#DETERMINAÇÃO ESSENCIAL DO SER – ESBOÇO DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



Post-Scriptum: Este ensaio fora escrito em 2008. Estava por lançar o meu RAZÃO INVERSA - SUPLEMENTO-CADERNO LITERÁRIO-FILOSÓFICO no Tablóide E Agora?, Curvelo, Minas Gerais, patrocinado por amigos e empresários. Teria eu uma folha inteira para o Razão Inversa. Seria este ensaio o Editorial. E, conversando com o meu querido amigo João Comunitário, Secretário de Cultura de Curvelo na época. Conversando com ele, disse-me que escrevesse sobre a Linguagem, já que a minha Linguagem não é de fácil entendimento. Escrevi este ensaio. O diretor-chefe do tablóide Geraldo Magela de Abreu se negou peremptoriamente a publicá-lo, dizendo estar incompreensível - a Folha do tablóide era patrocinada, pertencia-me. Não iria discutir com o editor-chefe, consenti, só publiquei três edições neste tablóide, tornei-o Caderno encadernado em Copiadora, e este artigo foi publicado no Caderno 03.
O que é isto – a Linguagem? Eis o questionamento que se deve fazer em se tratando de respondê-lo à luz do pensamento heideggeriano, isto é, a partir de uma leitura hermenêutica da experiência.


Se con-templamos a linguagem à luz de sua genealogia, segundo Heidegger ela é um modo de ser, uma estrutura da ek-sistência. Não é, contudo, um existencial entre outros, ao lado da situação e da compreensão: é, antes, o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo.


A situação é, em si mesma, muda, se a compreensão não permitir ao homem a distanciação necessária em relação ao existente. Ora, este jogo da compreensão e da situação torna-se possível pelo discurso (Rede): “O discurso é a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no seu sentimento de situação”. Este termo, para Heidegger, não designa a palavra explícita, mas o discurso silencioso do mundo inaugurado pela presença do homem. A ek-sistência é esta capacidade fundamental que o homem tem de dialogar com o mundo e com os outros: “O silêncio como modo do discurso articula tão originalmente a compreensibilidade do ser-aí, que vem fundar o saber-ouvir autêntico e o ser-em-comum lúcido”.


Em tudo que se diz, quando se fala, se escreve ou se cala, sempre se diz a partir do silêncio. É a segunda experiência. Trata-se de uma experiência tão rica e originária que dela vivem e se criam os poetas, pensadores, os homens. É ao silêncio que os homens, poetas, pensadores dão passagem em tudo que dizem quando falam e/ou se calam em cada desempenho. Com isto nós nos descobrimos onde já sempre estamos – no silêncio da fala.


O homem não é um animal que possui a razão, mas um ser que é possuído pela linguagem. É no discurso que se enraíza a presença do “Dasein” no mundo. Pela linguagem, este desperta para o seu ser e vigia o ser das coisas.


Como se efetua a passagem do discurso à palavra explícita? Heidegger distingue duas etapas: a explicitação e a enunciação. A explicitação é uma estrutura de antecipação da ek-sistência que se apóia no horizonte do discurso. Ela é a visão antepredicativa da totalidade que condiciona a revelação de todo o sendo particular. O discurso fornece o sentido à explicitação. A partir do sentido, a explicitação deduz o “enquanto”, isto é, a significação do sendo concreto. Graças a ela, o discurso torna-se indicativo.


A linguagem opera o desvelamento das significações concretas do mundo. Não há dois planos: o do percebido e do conhecido e o do falado e do expresso. A palavra não introduz um sentido num conteúdo. É, pelo contrário, o conteúdo que se revela significante na linguagem. Forçoso é, pois, destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objetos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras: são, antes, os objetos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.
Falar a partir da Linguagem da poesia não é indicar outra linguagem dentro ou fora da estrutura da língua e discurso. Assim operando, já de-finimos a Linguagem como objeto dentro ou fora de outro objeto, já de-finimos o dentro e o fora juntamente com sua indicação, como uma função de um objeto para com outro objeto. De-finir como objeto ou de-finir como função entre objetos, é a objetivação própria da representação.


