#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



VII PARTE......


O antropólogo Lévy-Bruhl propôs, nos seus últimos Carnets, a diferença entre a mente primitiva e a civilizada exatamente em termos de participação para a primeira e distância para a Segunda. Nesta, o outro é sempre objeto de desejo ou de medo, de conhecimento ou de mistério. Naquela, ao contrário, há sempre uma integração dos pólos. Ora, numa romancista ocidental e culta (o que não quer dizer “sofisticada”), a integração nunca poderia ser um dado, mas um projeto, uma árdua conquista. Basta ler as obras que precederam A Paixão para acompanhar a lenta redução operada: dos fragmentos em que se estilhaça a intuição da escritora à unidade da consciência que se esforça por transmitir os momentos da sua iluminação (não se esquecer de que “iluminação é um outro modo de com-templar a “revelação”, como busquei expressar no ínicio deste trabalho) . Termo que parecerá místico, mas que é justo empregar aqui, pois tem o selo da iluminação religiosa aquele conhecimento súbito de uma verdade que despoja o eu das ilusões cotidianas e o entrega um novo sentido da realidade.
É evidente que a idéia de revelação pode ser usada de forma ideológica e a transcendência funcionar como uma "imagem encobridora para a desesperança socia"l . Isto se dá "quando a religião é adotada por outra razão que não o seu próprio conteúdo de verdade" pois desta forma "ela solapa suas próprias bases" E nesse sentido Adorno está absolutamente certo ao exigir uma ascese radical diante de qualquer religião revelada - no que aliás, ele se filia à tradição profética da tradição judáica. Os profetas eram justamente aqueles que, percebendo a prática violenta de suas sociedades e a traição do discurso religioso, que passava a justificar tal prática, levantavam-se contra isto, denunciando sociedade e religião, governantes e sacerdotes, derrubando os ídolos e exigindo a volta ao Deus Absolutamente Outro, ao Deus libertador que sempre se põe do lado da justiça. Só que esta ascese não tem de significar, necessariamente, como ele parece indicar, a negação em si da revelação. O que acontece é que ele parte de uma concepção substancialista de revelação, e por isto a rejeita em bloco, mas a revelação, como se mostra na radicalidade judáico-cristã ( e penso que também nas outras tradições religiosas, quando vamos às suas raízes) não acontece nem é entendida desta fomra. Ao contrário do que pensa Adorno a idéia de evolução histórica da revelação não só não é incompatível com a "autoridade" desta como, aliás, é uma das suas condições essenciais, como vimos anteriormente. Pois "o que permanece da fé não é uma substância imutável que ganha formas diferentes ao longo da história, é antes um sentido que é articulado de diferentes formas conforme os desafios de seu tempo". E o lugar da revelação "não é um mundo separado de idéias, de essências, de representações. É a própria existência humana enquanto expressiva, enquanto fundamentalmente significativa (...) mais do que ouvinte da Palavra, o homem é a Palavra mesma, e a revelação de Deus só se torna audível enquanto se faz palavra humana"I .


O próprio Adorno, ao exigir esta ascese radical, está fazendo a aplicação de um princípio fundamental da tradição judáica - da revelação deste povo -, o de não criar imagens de Deus, que é justamente a condição para que este mantenha seu "atributo principal", que é justamente o ser Absolutamente Outro, e ao mesmo tempo observa as novas implicações que a história impôs a este mandamento. Como ele mesmo diz, o que está propondo "é extrema fidelidade à proibição de imagens muito além daquilo que isto um dia significou" .


