4.0 - MEMÓRIA E CONFLITO INTERIOR - PARTE I# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



A necessária representação do objeto no conhecimento, postulada pela não-identidade física entre cognoscente e conhecido permanece como elemento subordinado à primazia do ser na gnosiologia antigo-medieval pelo menos até o século XIII. Essa primazia determina igualmente a prioridade gnosiológica do sentido existencialmente considerado, o que significa a prioridade da verdade objetiva sobre a representação subjetiva e sobre o sentido da existência que nela tem seu fundamento.


A ruptura entre a representação e o ser dar-se-á ao longo de um complexo movimento de transformação nos fundamentos da vida espiritual e intelectual do Ocidente que designamos como a transformação nominalista das coordenadas do universo mental do homem antigo-medieval.


A teoria da representação é uma teoria do conhecimento que confere novo estatuto gnosiológico à representação do objeto ou ao seu ser intencional objetivo na imanência do sujeito cognoscente. Segundo o postulado fundamental dessa teoria, a representação deixa de ser apenas o sinal formal cuja mediação estabelece uma relação de identidade intencional do ato cognoscivo com o objeto extramental, como na concepção tomásica da species expressa.


O incidente narrado por Dostoïévski em seu artigo O camponês Marei ocorreu durante o “segundo dia da Semana Santa”. Essa afirmação introduz de súbito uma questão cronológica. Teria sido na primeira Páscoa que ele passou no presídio, ou na segunda? Dostoïévski diz que tinha então 29 anos de idade, o que confirma o ano de 1850, mas há razões para desconfiar da exatidão dessa versão: é que ele atribui a esse fato uma transformação em suas atitudes com os presos camponeses, a qual, a julgar pelo relato contido em Recordações da casa dos mortos, não poderia ter acontecido tão rapidamente.


Na primeira carta para Mikhail depois de sair da prisão, escrita passada só uma semana, Dostoievski não menciona esta miraculosa conversão que, como declarou em 1873 no Jornal de um escritor, foi devida ao “contato directo com os camponeses [na prisão], a uma intimidade fraternal com eles na nossa desgraça comum, à certeza de que me tornara como eles, de que era como eles – em verdade, de que era como os piores de entre eles”. Essas impressões diretas de sua vida na prisão são absolutamente sinceras e verdadeiras. “Como poderei exprimir-te fielmente – começa Dostoievski – o que senti e a que conclusões cheguei durante este período”.


Para dar a Mikhail uma idéia das suas sensações após sair da prisão, Dostoievski começa a narrativa desde o dia da partida para a Sibéria:


