#ALBERTO CAEIRO, MESTRE ZEN E OS HAICAIS# - Manoel Ferreira Neto: Ensaio



Embora milhares de páginas hajam sido escritas sobre o Zen, não só de filosofia discursiva, mas sabedoria existencial vivida com práxis. O Zen é um modo de viver o corpo que liberta a mente e não, como nas filosofias ocidentais, uma mentalização que visa a dirigir a existência e, por efeito dessa dissociação de base, cerceia a vida concreta do corpo e a plena eclosão da mente. O que o Zen nega é com efeito a dissociação mente-corpo, intelecto-sentidos.


A práxis do Zen não se baseia em crenças, crendices, pressupostos, razões. Seu primeiro preceito é físico, refere-se a uma postura corporal, o sentar-se (zazen). Praticar essa postura sentada é o primeiro passo à sabedoria Zen. Uma impossibilidade bem sintomática de nossas línguas ocidentais obriga-nos a falar em “meditação Zen”. Ora, essa “meditação” não é a especulação intelectual, o exame da consciência, nem um êxtase místico, mas exercício de limpeza da mente, de receptividade e fluência. Através da práxis Zen, deseja-se e busca-se libertar os objetos da sobrecarga intelectual que lhes impomos pela razão, aliviar dessa carga o corpo e o próprio eu - pensante, de modo a desfazer a cisão sujeito-objeto, as próprias formulações dicotômicas como essa que acabo de expor, tornam-se impróprias.


O objetivo do Zen é educar nossa “mente cotidiana”, isto é, levar-nos a praticar a arte da naturalidade existencial.
A experiência Zen, como a do mestre Alberto Caeiro, um dos heterônomos de Fernando Pessoa, não exige circunstâncias especiais: trata-se de um modo de viver o real cotidiano sem complicá-lo com idéias; simplicidade que, na verdade, exige intensa aprendizagem. Veja-se este koan Zen: “Certa vez perguntaram ao Mestre Joshú: - Onde está o caminho? Joshú respondeu: - O caminho passa fora da cerca. – Não estou-me referindo a esse caminho. – Então de que caminho se trata? – Estou falando do chamado Grande Caminho! – O Grande Caminho vai à Capital”. Outro koan: Um monge veio ter com Joshú e disse: - Vim pedir que me ensineis o Zen. – Já tomaste a refeição matinal? – Já – respondeu o monge. – Então vai lavar as tigelas”.


Os ensinamentos de Caeiro, como os do mestre Zen, consistem em trazer o homem (em trazer-se) de volta ao cotidiano mais elementar: um outeiro, uma janela, uma “cadeira predileta”, “a chuva quando a chuva é precisa”, o vento, a tempestade às vezes, as árvores que dão fruto na sua hora, o rio que corre sempre igual, as estações que se revezam. A vida de Caieiro, como escreveu Ricardo Reis, “não pode narrar-se pois não há nela de que narrar”


Releia-se, agora, um poema de Caeiro:


Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem-me o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
(...)
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.


Não é esse poema uma lição de “mente cotidiana”? A arte do mestre Caeiro é a “arte da naturalidade existencial”. Tanto no Zen como em Caeiro, trata-se de uma naturalidade buscada e cultivada. A “simplicidade” de Caeiro, como a dos mestres Zen, não é a das crianças ou dos pobres de espírito, mas o resultado de um processo que passa por três etapas: 1) os rios são rios e as montanhas são montanhas (indissociação pré-racional de sujeito e objeto); 2) os rios não são rios e as montanhas não são montanhas (dissociação intelectual); 3) os rios são rios e as montanhas são montanhas (reconquista da unidade).


“Sem pensar em nada”, diz Caeiro. O zen busca exatamente esse não - pensar que corresponde a pensar com “a cabeça de trás” ou “Inconsciente cósmico”, segundo Suzuki. Para o zen, a razão só nos logra e, se a privilegiamos, erramos fatalmente. O racionalismo é uma doença da qual precisamos curar-nos pelo esvaziamento, pelo “desaprender”. Os paradoxos dos koans (alguns são de um absoluto non-sense) buscam levar o discípulo para fora da lógica racional: “O Zen não é, afinal, nenhum jogo intelectual ou dialético. Trata de alguma coisa que vai além do caráter lógico das coisas, onde sabe existir ´a verdade que nos liberta´”