A revelação não se reduz à experiência religiosa. A experiência religiosa, enquanto experiência do sagrado - aquilo que fascina e atemoriza -, historicamente foi - e ainda o é - veículo privilegiado da revelação mas esta o transcende imensamente. A linguagem religiosa, com seu ritos, seus mitos, seus símbolos, consegue sondar e revelar dimensões profundas do real mas, se absolutizada, torna-se obstáculo, podendo mesmo matar a revelação, tornando-se, então, um ídolo. Adorno fala da tradição judáica e do cristianismo primitivo de Tolstói , que buscavam quase não estipular artigos de fé, para escapar dos perigos de cristalização destes, que no processo histórico podem vir a se transformar numa "cosmovisão autoritária". O cristianismo, com sua fé no amor - fé aqui entendida como "aquilo que nos toca incondicionalmente" , como o nosso valor absoluto -, é, na verdade, a radicalização desta busca. A teologia judáica, como diz Adorno, exige apenas que se viva conforme a Lei. Mas a Lei também pode se transformar em idolatria, como de fato muitas vezes se tornou, inclusive no cristianismo. Mas este, em seus princípios, superou-a pelo amor que, pela sua própria dinâmica interna, não tem formas fixas e transforma-se conforme transformam-se os contextos onde se tenta vivê-lo . Ele sempre transcende a situação dada em que acontece, pois não se reduz nunca a uma única situação, mas, ao mesmo tempo, só pode existir encarnado na história. No cristianismo, que nesse sentido retoma o Êxodo, o pobre é este outro de forma privilegiada e então, saltando da linguagem do amor como experiência humana para a linguagem religiosa, podemos dizer que Deus, o Absolutamente Outro, se revela no Outro pobre, no que é negado como outro sendo ou integrado violentamente no sistema ou simplesmente marginalizado, mas sempre silenciado.
Desta forma a revelação evita "as armadilhas da redução do real aos fatos ou às suas representações" , e o mundo, que através do esforço da razão se tornava evidente, revela-se de novo em seu mistério. Trata-se de uma negação radical não da razão mas da tentativa totalizadora desta que, querendo-se absoluta, classifica de irracional tudo o que escapa da sua lógica de dominação. Desta forma, ela, sem se superestimar nem se subestimar, pode reconhecer que o que está além dela não precisa, necessariamente ser irracional, pode ser o novo, o desconhecido, que, se pode de fato assustar, também é a única possibilidade para um crescimento real.


O que Adorno salienta como oposição à revelação, na verdade, faz parte da própria dialética desta. É, como já foi dito, o seu pólo negativo. A revelação incorporar este lado negativo mas o transcende abrindo-se para o positivo que é a busca de sua concretude histórica à partir do Outro negado.


“Perdi alguma coisa que me era essencial, que já não me é mais. Não me é necessária, assim, como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável (Paixão...)


A terceira perna é o supérfluo que parece essencial: tudo aquilo que impede o espírito de caminhar com as forças nuas do próprio ser. E a “paixão”, o contato da mulher com o inseto esmagado consumam o sacrifício de todo entulho psicológico.
A palavra neutra de Clarice Lispector articula essa experiência metafísica radical valendo-se do verbo “ser” e de construções sintáticas anômalas que obrigam o leitor a repensar as relações convencionais práticas pela sua própria linguagem:


‘Eu estava agora tão maior que não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe. (...) como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. Então adoro (Paixão, in fine).
Eu sou tua e tu és meu, e nós é um (Uma Aprendizagem)”


Por que, pergunta Gottfried Benn, entulhar de pensamentos uma personagem, quando personagens não há mais? Por que inventar pessoas, nomes, relações – logo agora, quando perderam a sua importância? Assinaturas, fitinhas de luto, fotografias, de tudo isto já tivemos demais. Modo existencial? Este seria o golpe de morte para o romance. A construção de engrenagens literárias mais ou menos complicadas perderia a sua importância em face do mergulho às raízes e fontes de nossa humanidade. Fica implícita, como o leitor está percebendo, a noção de um substrato humano essencial, alheio à complicação novelesca e muito mais importante que ela. A iluminação desse substrato seria a missão da literatura de nossos dias, missão para a qual está mais aparelhado o poema que a história narrada.


A posição tem conseqüências: sendo herói principal o substrato, fica afastada a possibilidade de uma fabulação variada; é da natureza das essências serem iguais a elas mesmas, - descritíveis, portanto, mas inenarráveis, já que não se modificam nem têm gênese. Enredo e decurso (e portanto o tempo) ficam reduzidos à função de criar uma inútil coerência entre momentos, entre os raros momentos essenciais em que o substrato transpareceria no mundo empírico. Note-se que também este mundo empírico perde a solidez e passa a um papel dúbio, o de cortina semitransparente, vedando e revelando os recintos da humanidade como tal.


Não somos partidários dessa colocação de Benn, que deveria, por sua vez, ser interpretada; uma vez aceita, porém, considerados desimportante o mundo empírico e inócua a invenção de acidentes emocionantes, serão poucos os romances que permanecem possíveis. O critério pode não selecionar qualidade, mas certamente seleciona ambição: são raros os escritores que, desprezado o circunstancial a bem de uma esfera que o preceda, tenham o que dizer. Entre estes, parece-nos, está Clarice Lispector, com seu Perto do Coração Selvagem.


