À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA NAS PALAVRAS DE SARTRE - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



1.0 - LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - V PARTE...


A partir dessa base, o Espírito Objetivo chega a desenvolver-se com o requinte que se sabe, mas ele é sempre “a própria cultura na estrita medida em que ela se faz prático-inerte”, em que ela estabelece “passividades irredutíveis”, justamente passividades que, por serem condicionantes, ocasionam o processo de interiorização e exteriorização.


Em Sartre, o tema da irredutibilidade aparece, por um lado, estabelecendo-se um comércio pluridirecional entre as camadas da realidade; poder-se-ia dizer que tudo está em tudo, e que a dialeticidade do real põe à mostra sua inquietação e a diversidade interminável de suas configurações. Por outro lado, esse jogo a um tempo movediço e estruturado da dialeticidade concentra-se em torno de um eixo central, espécie de pólo de irradiação: a dicotomia sujeito-objeto.


O sujeito apresenta a complexidade, e o objeto distende-se até assumir as proporções da História e da Cidade. O nome próprio e primeiro da dicotomia é agora o singular-universal.


Aliás, em nosso texto Caminhos de Luz nas Trevas, referimo-nos a estas proporções.


A imagem, que escolhemos como tema e temática, é mui interessante, pois que revela estarmos na fronteira da lembrança e do esquecimento, de imediato surge a idéia da Dialética da “lembrança e do esquecimento”, sendo a imagem da História, o que suscita na leitura de investigação, de busca da verdade, só se revelando na tensão de ambos, nas estratégias de consciência e inconsciência coletiva, individual, universal, nos espirais em que cada espira identifica outro caminho a ser seguido, no caminhar pensativo do lugar que se vai ocupar. Ah!... Esta fronteira da lembrança e do esquecimento, este sonho de rompimento, entrar em sintonia e harmonia com a construção, com a identidade histórica!...


O nome próprio e primeiro da dicotomia é agora o singular-universal, e o universal deve ser entendido primeiramente como “histórico-mundial”.


Há alguma coisa a ser explicada, que está indissoluvelmente ligada à concepção que Sartre tem da história como singular e “não universalizável”; concepção esta que procura demonstrar a “inteligibilidade dialética do singular” e a “inteligibilidade dialética do que não é universalizável”.


Em primeira instância, Sartre sempre associou a investigação sobre o “projeto fundamental” de escritor à pesquisa, in extenso, sobre os modos concretos como ele consegue extrair necessidade a partir das contingências de sua situação, produzindo assim a validade exemplar de uma obra cujos elementos constitutivos estão, em princípio, ao dispor de cada um e de todos nós.


Em segunda, transformar em necessidade os pedaços de contingência encontrados nas circunstâncias do dia-a-dia está muito à mostra no próprio desenvolvimento de Sartre. Neste sentido é que emerge a unidade de sua obra, não de algum projeto original mítico, mas sim com base numa determinação totalizadora que visa à integração dos elementos de “facticidade” transformados em um todo coerente.


Sartre atribui certo privilégio ao momento subjetivo:


Nossa finalidade, com efeito, consiste primeiramente, não apenas em recensear as condições objetivas e em organizá-las, mas em mostrá-las mantidas e ultrapassadas em direção à objetivação pelo momento subjetivo, esse irredutível.


Vê-se logo que o privilégio emprestado ao sujeito não poderia preterir nem prejudicar o momento da história, e nisso não há contradição, ou melhor, há o momento dialético da contradição, do processo de exteriorização e interiorização.


É que, para além de todos os possíveis privilégios, ou da importância que se deve referir a tal momento determinado, o irredutível funciona como se fosse tomado à maneira de uma categoria universal e que levasse a dizer, em seu extremo limite, que nada é redutível a nada.


Há um gênero que, em França durante a II Guerra Mundial, tinha vocação para tomar partido e defender teses. É o teatro . A arte teatral é que foi, desde Bariona, encenada apenas uma única vez, - por proibição de Sartre - Stalag XII D, onde serviu como meteorologista, uma das grandes paixões sartreanas e que, em Seqüestrados de Altona , por exemplo, permitiu-lhe deslocar, maquiar, universalizar e, finamente, tratar, com temível eficácia, a questão da tortura na Argélia.


