#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE VIII# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



Pode-se sustentar que os inícios da tradição sobre Jesus se encontram na comunhão de vida que Jesus teve com seus apóstolos, isto é, com aqueles que ficaram fascinados pela sua pessoa, sua mensagem e sua conduta. Essas lembranças, como também as experiências ocorridas após a morte de Jesus, são como a matriz da fé cristã. O Querigma, em virtude de sua “própria autocompreensão”, manifesta vontade de referência ao evento Jesus. Existe contínua interação entre a lembrança de Jesus que seus discípulos, à luz das novas experiências que esclarecem as lembranças do passado, penetraram o sentido de sua vida como realidade definitiva da salvação e puderam identificá-lo como Messias e Filho de Deus.


O stáriets numa conversa que tem com Aliocha, Os irmãos Karamázovi, diz:


- [...] Experimentarás uma grande dor e ao mesmo tempo será feliz. Tal é a sua vocação: procurar a felicidade na dor. Trabalha, trabalha sem cessar. Lembra-te de minhas palavras, doravante, porque entreter-me-ei ainda contigo, mas meus dias e mesmo minhas horas estão contados


As palavras que servem de epígrafe a Os irmãos Karamázovi dão a chave do grande monumento:


“É o choque das duas idéias extremas que jamais surgirão sobre a terra: o homem-Deus encontrou o Deus-homem; Cristo e o Apolo de Belvedere” .


Quando a doença ou o infortúnio enfraquecem a razão do homem, então ele pode aproximar-se da “verdade total”. Aí, a intuição começa a preponderar sobre o raciocínio e o homem galga o alto muro que separa o natural do sobrenatural. Sirva de exemplo a figura de Svidrigadov em Crime e castigo.
Cada criatura, para Dostoiévski, é uma alma, fundamentalmente uma alma. Ele, porém, não acredita que a alma humana tenha configuração e unidade próprias e só a compreende unida indissoluvelmente a Deus. E toda aquela que se desprende e se afasta de Deus viverá na dúvida e na vacilação, isto é, no caos. Mergulhada em trevas e angustiada, ela só se salvará postando-se aos pés de Cristo, buscando através Dele o amparo do Todo Poderoso. Só assim, o réprobo reencontrará paz de espírito e ressurgirá para a vida.


Se o homem é apresentado como imagem de Deus, é antes de tudo naquilo que é o Deus segundo os cristãos que encontraremos o texto prínceps de sua antropologia; nossa civilização será a promotora do humanismo que, para Dostoiévski, é essencialmente cristão. Quando Dostoiévski proclama que o sofrimento, a dor devem ser superados, que o homem deve mergulhar em sua alma em busca de Cristo, do Amor, da Compaixão, da Fé e da Esperança, esta proposição só ganha sentido no horizonte de que o “humanismo” é uma antropologia essencialmente cristã.


O caminho da deificação do homem, posto que seja um caminho de perdição, não deixa contudo de ser árduo, cheio dele e o arrastam para uma existência de sofismas e negações, de dores e angústias, de sofrimento e agonia. A atmosfera que o envolve é altamente tensa, o calor é de lava ardente. A corrida para o abismo parece-lhe precipitada, infrene. O homem tem pressa de se tornar Deus e teme não o conseguir no curto prazo de sua existência.
A balbúrdia do mundo exterior, por mais que ele queira, não pode esconder o drama que se desenrola em sua alma. Dado o primeiro passo na estrada da deificação, a consciência do homem desperta e trava um diálogo interior interminável, quase fastidioso. Entabula discussão implacável consigo mesma. Qualquer pensamento hostil é tenazmente combatido, enxotada das correntes do pensamento, recalcado nas profundezas do ser. E a idéia rebelde, o protesto adverso, é julgado funesto e, por isso, se refugia no inconsciente, onde aguarda que outros sentimentos afins venham se agrupar, torna-o um núcleo forte e impetuoso.


Dostoievski explora todos os caminhos e atalhos da iniqüidade e do pecado; o clarão de sua inteligência ilumina todos os escaninhos do entendimento dos intelectuais orgulhosos, que repudiam a idéia de Deus. Arrastado pela força de uma dialética implacável, ele disseca a idéia do Homem-Deus em pleno desenvolvimento. Com ele, vemos como essa idéia nasce e palpita na alma de suas personagens; vemo-la germinar no cérebro de homens que se despem diante de nós. Basta acompanhá-lo através de sua obra – mormente nas páginas de Os possessos, O idiota, O adolescente e, sobretudo, de Os irmãos Karamázovi. A idéia da deificação do homem que o conduz à irremediável destruição; todo aquele que abusa da liberdade, afastando-se de Deus e do convívio com seus semelhantes, finda destruído por seus próprios atos.


(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE ABRIL DE 2018)


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