#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE X# - GRAÇA FONTIS: ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO



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GENUÍNO POMO DA SABEDORIA


A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski


2.1.1 -MUNDO DE POBREZA E SOFRIMENTO


Se “olhamos” de soslaio a questão da culpabilidade, a neurose da culpabilidade não esteja relacionada com o intenso poder para o mal que Dostoievski sempre associou à Igreja, e o “pecado original” ser um tema recorrente em sua obra. De Roma Dostoievski escreveu grande número de cartas; todas denotam, porém, apenas preocupações com questões práticas e singularmente não mostram reações pessoais ao grandioso espetáculo que se descortinou diante de seus olhos: as ruínas da antiga capital e a majestade da morderna sede da autoridade papal. Leonardo Boff diz: “Em Assis, recupera-se a Fé, em Roma perde-se a fé”.


É estranho: escrevo de Roma, e não falo uma palavra sobre Roma, não pôde deixar de observar a Strakóv num pós-escrito. Seja como for, faz um breve comentário: “Ontem de manhã, visitei a igreja de São Pedro! A impressão é muito forte, Nikolai Nikolaievitch, dá um calafrio na espinha” .
A verdade – a verdade verdadeira, a inverossímil, a que para ser verossímil faz-se mister misturá-la com a mentira - escondida na alma de cada indivíduo que ele encontra é a sua preocupação fundamental. A realidade de cada ser o absorverá por completo, impelindo-o a esquadrinhar os mais recônditos e intrincados problemas de consciência. Penetrar-lhes a alma, a de todos os indivíduos, será o seu motivo de viver e, depois, a sua principal razão de escrever.


Os anos da primeira infância de Fyodor Mikhailovitch Dostoïévski foram reclusos e tristonhos. Sempre preso em casa; só de quando em vez consegue uma fugida; raras vezes sai a passeio e pode brincar no parque vizinho.


Ele e o irmão Mikhail tinham de se comportar como adultos. Não lhes era permitido correr e falar com meninos da mesma idade ou condição social. Vigilante e severo, o pai não lhes consentia travessuras nem relações com estranhos. Não nos faz lembrar o menino de doze anos que desapareceu por alguns dias e, quando Maria Santíssima, desesperada com a sua atitude, “ralhando” com ele por a deixar tão preocupada, Ele não respondeu: “Estava cuidando das “coisas” de meu Pai”? Estava discutindo com os doutores no “templo”.


Do jardim da casa, separado do pátio do hospital e do asilo por um gradil de ferro, Fyodor espreitava com aguçada atenção um mundo extraordinário, misterioso. Com a silenciosa gravidade das crianças perante a miséria e a dor, seu olhar acompanhava os movimentos dos doentes e dos velhos que ali se arrastavam.
Observava com espanto e minudência aquele mundo esquecido e condenado. Encostava o rosto na grade e ficava, horas a fio, assistindo ao perpassar daquela gente tão diversa da que encontrava em casa. E, como é de se presumir, essa presença constante no gradil despertava a atenção dos enfermos ou asilados. Aproximavam-se, então, puxando conversa com o filhinho do doutor, Fyodor ouvia-os com atenção e fazia-lhes perguntas sobre perguntas. Queria saciar um pouco a sua sede de saber, de conhecer a intimidade de seres tão diferentes.


O contato com esse mundo de pobreza e sofrimento era vedado às crianças. Apresentavam-no como uma espécie de pomo da sabedoria, em que tão cedo não poderiam tocar. Fyodor não se conformava com isso; e, sempre que surgia alguma oportunidade, procurava conversar com os homens de camisola branca. O que perguntava e aprendia, nunca revelou a ninguém.


Guardava-o, decerto, para alimentar os momentos de quietação e de cisma, nos quais se comprazia. Momentos que se alternavam com horas de travessura. Momentos que se sucediam aos acessos de desconfiança e ira do major, quando esse perdia as estribeiras e, com os olhos injetados de cólera, discutia com a mulher e os filhos, ou explodia com as criadas.
Com quatro anos incompletos, teve Fyodor Mikhailovitch Dostoïévski de aprender o rebarbativo alfabeto russo. Aprendeu-o com a mãe. Logo em seguida, ele e Mikhail ouviram ensinamentos sobre os Evangelhos, nas eloqüentes lições de um certo e misterioso diácono, professor do Colégio Santa Catarina. Lições que escutavam de olhos esbugalhados, febricitantes. Lições que fazem Maria Federovna, sua mãe, esquecer os afazeres domésticos, para ouvi-las, igualmente embevecida.


Mais tarde, tomaram aulas de francês com o parisiense Souchard e começaram o martirizante aprendizado de latim, cujo ensino era ministrado pelo próprio pai, Mikhail Andrevitch.
Complexa, contraditória, a natureza do doutor Dostoievski! Ao mesmo tempo em que tratava os filhos de modo brutal, tinha escrúpulos excessivos na escolha de colégios para eles. Antes de interná-los pela primeira vez, examinou, cheio de reservas, todos os estabelecimentos de ensino de Moscou. Queria um colégio onde não se batesse nos alunos e acabou matriculando-os no semi-internato do mestre Drachussov, dirigido pela esposa do pedagogo.


