#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE I# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



Os conceitos aqui figurados para estudo e análise comportam dois momentos, duas dimensões sensíveis humanas: “desejo” e “vontade” – noutras palavras, podemos dizer ambição de potência, poder, e a limitação dessa ambição pela posição de uma potência determinada, que busca ampliar-se e também ambiciona uma potência maior. Por isso, a determinação formal da noção de potência é um “superar-se”. Em ambos os conceitos, habita a superação: o primeiro em nível teológico, a realização da espiritualidade à luz do cristianismo; o segundo em nível da contingência, da filosofia, a realização da consciência à luz da vontade de viver.


Espiritualidade e consciência que, comungadas, proporcionam ao homem a vida numa dimensão elevada. O desejo de redenção, ressurreição, imortalização, exige uma dupla interpretação. De um lado, pode vir do amor e da fé: uma arte que tem essa origem será sempre uma arte teológica. Por outro, pode ser o desejo egoísta de um ser que sofre gravemente, que luta, que é torturado e que gostaria de impor a sua marca pessoal, singular e mais precisa, para fazer dele uma regra obrigatória, um mártir do sofrimento.
Falar da “vontade de poder”, de uma vontade de poder no singular, como de um organismo, de um povo, não é designar o princípio que se encarnaria (como por exemplo, o espírito de um povo para os hegelianos) – mas qualificar sua realidade como feita de um jogo complexo e cada vez particular de forças que agem e reagem sem cessar. Falar do “desejo de redenção” é embrenhar-se no caminho da Verdade, que deve libertar o homem em definitivo. Caminho rasgado na treva, através dos abismos do desdobramento e da tragédia. Esse caminho não é retilíneo nem desimpedido. O homem se perderá nele, seduzido por fantasmas e assombrações, pela luz enganadora que o atrai no seio da treva.


Aliocha, Os irmãos Karamázovi, escolhera a via de São Tomé, acreditar depois que tiver visto, porque isso representava a ascenção ideal para a luz de sua alma desprendida das trevas. Ávido de verdade, procurava-a com fé, querendo dela participar com toda força de sua alma, pronto a tudo sacrificar com este pro-jeto, até mesmo sua vida.


Nos Evangelhos, Jesus tanto se mostra “manso e humilde de coração” com os que sofrem ou pecaram, quanto se mostra violento contra aqueles que pretendem guiar e ensinar os outros, impondo-lhes leis que eles próprios não praticam. A hipocrisia dos escribas e fariseus continua atual... No entanto, estes receberam as chaves. Receberam a letra, a Palavra, os livros sagrados. Receberam a boa-nova do Amor de Deus por todos os homens e seu convite inaudito para a liberdade.


Mas, como mostra perfeitamente Dostoievski, o grande inquisidor está vigilante (ora, o grande inquisidor está em cada um de nós). Dirige-se ao Cristo, assim: “Revelaste aos homens uma liberdade grande demais. Eles estão infelizes. Não sabem o que fazer com isso. Quanto a nós, ensinamo-lhes o que é bem e o que é mal. Dissemo-lhes o que devem fazer... São talvez menos livres, mas muito mais felizes”.


Na voz do grande inquisidor, reconhece-se a voz de todos os regimes totalitários que pretendem dar a felicidade ao homem, sem que este participe dela com sua liberdade... Os escribas e fariseus receberam as chaves do conhecimento, mas não desejam servir-se delas para abrir a porta para todos os homens. Guardam para si mesmos o tesouro das palavras evangélicas ou – o que é mais grave – reduzem-nas, limitando-se a dar-lhes um sentido vulgar ou grosseiro. Não foram os “hermeneutas” da Palavra. Ensinaram a letra que mata e esqueceram o Espírito que vivifica.


O instinto de conservação, a vontade de poder, sobressaíam no universo como leis irrefutáveis e todo-poderosas. E assim, coagida pelas circunstâncias, a criatura inevitavelmente se inclinaria para fazer da deificação do homem o seu ideal maior. O poderio da força e da riqueza, o culto da saúde física e da beleza, tal qual na antiguidade pagã, havia de ser, em definitivo, o coroamento, o apogeu, a plena justificativa da presença do homem na face da terra.


Evidente que esse caminho jamais poderia ser aceito pela fé e pela inteligência de Dostoievski. Ele sabia que tinha liberdade de escolhê-lo, pelo menos na intimidade de seus pensamentos. Em seus primeiros passos, sob a sedutora influência do círculo de Bielinski, chegou mesmo a trilhá-lo, mas logo se viu obrigado a parar, compelido por um decreto do Czar. Fora mesmo por obra e graça de tal decreto?


No degredo, na solidão da Sibéria, era facultado examinar esse problema a fundo, com o máximo da argúcia da sua dialética; e, ajudado pela magia da sua imaginação e com a extrapolação dos fatos e das experiências que viera observando em si mesmo e ao redor de si, ele percebeu e previu todas as conseqüências dessa trajetória que havia de conduzi-lo inevitavelmente à idéia da deificação do homem. Seria o caminho de Nietzsche – pensador que Dostoievski ia morrer sem conhecer -, cujos problemas e soluções o romancista russo, mesmo ignorando-os e rejeitando, duramente refutou, combateu e aniquilou. O caminho de muitas de suas personagens, tais como: Raskolnikov, Ivan Karamazov, Svidrigailov, Stavroguine, Kirilov, Versilov, Dmitri e Ivan Karamavov. O caminho da negação e da revolta, do orgulho da razão e da inteligência, da liberdade sem freios, da exaltação do indivíduo e do exercício da vontade de poder.
Perguntávamos, aquando concebemos a idéia de um paralelo entre ambos, como era possível, sem conhecer a obra nietzscheana, não ter lido um livro sequer do pensador, a oposição radical de Dostoievski a Nietzsche – por exemplo, a crítica kierkegaardiana ao pensamento de Hegel, Kierkegaard conhecia o pensamento deste. Em verdade, Dostoievski e Nietzsche, o pensamento de ambos, apesar das inúmeras adversidades, guarda uma semelhança, Cristo, o cristianismo, ambos abordam o cristianismo; enquanto para Nietzsche a crítica é ao cristianismo, Nietzsche não critica Jesus, Dostoievski assume Jesus na sua vida mesma, em busca da ressurreição, fazendo suas críticas à igreja e ao clero. E tão similares, guardando suas diferenças, desejo de redenção e vontade de poder.


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)


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