2.0 - BARIONA OU LE JEU DE LA DOULER ET DE L´ESPOIR¨ - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE




II PARTE...


Um Bariona, enfim, que, não crendo no Messias, não querendo, por um só segundo, aceitar a idéia de um Messias individualizado, encarnado, pessoal, tem uma só recomendação para os moradores de seu vilarejo: “Contemplem a desgraça de frente, pois a dignidade do homem está em seu desespero”. Lembra o “olhar de frente o horror” do primeiro Soljenitsin; parece, sobretudo, mais do que nunca, os “teoremas antitotalitários” que o Stalag e, no Stalag, a descoberta do teatro, em princípio, ocasionaram.


Quarto Movimento. Onde, pela primeira vez, a sombra de uma dúvida penetra na narrativa, até então perfeitamente ortodoxa. Estamos no quadro 5 da cena 2. Lelius e Bariona estão a sós, frente a frente, no vilarejo deserto, tendo os moradores todos ido a Belém, saudar a criança divina.


Reproduzo aqui o diálogo:


“Chefe”, diz um;
“Senhor Super-residente”, acode o outro...
“Estou feliz em vê-lo, chefe”, diz o romano ao judeu; o prazer é meu, responde o judeu ao romano...
“Você vai rir”, retoma este. E a didascália diz, de fato, “Bariona ri...”;
“Tudo isto”, pergunta ele, “o que pensa de tudo isto?”;
Bariona: “ia fazer-lhe a mesma pergunta...” .


São duas almas aflitas, errando em um vilarejo deserto e, nessa ocasião, travando, enfim, conhecimento. Parece haver uma conivência surda, não formulada, mas que transpiraria por entre as palavras e começaria a varrer os mal-entendidos antigos. Bariona cúmplice de Lelius? Entre o chefe judeu e a autoridade romana, uma espécie de união sagrada, frente ao acesso de loucura e fé dos moradores, que partiram todos para a manjedoura?


Fica a incômoda impressão de um Sartre que, devagar, mudasse de rumo, talvez de doutrina, e pendesse para o lado do pensamento dos pastores. Bariona era seu porta-voz. O pessimismo histórico, a metafísica desesperada de Bariona pareciam expressão do seu pensamento profundo. Tudo oscila; essa metafísica é enviada para o campo do Ocupante. O pessimismo histórico, como pensamento de ordem? A visão nauseada da “espécie fracassada”, da vida como “derrota”, do mundo vivido como uma “queda interminável e mole” era menos radical do que se pensava.


Quinto Movimento. É o “feiticeiro” que fala, dessa vez. É um velhíssimo curandeiro, cujas velhíssimas pernas o impedem de andar e que, diante de Lelius e Bariona, ainda só no vilarejo, põe-se a predizer o que será do divino rebento, assim como da seita estranha que está nascendo em torno de seu berço. Ele vai crescer, profetiza. Empobrecer. Transformará água em vinho. Ressuscitará um certo Lázaro. Fará alguns outros milagres pequenos. Será preso, por fim, chicoteado, crucificado, ressuscitado.


Sexto Movimento. O pensamento-Bariona, isto é, do primeiro Sartre, reafirmado uma última vez, em toda sua força e violência. E o pensamento dos pastores, isto é, o otimismo histórico e o humanismo, simetricamente desacreditado .
Afastado ainda da multidão que acaba, afinal, de chegar, com o rosto escondido em uma aba do seu casaco, em meio aos cantos de Natal e Hosanas lamentáveis, um último monólogo, ao fim do qual, em duas frases, se diz tudo:


[...] será culpa minha, Senhor, se fui criado como uma besta noturna e se foi marcado em minha carne esse terrível segredo: jamais haverá amanhã?” – depois: “será culpa minha saber que esse Messias de vocês é um pobre coitado que vai morrer na cruz, que Jerusalém é e será, para sempre, prisioneira? .


Poderia ser a sua moral. Pois era a recusa das escatologias e de todas as soluções finais, era essa convicção de uma prisão eterna e, como reza o Deuteronômio, de uma “pobreza” que nunca desaparecerá da superfície da terra, que era o credo de Sartre antes da conversão e que parece continuar a ser o do autor de Bariona.