O nosso itinerário era por Yaroslav e, portanto, após três ou quatro estações de postilhão, parámos ao anoitecer numa estalagem em Shüsselburgo. Atirámo-nos ao pequeno almoço como se não comêssemos há uma semana. [...] Eu estava animado, Durov fala pelos cotovelos e Yastrejembsky previa o futuro negro como breu [...]. O mensageiro imperial era um bom velhote. Tinha muita experiência do Mundo e viajara por toda a Europa com mensagens do governo. Chamava-se Kuzma Prokofieff. Tratou logo de nos arranjar trenós cobertos, o que óptimo, pois a neve era horrível. No dia seguinte, por ser dia de Natal, os cocheiros envergaram casacões cinzentos à camponês, de tecido alemão, e puseram cintos vermelhos. Não havia vivalma nas aldeias por que passámos. Estava um dia de Inverno fascinante. Percorremos assim os caminhos desertos, atrás de Novgorod, Yaroslav, etc. Passámos também por pequenas cidades muito distantes entre si, cidades isoladas e sem importância. Mas como aquela viagem era pelas festas do natal, havia sempre qualquer coisa para comer em todo o lado. Íamos entregelados. Estávamos bem enroupados, mas, após dez horas consecutivas de viagem no trenó coberto e cinco ou seis paragens, o frio tornou-se insuportável. Sinto-me também gelado até aos ossos, mas o curioso é que a viagem restabeleceu-me a saúde. Certa noite, na província de Perm, sofremos um frio de quarenta graus negativos [...].
A passagem dos Urais – prossegue Dostoievski – foi muito penosa. Os cavalos e os trenós enterravam-se na neve. Levantou-se uma tempestade. Era de noite; tivemos de sair dos trenós e esperar até que se conseguisse arranca-los da neve. À nossa volta, neve, neve a cair e o vento a uivar. Ali estávamos, no extremo entre a Europa e a Ásia; diante de nós a Sibéria, e o mistério do futuro; atrás, todo o meu passado – era muito doloroso, e as lágrimas brotavam-me dos olhos. Ao longo da estrada, aldeias em peso vinham ver-nos, mas, nem sequer tendo piedade por irmos assim agrilhoados, oprimiam-nos com vexames e sarcasmo. Prokofieff decidiu tomar a seu cargo metade das nossas despesas nas estações de postilhão, forçando-nos a aceitar; por isso, cada um de nós só gastou quinze rublos em prata durante toda a viagem. A 11 de Janeiro, chegámos a Tobolsk e depois de sermos levados às autoridades locais e revistados, Durov, Yastrejembsky e eu fomos fechados juntos numa cela. Na revista tiraram-nos todo o dinheiro. Spechnyov e os outros que tinham chegado antes de nós foram postos noutra cela e quase nunca mais nos vimos. Passámos seis dias em Tobolsk; aí nos consolou o afecto dos antigos degredados (quer dizer não deles, mas das mulheres deles), que cuidaram de nós carinhosamente. Que gente maravilhosa, gente torturada por vinte e cinco anos de sofrimento e abnegação! Falámos-lhe só por instantes, pois os guardas vigiavam-nos constantemente. Mas ainda conseguiram comida e roupa que nos aquecesse [...]. Por fim, deixamos Tobolsk e três dias depois chegámos a Omsk.
Em Tobolsk já pressentira às ordens de que espécie de gente iríamos viver. O comandante da fortaleza era muito decente, mas o major Krivtov, governador do presídio de Omsk, era uma autêntica besta, um selvagem, fanfarrão e bêbedo. [...] Certa noite, numa das revistas que passava às casernas, mandou chicotear vários prisioneiros por não dormirem na posição correcta, por fazerem barulho a dormir e por tudo o resto que se metia na cabeça daquele bêbedo. E era este homem que escrevia relatórios sobre a nossa conduta e os mandavam mensalmente ás autoridades de Petersburgo. Quanto aos condenados, eu já contactara com alguns em Tobolsk, mas aqui em Omsk tinha de viver com eles durante quatro anos. São gente brutal, exacerbada, maldosa. Odeiam as pessoas de ascendência nobre e, por isso, ao receber-nos, não esconderam o seu gozo cruel pela nossa infelicidade. Ter-nos-iam devorado vivos se pudessem. [...] Eram para nós cento e cinqüenta inimigos sempre a perseguir-nos com o maior prazer. Ficaram assim entretidos, tinham assim uma diversão, e a única maneira que nos restava para evitar sarilhos graves eram mostramo-nos indiferentes e moralmente superiores, o que eles não podiam deixar de reconhecer e respeitar. Tinham sempre a consciência da nossa superioridade. Não faziam a menor idéia da natureza do nosso crime. Nós nunca falávamos disso: eis a razão por que não nos entendíamos [...].