Os Seqüestrados de Altona arremessa-nos, de chofre, para um problema assaz sério e complexo, gravíssimo, qual seja o da relatividade dos nossos juízos sobre a nossa própria época. Sartre “situa” a obra, mas num plano muito menos imediato que qualquer dos seus romances e peças “situadas”. O juízo sobre o nosso tempo é, de algum modo, o alargamento do juízo sobre nós, são os outros que acabam por nos definir para nós próprios.


A “tese” de Os seqüestrados de Altona está implícita e explícita no princípio de que sendo o homem pro-jeto, a sua realização está sempre em adiamento, em sursis, sendo que este adiamento, para a significação do que somos, se estende às gerações que sucederem à nossa.


Eis porque as vitórias semelhantes à morte têm, frente às derrotas, o inconveniente de apodrecerem, vivendo as derrotas, para o futuro, como um problema retomado e renovado. Assim, Sartre, contra toda a verossimilhança, admite explicitamente a hipótese de que “amanhã possivelmente reabilitar-se-á Hitler”.


Ao crítico teatral de Os seqüestrados de Altona disse Sartre não se poder nunca prever o que o futuro irá dizer. É possível que a História acabe por considerar Hitler um grande homem – o que aliás o surpreenderia muitíssimo. E havia nisto qualquer coisa de terrível.


O teatro, na caracteriologia sartreana dos gêneros, não é bem um gênero literário. Ele é aliado do imaginário. É, inclusive, como lembrado em Saint Genet, um dos lugares por excelência da irrealização do mundo que é própria da literatura. E daí vem - aliás, desde o tempo em que os gregos jogavam pedras em Téspis, desde o tempo, não tão longínquo, em que as igrejas cristãs recusavam a inumação aos atores - a surda desconfiança que inspira às “sociedades de formigas” que “farejam um perigo obscuro” nessas representações cuja palavra final é sempre “isso não existe”.


O teatro – como Rousseau, outro aficionado, o havia notado e, como Sartre, depois, não cessa de repetir – tem rigorosamente as propriedades inversas: presença física dos espectadores, calor comunicativo dessa presença, reunião dos habituais leitores numa multidão compacta e real, que recebe a mensagem, não só no calor dessa comunhão, mas sem demora; em suma, o duplo imperativo de fraternidade e de eficácia, antes daquele do Belo ou da Verdade.


Sartre verá nisso uma razão de “degradar” o teatro ou a prova de sua excelência. É que não se trata mais absolutamente de uma arte. Trata-se, mais exatamente, de gênero fronteiriço entre a literatura e a não-literatura.


A análise da vida do artista e de seus fantasmas permite o acesso à obra criada? Pode-se explicar a obra pelo artista? Esse questionamento tornou-se em demasia um lugar-comum, isto é, fez-se resposta, e o fascínio ocioso das multidões, mas não só delas, transformou a vida “espetacular” de Van Gogh em sério concorrente para o espetáculo menor e silencioso de suas telas.


O que pretende Sartre? Que ele busca elucidar também a obra ressai já do inventário das razões enunciadas no prefácio de O Idiota da Família, isto é, a relação do homem com a obra.


Trata-se de alcançar a obra enquanto um em-si, enquanto ela termina ostentando certa autonomia? Sartre, em o Idiota da Família, desenvolve todo um programa psicanalítico: a arte entre Cila e Caribdes, entre a neurose e a perversão. Não destaca ele princípios metodológicos: o método existe implícito, enquanto aplicado, ou ele se constitui através da aplicação como se a lei estivesse inscrita no próprio objeto.


Não se vai ao psicanalista sem tê-lo decidido, e que esta decisão é o sujeito quem a toma. Mas não: o sujeito acredita tomá-la. Na verdade, ele é condicionado por seus próprios conflitos. A neurose pode aparecer inicialmente como um mal menor, que permite ao indivíduo adaptar-se às suas dificuldades e aos seus problemas tornando-os suportáveis. Mas chega um momento em que o caráter contraditório desta solução estoura: não se suporta mais a neurose, vai-se ver um psicanalista. Então a situação se inverte. É a neurose agora quem levanta obstáculos à cura, e é preciso vencer a resistência. Mas tanto antes como depois, o sujeito é conduzido, constituído por sua neurose. Ele não é outra coisa que um epifenômeno, e tudo parece se passar fora dele.


