e histórico para um questionamento existencial e subjetivo, e não se deve esta guinada do enfoque ou da temática romanesca unicamente a projeção da consciência de Carlos Bruno, que a certa altura passa a dominar toda a ação do romance, mas também ao surgimento de outras personagens relacionadas mais ou menos intensamente com a existência do protagonista. É verdade que algumas dessas personagens agem quase como meros estímulos à consciência ou ao pensamento de Carlos, mas também é inegável que representam, elas próprias, certas parcelas de comportamento, certas maneiras de existir, de pensar e de encarar o mundo.
Como Mudança parece de início um romance construído a partir da estética realista e pertencente portanto ao surto da ficção neo-realista da década de 40, mesmo Carlos Bruno, que já sabemos agora ser uma personagem essencialmente existencial, foi a princípio apresentado com o perfil de uma figura neo-realista, embora tocado já de certas características, certas preocupações que não eram próprias às personagens do romance social. As primeiras cenas do romance mostram Carlos e Berta na varanda da casa de Vilarim, numa noite de setembro após uma tempestade. Subitamente, no silêncio da montanha, a lua veio por fim, quente de augúrio e de sangue, erguendo-se sobre a terra como os anjos das ruínas... Carlos olha contemplativo o espetáculo da natureza e não contém uma exclamação: - Caramba! É belo! (...) Assombra, Berta! Esmaga!
Carlos Bruno traz represado dentro de si um certo lirismo cósmico, mas não é este ainda o traço que o diferencia de outras personagens neo-realistas, porque as figuras rústicas de Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes também se surpreendem vez por outra perscrutando contemplativamente a fixidez luminosa dos astros. Entretanto, Carlos possui já a consciência do concerto do universo; - Tudo está certo no mundo, diz ele, tudo está no seu lugar. Mas o seu espanto diante do cosmos e as suas certezas, são por vezes nubladas por uma angústia latente que pode estar contida dentro de si próprio ou emanar das forças da natureza:


“ – São-me boas estas horas, esta paz. Boas. Como eu sei.
(...)
- Tornava-me um dragão, Berta, palavra de honra, um dragão, se não fosses estas horas de paz, de vez em quando, esta coisa de fora a calcar, a esmagar as forças de dentro”


Para lá destes vagos prenúncios de angústia ou inquietação, Carlos possuía convicções concretas, valores sólidos e palpáveis: regressava da boêmia de Coimbra trazendo um diploma de Bacharel em Direito, tinha Berta submissamente ao alcance das mãos e da sua vontade, um pai vitorioso e forte como um rochedo a inspirar-lhe confiança no presente e no futuro e era herdeiro de uma das maiores fortunas da região. Em Vilarim, como em toda a Serra da Estrela, o valor de um homem sempre se pesou em sacas de lã, de batatas ou de boas palavras. A Carlos Bruno nada disso faltaria, e esses eram valores absolutos sobre os quais poderia tranqüilamente alicerçar a vida. A busca verdadeira, entenda-se, a procura dos verdadeiros e autênticos valores que deveriam reger as relações entre os homens. A vida terminou, o romance começa.


O romance, segundo Lukács, é a história da busca de valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida. Ora, só neste instante o herói se torna problemático, o universo surge como vazio e degradado, o sentido da vida desaparece. Mas de repente, como um surto de peste, a “crise” que vinha de longe dizimando fortunas e homens chegou também a Vilarim e abateu-se sobre os valores de Carlos Bruno jogando-os por terra. José Bruno teve a fábrica fechada com as portas seladas pela Justiça. Os bens interditados eram garantia de alguns credores. Não suportando o golpe, o velho Bruno enforcou-se. Restavam-lhe Berta e a profissão de advogado que se obrigara a exercer na vila de Castanheira como forma de sobrevivência. Perdera a força e o orgulho. Ruíram todas as suas convicções e multiplicaram-se as dúvidas na sua consciência. Carlos mergulhara numa lassidão viscosa, silenciosa e apática, aceitando a sorte sem um gesto de revolta. Para desespero de Berta, em pouco tempo a vida o transformara profundamente. Por isso mais tarde, já casados, ele ouviria da mulher coisas assim:


“Quando eras príncipe de Vilarim, eras outros. Palavra, gostava mais de ti. Eras duro, arrancavas para a frente. Às vezes magoavas. Mas a gente sabia o teu caminho e arredava-se”.


O motivo da morte pelo suicídio em Mudança, remete fatalmente o leitor mais curioso ou mais versado em determinados temas e teorias existenciais a uma outra obra de Albert Camus: O Mito de Sísifo. Efetivamente, sabendo-se da identificação de Vergílio Ferreira com romancistas e pensadores existencialistas, é praticamente impossível não recordar a formulação do pensamento absurdo proposto por Camus. Matar-se – diz ele – em certo sentido ( e tal como no melodrama), é confessar. É confessar que se é ultrapassado pela vida e que a não compreendemos. A citação aplica-se bem ao caso de José Bruno: o seu suicídio equivale de fato à confissão de que a vida (ou a crise) o venceu e que a existência, afinal, nunca foi bem compreendida por ele. Os seus valores eram palpáveis, absolutamente concretos (Em Vilarim, como em toda a Serra da Estrela, o valor de um homem sempre se pesou em sacas de lã, de batatas ou de boas palavras) e quando sucumbiram esmagados por uma força estranha, abstrata, incontrolável, desapareceu com eles a razão de viver. Para Carlos Bruno estes valores também existiam, mas o pai, era, ele mesmo, um valor em si próprio, talvez o maior deles e cuja subtração o lançou repentinamente no espanto do jogo entre a vida e a morte.


(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE ABRIL DE 2018)




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