Também na Sibéria, durante os quatro anos que ali passei, conheci gente decente entre salteadores da pior espécie. Acreditem-me, há caracteres honrados e bons entre esses homens, e eu senti-me feliz por poder descobrir ouro sob uma aparência grosseira. [...] Ensinei a ler um jovem circassiano [condenado por assalto] e ele mostrou-se muito grato. Outro recluso chorou ao despedir-se de mim. Costumava dar-lhe algum dinheiro e a gratidão que ele me manifestava por isso era quase opressiva. O meu carácter, no entanto (lamento dizê-lo), tornou-se ainda mais inferior: era caprichoso, impaciente com eles, que respeitavam as minhas maneiras de proceder e as suportavam sem protesto.
A escravidão penal é muito mais violenta, muitíssimo mais odiosa sob as leis militares que sob as leis civis. Durante esses quatro anos, vivi sempre asfixiado entre as paredes da prisão e só saía para os trabalhos forçados. O trabalho não era sempre muito difícil, mas, normalmente, obrigavam-se a trabalhar até á exaustão total, e também com tempo mau, na lama e com um frio insuportável. Certa vez, tive de trabalhar durante quatro horas sob um frio de quarenta graus negativos, tendo gelado o mercúrio no termômetro. Fiquei com uma das pernas paralizada pelo frio. Vivíamos em bando, uns sobre os outros. Imaginem um velho barracão de madeira em ruínas. No Verão asfixiávamos com falta de ar e no Inverno o frio dilacerava-nos a carne. O soalho era todo esburacado e cheio de imundícies; escorregávamos e caíamos a cada passo. O gelo cobria totalmente as vidraças, de forma que mal se podia ler durante o dia. A água gelada pingava constantemente do telhado, e havia correntes de ar glaciais em todo o lado. Estávamos comprimidos uns contra os outros como arenques numa barrica. Mesmo quando acendiam o fogão com achas de lenha seca, mal amornávamos (o gelo a derretia a muito custo), e ficávamos como que envenenados pela fumarada. Era assim que vivíamos todo o Inverno. Os forçados lavavam também ali as roupas, de modo que tudo ficava inundado de água. Não havia outro sítio para onde ir. Desde o cair da noite até de manhã, era impossível sair para satisfazermos as nossas necessidades, pois as casernas ficavam fechadas à chave. Punham no corredor uma pequena celha para esse fim, e a atmosfera tornava-se absolutamente intolerável. Todos os forçados tresandavam como suínos. Diziam eles que, se eram ser vivos, como não havia de fazer porcaria? Serviam-nos de leito tarimbas sem enxerga. Cobriam-nos com peles de carneiro muito curtas, que me deixavam as pernas a descoberto. Tiritava de frio toda a noite. Havia milhões de percevejos, piolhos e carochas [...]. Davam-nos a comer pão seco e sopa de couve, onde boiavam uns restos de carne. Em dias festivos, davam-nos papa de aveia, mas muito ordinária e pouco alimentícia. Na Quaresma, tínhamos couve cozida e pouco mais. Sofria horrorosamente com indigestões e adoeci várias vezes. Era impossível viver sem dinheiro. De facto, sem dinheiro teria morrido, pois nenhum condenado podia sobreviver a esse regime de alimentação. Com dinheiro consegui arranjar chá e às vezes um bocado de carne cozida. Foi o que me salvou. E seria impossível não fumar, pois que sufocaríamos de tédio. Tudo isso se conseguia só às escondidas.
Várias vezes tive de ir doente para o hospital. As minhas convulsões nervosas acabaram por tornar-se em ataques epilépticos, embora raros. Ainda sofro de reumatismo nas pernas, mas no conjunto pode-se dizer que estou bem [...]. O que aconteceu ao meu espírito, às minhas crenças e ao meu coração nestes quatro anos, não te contarei agora. É uma longa história. Mas essa introspecção que utilizei como refúgio da amarga realidade, deu os seus frutos. Há agora em mim, muitas ansiedades e esperanças que nunca sentira. Só te peço uma coisa: não me esqueças, ajuda-me, por piedade. Preciso de livros e de dinheiro. Manda-me o Alcorão, a Critique de la Raison Pure de Kant e Hegel, sobretudo a História da Filosofia. Todo o meu futuro depende desses livros.
Antes de partir para Sebastopol – termina Dostoievski – Filipov deu-me 25 rublos. Coitado, pensou que eu não tinha dinheiro nenhum. Todos os nossos exilados tentam viver o melhor possível [...] Spechnyov está a viver na província de Irkutst, onde se tornou muito popular [...]. Que pessoa maravilhosa.
Esteja onde estiver, as pessoas mais reservadas logo lhe manifestam respeito e veneração. O desgraçado Grigoryev [um dos três homens atados aos postes na praça-de-armas Semyonovsky] enlouqueceu e está agora no hospital.


(**RIO DE JANEIRO**, 19 DE ABRIL DE 2018)


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