Não estamos, no caso, diante de uma história com começo, meio e fim – arcabouço de fitinhas, como diria G. Benn. “Quantas vezes”, pergunta Joana, personagem que dita a perspectiva do romance, “terei que viver as mesmas coisas em situações diversas”? Trata-se da ilustração repetida e idêntica, em meio à variedade dos acontecimentos, de uma experiência de solidão; não só com relação aos outros, como em relação a si mesma: Joana observa-se, lúcida e fina, mas não se alcança. Mais que apresentar ao leitor o histórico do isolamento, Clarice Lispector micro-relata os momentos em que este mais se manifesta. O romance é, por isso mesmo, desprovido de estrutura definida (o que nada tem a ver com carência). Seus episódios não se ordenam segundo um princípio necessário; agem por acúmulo e insistência. É na diversidade exterior das experiências sucessivas que melhor reconhecemos a unidade essencial da experiência de Joana, e o conseqüente desaparecer do tempo como fonte de modificação. Mesmo a alternância dos capítulos de vida adulta e infantil – modo sistemático de suspender a ordem temporal – cessa na Segunda parte do livro. A justaposição dos episódios passa a obedecer às conveniências do contraponto, ou, noutras ocasiões, ao arbítrio da associação, forma por assim dizer imprevisível da causalidade psíquica. O tempo inexiste como possibilidade de evolução. Se de algum modo estrutura o livro, é pela vaga indicação que vai na posição dos dois capítulos extremos, passados um na infância e outro no presente. Mesmo o espaço de tempo assim marcado, entretanto, não tem função histórica.


A diferenciação temporal de presente, passado e passado-do-passado (Joana, pretérita, desfia suas memórias) tem por função manter distintas as diversas situações, para melhor ressaltar a constância da vivência fundamental; visa assegurar a independência de acontecimentos que, a rigor, não passam de recorrência. O tempo comparece para melhor se anular.
Voltando, porém, ao micro-relato que atravessa o livro: a sensibilidade da autora para os pequenos indícios e para o meandro psicológico é uma coisa espantosa. A análise desce ao nível microscópico, onde a causalidade é minúscula e minuciosa. A construção de experiências psíquicas é admirável na precisão, seguindo o fluxo da consciência. A figura de Joana é composta por estas ilhotas de luz e engenho, inteligíveis mas isoladas; as experiências coexistem incomunicáveis. Clarice Lispector, voltada para a construção detalhada, instaura um fluxo das coisas mínimas que não leva, em si só, à causalidade das unidades maiores, dependente de articulação mais ampla. Noutras palavras, a visão de lente permite examinar a tessitura de cada trama emocional particular, mas não dá totalidades. Não mostra a ligação dos fenômenos psíquicos entre si, não fornece a sua ligação ao nível organizado e configurado. Uma psicologia de associações e elementarista, anterior à gestalt. Os momentos psicológicos, construídos cada qual a partir de seus elementos mínimos, não podem se inserir num desenvolvimento de cunho histórico e não podem constituir, portanto, uma biografia. O romance respeita esta regra em sua estrutura, que é toda de contraposições estanques.


Freud, ao contrário do que acontece com tantos de seus continuadores, não sucumbe tão facilmente à tentação totalitária. Tanto quanto vejo, Freud não afirma propriamente que a psicanálise explica a arte. Ao contrário: a regra é explicar o processo de criação. Já no primeiro ensaio publicado por ele sobre Literatura, a interpretação de Gradiva, ele se propõe, modestamente, alcançar ‘uma pequena visão da natureza da produção (Produktion) poética”, e termina o escrito comparando o caminho do poeta com o do médico, mostrando suas diferenças e coincidências. No adendo a esse ensaio, redigido alguns anos mais tarde, Freud propõe como objeto da investigação a origem das “impressões e lembranças utilizadas pelo artista e o modo como ele as transfere para a poesia”. A questão se concentra, portanto, na proto-história subjetiva da arte, e mesmo aqui ele não hesita em reconhecer os limites de seu tipo de pesquisa: referindo-se à patografia, por exemplo, assevera no ensaio sobre Leonardo que ela “sequer se propõe tornar compreensível a produção (Leistung) do grande homem”.


A pergunta principal de Freud é sempre a mesma: ele quer saber de onde essa “personalidade notável”, o poeta, tira a matéria de seu trabalho e, decursivamente, como pode a obra suscitar determinadas emoções no leitor, no espectador; de onde vem o fantasiar, seja o originário, poético, seja o derivado, contemplativo. Assim, todo o sentido da Ars Poetica concentra-se no palco interior, aquém da obra, na subjetividade do artista e sua “constelação psíquica”, e também na repercussão que uma obra possa desencadear no espectador. É o Freud de 1930 que estabelece os limites: o espaço da pesquisa se constitui “entre as disposições dos instintos, as vivências e as obras de um artista”.