Em sua entrevista a Pingaud, diz-nos:


O “homem” não existe, e Marx já o tinha rejeitado bem antes de Foucault ou Lacan, quando dizia: “Eu não vejo homens, eu só vejo operários, burgueses, intelectuais”. Se persistimos em chamar de sujeito uma espécie de eu substancial, ou uma categoria central, sempre mais ou menos dada, a partir da qual se desenvolveria a reflexão, então há muito que o sujeito está morto. Eu mesmo critiquei esta concepção no meu primeiro ensaio sobre Husserl. Mas o descentramento inicial que faz com que o homem desapareça atrás das estruturas implica uma negativa, e o homem surge dessa negação. Há um sujeito, ou subjetividade se se preferir, a partir do instante em que há um esforço para superar, conservando-a, a situação dada .


A arte neurótica se situa historicamente em França em 1850. O âmbito da literatura se apresenta como um conjunto de normas que condicionam a práxis abstrata do escritor.


O escritor se encontra em uma situação de conflito total: enquanto, por um lado, ingressa na zona da Arte Absoluta, por outro, vive um campo conflitivo (conflito de classe) em sua práxis como escritor.


A neurose objetiva é a hipótese de um princípio de inteligibilidade que se encontra na base de uma multiplicidade de sintomas. Este princípio remete o querer individual à objetividade do prático-inerte-literário.


A música é ainda uma expressão da realidade, tem que ver com ela como a pintura (como a corrente abstrata confirma). A pintura abstrata põe a Sartre um problema. Não poderia agregá-la à pintura “figurativa” na questão do “imaginário”. Com inteligência e não convincentemente, a pintura abstrata entra na problemática geral da representação plástica. Nesta pintura, Sartre vê também a presença irrealizada de objetos não existentes em parte alguma, “mas que se manifestam através da tela, que dela se apoderaram por uma espécie de posse”.


A atitude irrealizante dir-se-ia realizar numa ordem inversa, no sentido de uma regressão, a qual ordem se restabeleceria, na sua marcha progressiva, se porventura nós viéssemos a encontrar na “realidade” os objetos de que nos fala a pintura em questão. Esses objetos reais, de fato não existem; mas, ao vê-los num quadro, não operamos por uma “realização” deles, mas por uma irrealização. A sua representação é de fato um “análogo” de objetos inexistentes, mas que no quadro “irrealizamos” como se de fato existissem.


O “compromisso” na arte, portanto, e ao contrário do que Sartre nos proclama, deriva muito mais da afirmação da liberdade intrínseca do próprio artista do que de um propósito moral. O “compromisso” ou é forma de estrutura, necessidade, ou obrigação moral. A arte ou é “irreal” “e aí também o romance” e, portanto, é “estúpido” ajuizarmos dela com valores de ordem imediata (como o valor “moral”) ou se estrutura em situação e se deve “comprometer”, submetendo-se, pois, a juízos de ordem “moral”.


Não se deve concluir imbecilmente que estas e outras “contradições” – nascidas às vezes só de uma “evolução” – são o sinal de uma autodestruição da obra sartreana: são o sinal apenas da sua condição, da condição de nós todos... A coerência absoluta é o apelo inexorável de todo o homem que pensa e, se pensa, é de algum modo a miragem do Em-si iluminado no Para-si, a totalização, o Deus que inventamos no falhado desejo de o inventarmos em nós.


O máximo de dignidade e de coerência no homem está em sonhar ardentemente essa coerência, esse Absoluto, em sentir-lhe o apelo e esforçar-se por obedecer-lhe, sem nada recusar, porém de quanto porventura o negue – para ser coerente...


Sartre-encruzilhada, Sartre contraditório, desconcertante, desmistificador, Sartre impossível...


(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE ABRIL DE 2018)


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