O sentido do discurso nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se investido de significações utilitárias e poéticas. Daqui que a linguagem seja uma leitura hermenêutica da experiência. O homem compreende sempre o mundo no interior de um projeto interpretativo cuja linguagem é a única justificação. Sem dúvida, o sendo bruto existe fora do gesto falado. Mas o mundo, este horizonte inteligível que abre acesso ao sendo, só existe na interpretação efetuada pela linguagem. Assim, somos obrigados a corrigir a célebre fórmula de Schopenhauer: “O mundo é a minha representação”, e dizer “O mundo é a minha interpretação”.


A linguagem poética só revela o seu conteúdo no pronunciar nativo, e não na transmissão segundo sinais abstratos. A palavra poética dá a essência profunda da coisa. Uma coisa só e ela própria, se não se degradou, ao nível da objetividade neutra, para um entendimento qualquer e universal, e se permaneceu assunto que uma existência em comum debate.
A fala poética é, em si mesma, no seu simples enunciar, um diálogo. Nela, o ser dialoga consigo próprio. É por isso que “a filosofia deve encetar um diálogo com a poesia” - eis o nosso pensamento, nossa idéia, nossa postura, e nossa posição em relação à filosofia, à poesia, à literatura, o que buscamos sempre fundamentar neste fazer suplementar de Razão In-versa -, se pretende vir aquém da errância metafísica. Não um diálogo entre dois interlocutores já existentes, mas um diálogo que faz surgir no interior duma palavra única o dualismo de dois interlocutores: meditar, é de fato pensar consigo próprio e falar-se a si, é constituir-se em campo de forças que corre o risco, em cada momento, de recair e de se solidificar em dois pólos, em dois interlocutores que não mais conseguem entender-se a si próprios.


É graças ao diálogo que aqueles que falam devem poder transformar-se para entrarem em lugar da permanência e transportarem-se para este lugar de onde provém cada uma das suas palavras. Esta forma de entrar em... é a alma do diálogo. Ela conduz aqueles que falam ao que está para além das palavras.


Quer-nos parecer que a filosofia de Heidegger se orienta, então, resolutamente, no sentido duma meditação sobre a linguagem; não sobre a faculdade da linguagem em geral, como característica existencial da existência em geral, mas no sentido da forma meditativa imediata da linguagem que é uma língua determinada. A língua, como forma determinada da expressão dum povo, determina a modalidade de abordagem da verdade do ser que é o sagrado.


O poeta é divino: na sua palavra, uma língua nasce para a sua própria possibilidade de dizer a verdade do ser; na sua palavra, o pensamento pensante manifesta-se como investigação do impronunciado da verdade do ser. Este impronunciado guia o pensador que ascende da significação vulgar e degradada das palavras até às palavras privilegiadas pelas quais uma língua determina a sua experiência da verdade do ser. A este respeito, o pensamento de Heidegger é único no gênero, pelo menos na nossa época.


Rompendo com as concepções que vêem na linguagem uma composição sistemática de sinais elementares que, em si mesmos, não encerram qualquer sentido e só adquirem poder significante nas suas relações, Heidegger considera que as palavras privilegiadas duma determinada língua irradiam, sob a forma de multiplicidade de relações que lhes são imanentes, a fulguração da diferença ontológica.


A análise existencial não é senão um estudo do homem no universo do discurso. O “Dasein” determina o modo como o próprio homem se interpreta enquanto ser que fala. Esta interpretação não é, de modo algum, arbitrária uma vez que ela descobre a estrutura da ek-sistência e o próprio ser das coisas. A antropologia lê o discurso do homem, isto é, se tomarmos este genitivo no seu duplo sentido, objetivo e subjetivo, o discurso do homem sobre o homem.