Considere-se também quando Gradiva indagou ao arqueólogo se este não se recordava de há dois mil anos ter compartilhado de sua refeição. Essa pergunta incompreensível logo parece adquirir sentido, se mais uma vez substituirmos o passado histórico por um passado pessoal – a infância – do qual a jovem retinha lembranças vívidas, mas que parece ter sido esquecido pelo rapaz. De repente, surge-nos a descoberta de que as fantasias do jovem arqueólogo sobre Gradiva talvez seja um eco dessas lembranças infantis esquecidas. Assim sendo, não se trata de produtos arbitrários de sua imaginação, tendo sido essas fantasias determinadas, sem que ele soubesse disso, pelo acervo de impressões infantis esquecidas, mas ainda nele atuantes. Seria possível para nós, ainda que só possamos conjeturar sobre elas, mostrar em detalhe a origem dessas fantasias. Ele imaginou, por exemplo que Gradiva deve ser de origem grega, filha de uma alta personagem, talvez de um sacerdote de Ceres. Isto se ajusta com perfeição ao seu conhecimento do nome grego da jovem, Zoe, e ao fato de ela pertencer à família de um professor de zoologia. Mas se as fantasias de Hanold são lembranças modificadas, podemos esperar encontrar, na informação fornedida por Zoe Bertgang, uma indicação da fonte dessas fantasias. Vamos ouvir o que ela tem a dizer. Já nos falou sobre a íntima amizade infantil deles, e agora irá revelar-nos o subseqüente desenvolvimento dessa relação de infância.


“Na verdade, naquela época, até a idade em que começam, não sei por que, a chamar-nos de “Bakfisch” (Peixe para Fritar. Termo de gíria alemã equivalente a “moça” ou “jovem”), habituei-me a depender muitíssimo de vossa companhia e acrediatava que nunca encontraria no mundo um amigo melhor. Eu não tinha mãe, nem irmã ou irmão, e para meu pai uma cobra-de-vidro conservada em álcool era muito mais interessante do que eu. Todos (inclusive as meninas) precisam de algo para ocupar seus pensamentos e o que quer que esteja ligado a eles. E isto é o que fostes para mim então. Mas quando vos voltastes inteiramente para a arqueologia, descobri – deveis perdoar-me, mas na verdade este tratamento formal parece-me demasiadamente ridículo e, além disso, não se ajusta ao que quero dizer -, como estava dizendo, descobri que te tinhas tornado uma pessoa insuportável, que, ao menos no que me dizia respeito, não possuía olhos para ver nem boca para falar, e nem memória para lembrar-se de nossa amizade infantil. Sem dúvida foi por isso que me achaste agora com aspecto diferente, pois, quando às vezes te encontrava em reuniões sociais – o que aconteceu ainda uma vez no último inverno -, tu não me vias e muito menos me dirigias a palavra. Não que houvesse nisto algo de pessoal, já que tratavas a todas igualmente. Para ti, eu era invisível, e tu, com teu topete de cabelos louros que tantas vezes arrepiei em nossas brincadeiras, te mostravas tão maçante, tão seco e mudo como uma cacatua empalhada e ao mesmo tempo tão pomposo como um arqueoptérix – sim, é esse mesmo o nome daquele monstruoso pássaro antediluviano há pouco descoberto. Só de uma coisa nunca suspeitei: que entretinhas uma fantasia igualmente afetada, considerando-me aqui, em Pompéia, como algo que fora escavado e que retornara à vida. Quando deparei contigo inesperadamente em minha frente, de início foi-me muito difícil compreender a incrível trama tecida por tua imaginação em teu cérebro. Depois ela me divertiu e até me deu prazer, apesar da loucura, pois, como já te disse, eu não suspeitava isso de ti”.


Assim, continua Freud, em A Gradiva, de Jensen, ela nos mostrou claramente o que os anos haviam feito de sua amizade infantil. Nela cresceu até transformar-se em amor, pois uma jovem precisa de um objeto a quem dedicar o seu coração.
Em “Dostoiévski e o Parricídio”, Freud assim o diz:


“O artista criador é o menos duvidoso; o lugar de Dostoiévski não se encontra muito atrás de Shakespeare. Os irmãos Karmazovi são o mais grandioso romance jamais escrito; quanto ao episódio do Grande Inquisidor, um dos pontos culminantes da literatura mundial, dificilmente qualquer valorização será sucificente. Diante do problema do artista criador, a análise, aí de nós, tem de depor suas armas”


(**RIO DE JANEIRO**, 23 DE ABRIL DE 2018)


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