Sétimo e último movimento. Bariona, finalmente, cede. Está ali, pronto para o ataque, na porta do estábulo, onde se encontra a manjedoura. Não vê a criança. Nem, na verdade, a mãe, de quem distingue apenas a silhueta. Mas, em compensação, vê o homem de pé, como ele, na noite. E pelo olhar doce que dirige a seu filho, imagina o horror inominável que invadirá seus dois olhos “claros como ausências”, se puser em prática o projeto assassino.


Ele cede e desiste de matar. Chega, então, Baltazar, um dos reis magos, que, devoto, nada sabendo do drama interior que acaba de se desenrolar, começa a expor a Bariona os méritos da verdadeira fé, encarnada no pequeno corpo: que nasceu, criança, para todas as crianças do mundo... que a infância de agora em diante, será sagrada e que, em cada criança que nascer, reviverá o Cristo... e haverá alegria para todos... o homem não mais será forçosamente o ser excedente apontado pelas metafísicas negras... o mal nada é em si... é o que queremos que seja... enfim, o pessimismo foi vencido e sempre haverá, no mundo, um ponto/porto qualquer de onde o mal aparece sob cores risonhas...


Bariona, ao invés de agredi-lo ou de fazê-lo calar-se, ao invés de tornar a dizer-lhe que acredita que não haverá amanhã, que nunca houve e que Jerusalém permanecerá cativa, ouve-o e se derrete em emoção.


Quando se aproximam os aldeões e descobrem, nesse meio tempo, que as legiões romanas marcham sobre Belém e cercam-na, exclamam: “tinhas razão, Bariona! Essa criança é maldita! nosso povo é maldito! deveríamos tê-lo ouvido e nunca ter vindo à cidade!”. Ele retoma a palavra e, suavemente, com a voz modificada, fustigada, para estupefação geral, os homens de pouca fé que começaram por traí-lo pelo Messias e que, agora, ao primeiro vento contrário, traem o Messias.


Continuo chefe de vocês? Sim! Cumprirão minhas ordens cegamente? Sim, sim. Ouçam, então, o que ordeno. Esperaremos os romanos. Nossos corpos servirão de muralhas. Morreremos, sim, mas na alegria, em Deus, e para salvar o Messias .


O chefe sombrio e doloroso, o Roquentin da Judéia, que punha toda sua salvação na recusa do mundo, na revolta nua, tornou-se o bardo da nova religião.


O texto não apresenta qualquer ambigüidade política. Não há lugar para o menor sinal de indulgência, ou de comprometimento, com os nazistas. Em ambas as suas vertentes, pelo convite à greve dos ventres, bem como pela chamada final à batalha, só podia soar, no clima da época e do campo, como um convite à coragem e, talvez, à resistência.


Sartre, em 1940, não passa simplesmente para o lado do humanismo e do amor pela comunidade. Não se contenta em se reconciliar, em não sei que impulso de remorso ou de simpatia, com o seu pobre “Autodidata”. Ele se torna, no mesmo movimento, otimista, historicista, messiânico, resumindo, progressista.


Quem sabe nos falte uma pesquisa psicológica que nos ensine o que se passou com Sartre, mais atrás, nos bastidores de sua consciência, para que, no Stalag, e na peça representada no Stalag, tomasse partido pelo rei Baltazar, reabilitasse o Autodidata e se perfilasse junto aos partidários do otimismo, do humanismo e, primeiramente, do culto á comunidade, de que tinha, em A náusea, zombado tanto.


O que de fato aconteceu? Que tara obscura ele percebeu em si, no Stalag, e que teria sido curada pela imersão no coletivo? Adivinhou no coletivo, uma não menos obscura virtude, que o curaria de um mal secreto? De onde vem, em suas narrativas da saída do Stalag, a impressão que deixa de ser um emparedado que se liberta, um asfixiado que retoma o fôlego? Esbarra-se aí, mais do que nunca, no inescrutável mistério dos seres. E o pesquisador, o ensaista ficam limitados às hipóteses, às conjeturas. O mais plausível permanece sendo a mistura de juvenismo, de pietismo, de culto ao real, de culpa obscura, de desejo de pureza, de expiação sem crime, de entusiasmo, que foi a verdadeira mistura explosiva do século XX, e que Sartre levou provavelmente a seu grau extremo de concentração.


(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE ABRIL DE 2018)





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