A referência ao universo nas línguas é originária porque conduzida pela verdade manifestativa e sustentada pela liberdade não negativa da realidade em silêncio. Só a língua dá a palavra e, com a palavra, a oportunidade de silêncio ás próprias coisas, ao real em si mesmo, em sua taumaturgia de ser e não ser. Na oportunidade, em que o discurso fala e, ao falar, se cala, acontece a subordinação do homem à realidade, tanto nas realizações que ele mesmo tem, mas não é. É este serviço silencioso da realidade que proporciona às línguas o fundamento de possibilidade para uma liderança ontológica, embora limitada, no conjunto da existência história dos homens.
Para se compreender a referência especial ao universo que as línguas sustentam, e a conduta explosiva dos homens que elas lideram, é indispensável uma experiência do silêncio, que conduz e subtende a possibilidade de todo e qualquer discurso. O discurso cumpre a liderança ontológica da linguagem. É onde acontece a explosão da existência: um determinado modo de viver irrompe na totalidade do real e, nesta irrupção e por ela, a realidade emerge no vigor de seu silêncio em todas as realizações.


O ser-no-mundo, desvelado pela linguagem, não é o em-si compacto e opaco de Jean-Paul Sartre, mas um dom e um acontecimento. Falar equivale a fazer surgir o Ser do real. A liberdade que condiciona o deixar-ser do mundo não seria a fonte oculta da linguagem? Parece que é ela que leva o discurso do mundo à linguagem do Ser. Graças à liberdade, o homem é confiado à indeterminação do Ser e pode, à sua luz, dar-se, no mundo, as determinações que quer. Heidegger vê na liberdade o lugar último de todo o porquê: “Porque é que há sendo em vez de nada?”. Certamente, esta linguagem testemunha a liberdade que temos de negar o mundo e de pôr o nada sob os nossos pés. Mas devemos ir mais longe e perguntarmo-nos sobre o que nos torna possível esta contínua transformação do mundo da existência num mundo de palavras. A negação que a palavra introduz na linguagem é, segundo Heidegger, a experiência de Nadificar do Ser. Poder-se-ia objetar que se trata de um puro jogo verbal, mas, então, seria necessário negar que a linguagem revela o sendo e afirmar que ela se limita a aprojetar um sentido arbitrário sobre a realidade percebida ou conhecida. A capacidade que a linguagem tem de animar um outro mundo que não o mundo imediato não é o sinal de que o não-ser é uma possibilidade interior ao Ser? É para o Ser que nos remete a questão posta, mas para o Ser concebido, como o Nada que triunfa na negação do sendo.
Pela linguagem entramos imediatamente em relação com o ser que nos constitui como lugar da sua manifestação, mas apenas se a palavra é ela própria pronunciada segundo o seu lugar de origem, revelando deste modo, nele, a dialética circular do ser e do ente. Afinal, parece ser possível uma certa ontologia, própria de Heidegger: a linguagem é a manifestação instantânea da diferença ontológica, é o meio-termo a partir do qual a decaída se explica. A linguagem não é um conjunto de sinais abstratos e convencionais (ou indiferentes) que designaria o ente já colocado na sua essência objetiva perante o pensamento dos existentes; é o que “torna a coisa presente perante nós na sua presença, a faz aparecer e permanecer desdobrada”.


A linguagem é o lugar onde habita o pensamento. Este não é nem logicamente nem cronologicamente, anterior à linguagem. É o acontecimento da palavra que suscita o do pensamento, isto é, a filosofia. Pensar significa corresponder à palavra do Ser. Heidegger recusa a identificação hegeliana entre a linguagem e o espírito humano. Com efeito, o discurso histórico que, segundo Hegel, é a expressão do absoluto da consciência, só é concebível em referência ao discurso histórico (historial) do Ser. A idéia de uma linguagem transparente ao espírito é uma ilusão da representação. A palavra verdadeira é a articulação conjugada do discurso interior ao Ser com a linguagem humana que traduz este, traindo-o. Ela é um instrumento de divisão, porque jamais o discurso histórico recobrirá o discurso “historial”.


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)


Comentários