Os meninos pouco se demoraram lá, no máximo dois anos. Era preciso acostumá-los à disciplina mais rígida, e o major, sem medir despesas, transferiu Fyodor e Mikhail para o colégio de Tchermat, educador de várias gerações moscovitas.


Qual terá sido a reação desse coração sensível ao se ver arrancado do doce aconchego da mãe e da ama, para o mundo cruel dos meninos do internato? Como se acomodou no ambiente em que passou a viver?


Quem sabe os seus sentimentos foram idênticos aos que atribuiu a Varvara Alieksiéievna, personagem de sua primeira novela, a que tivera todos os elogios do grande crítico russo Bielinski . Recordando os dias de internato, ela se queixa do clima de sequidão, do ambiente pouco acolhedor, e do regulamento severo, exigente. Queixa-se também das colegas zombeteiras, dos gritos dos inspetores, da indiferença, dos professores e do diretor.


Após três meses da nossa chegada a Petersburgo, meteram-me num pensionato. Que tristeza, a princípio, entre tantas caras desconhecidas! Era tudo tão seco, tão indiferente, tão hostil e tão pouco atraente! As professoras ralhavam, as colegas faziam trapaças e eu me encolhia tôda... Que rigor tão tolo, aquêle! Tudo tinha de ser feito a horas certas e com toda a pontualidade, as refeições na mesa redonda, as lições tão aborrecidas...: a princípio sentia-me muito desolada. Nem sequer podia dormir. Quantas intermináveis, aborrecidas e frias noites não passei eu em claro, chorando até o amanhecer! À tarde, quando as outras meninas estavam estudando ou revendo as suas lições, eu ficava muito quietinha, com o livro adiante, sem me atrever a mexer-me; mas o meu pensamento voava até a casa, lembrava-me dos meus pais, da minha boa e velha ama e das suas histórias... oh! que saudades se apoderavam então de mim! Recordava-me com toda a clareza dos mais insignificantes objetos de casa e ainda hoje mesmo recordo tudo com um prazer especial, doloroso... E assim ficava, naquele devaneio... “Que bom seria estar agora em casa! A esta hora estaria eu sentadinha na sala de jantar, à mesa, sobre a qual ferve o samovar e à volta dela estão também sentados os meus pais; que calorzinho se sente, que bom e que cômodo é estar ali! Como gostaria – pensava eu – de abraçar a minha mãezinha, com força, com muita força, oh! Com muito carinho!”.


E voltava logo ao meu devaneio, até que as saudades me faziam chorar de mansinho e me punha a engolir as lágrimas. E, com isto, a lição não me ficava na cabeça. No entanto uma lição não é coisa que se possa deixar para o dia seguinte e aí ficava eu a pensar no professor durante toda a noite, na madame e nas companheiras de classe, sonhando que estudava a lição e que, naturalmente, ao outro dia não a sabia; e depois não teria outro remédio senão enrodilhar-me em qualquer canto e ficar sem comer.


Eu andava assim sempre murcha e tristonha. As outras meninas riam-se de mim, pregavam-me peças, distraíam-me durante o estudo e davam-me beliscões, quando, formadas duas a duas, nos dirigíamos ao refeitório, ou então faziam queixas de mim à professora.


Mas que felicidade, quando nos dias de saída a minha boa ama me vinha buscar... .


Em junho de 1839, o pai de Dostoiévski foi assassinado pelos camponeses seus servos. Há diferentes versões do acontecimento. Lyubov, filha de Dostoievski, narra-o resumidamente, nas suas memórias:


Certo dia de Verão, o avô saiu de Darovoye para Chermochyna e não regressou. Mais tarde, foi encontrado a meio do caminho de Chermochyna, asfixiado com uma almofada da carruagem em que seguia. O cocheiro desapareceu, com os cavalos. Pela mesma altura, desapareceram também alguns camponeses. Quando se efectuou o interrogatório da polícia, os camponeses confirmaram que fora um ato de vingança .


Andrey Dostoiévski era então um rapazinho de catorze anos e estava num colégio interno. A narração que escreveu, cerca de quarenta anos depois do crime, contém mais pormenores.


Irritado por qualquer coisa que os camponeses tinham feito o meu pai ficou fora de si e começou a berrar-lhes. Um deles, mais insolente, replicou injuriando-o e, temendo as conseqüências, gritou então para os outros: “Rapazes, vamos a ele!”. E a este brado, todos os camponeses (cerca de quinze) se lançaram ao meu pai e o mataram logo ali .


Andrey dá a entender que, aquando da investigação, a polícia foi subornada pelos camponeses, se bem que não perceba onde eles pudessem arranjar dinheiro para isso. Declara que, depois de apresentado o post-mortem, as autoridades aceitaram a explicação da morte por ataque cardíaco. Acrescenta ainda que a família evitou contestar este veredicto porque, se a verdade dos fatos fosse revelada, quase todos os homens de Chermochyna teriam sido mandados para a Sibéria e, aliás, os próprios herdeiros do pai entrariam em decadência.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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