O diálogo de Caeiro com o engenheiro Álvaro de Campos, narrado por este último, tem as características de um koan, por seu caráter anticonceptual: “ ´Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior...´ ´Mas isso são só números´, protestou o meu mestre Caeiro. E depois acrescentou, olhando-me com um formidável infância; ´O que é o 34 na Realidade?´ “ .
Nossa maneira de pensar os objetos anula-os: “Logo que começas a pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas vê-la imediatamente, sem raciocinar, sem hesitar”, diz o mestre num koan . Creio que podemos passar a palavra ao Mestre Caeiro: “Não basta abrir a janela / Para ver as árvores e as flores. / é preciso também não ter filosofia nenhuma. / Com filosofia não há árvores: há idéias apenas” ; “Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não pense nele / Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo” ; Há metafísica bastante em não pensar em nada”
Ver, e apenas ver, dá um conhecimento maior do objeto do que pensar: “O espelho reflete certo; não erra porque não pensa. / Pensar é essencialmente errar. / Errar é essencialmente estar cego e surdo” Esse conhecimento sem pensamento é chamado, por alguns mestres Zen, exatamente de “o grande e perfeito conhecimento de espelho (adarsanajnana)” Como explica Suzuki Ensaio sobre o Budismo Zen: “Assim como dois espelhos sem mancha se refletem um ao outro, assim o fato concreto e nosso espírito devem estar um em face do outro, sem que nenhum agente exterior intervenha entre eles. Uma vez realizada essa condição, somos capazes de captar o fato na pulsação mesmo da vida” (Ensaio sobre o Budismo, p. 24).
Daí a desconfiança na linguagem, mediação por excelência. Um dos primeiros preceitos do Zen, que constitui também uma das “Quatro máxima” do budismo Nichiren, é o seguinte: “Nenhuma dependência com relação às palavras e às letras” (Ensaio sobre o Budismo, p. 19). Isso não significa uma recusa total da linguagem, mas um uso desconfiado e taticamente subversivo do verbal. O Zen não se transmite por discursos lógico-expositivos, mas pelas narrativas breves dos koans e pela npoesia, um tipo de linguagem onde as palavras se despojam da sobrecarga racionalista, para dizer as coisas de modo mais imediato e direto. Como os Zen-budistas, Caeiro procura um novo uso da linguagem: “Procuro dizer o que sinto / Sem pensar em que o sinto. / Procuro encostar as palavras à idéia / e não precisar dum corredor / Don pensamento para as palavras”
Para chegar ao conhecimento direto das coisas pela mente-corpo, é necessário todo um trabalho de desaprender. Assim, o ensinamento de um mestre Zen, como o do Mestre Caeiro, consiste mais num esvaziamento do discípulo (na limpeza de seus pressupostos racionalistas, de seus hábitos abstratizantes, de suas desnecessárias e atravancadoras complicais mentais) do que num acréscimo de conhecimentos, tal como se concebe o ensino ocidental.


Caeiro conhecia muito bem esse caminho e suas dificuldades:


O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!
Isso exige um estudo profundo,
Uma aparendizagem de desaprender.


“Um animal humano”: nem o Zen, nem Caeiro, ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial, pretendem que o homem deva ser só sentidos, só instintos. O próprio do animal humano é ter essa mente-corpo capaz de um conhecimento que é ao mesmo físico e “espiritual”. O que se nega aí é o pensaqmento analítico e o que se exalta é um pensamento sintético, também exclusivo do homem, mas superior ao analítico (na busca desse pensamento sintético, o Zen está mais próximo do conhecimento artístico do que do conhecimento científico, daí sua adequação a uma expressão poética).


Conhecer a si mesmo não é, para o Zen, especular sobre o Eu, mas vivenciar o Eu sem mediações intelectuais ou sentimentais; como uma flor ou uma pedra, apenas com a diferença de que para o Eu esta é a única forma possível de conhecimento, já que ele não pode ser, para nós, puro objeto.


O conhecimento intelectual ou científico do Eu é uma impossibilidade porque o sujeito não pode objetivar-se totalmente. O realmento conhecimento do Eu, segundo o Zen, só se realiza na subjetividade absoluta: “O eu é comparável a um círculo sem circunferência, é sunyata, o vazio. Mas é também o centro desse círculo, que se encontra em toda parte e em toda a parte do círculo. O Eu é p ponto de absoluta subjetividade, capaz de transmitir o sentido da imobilidade ou tranqüilidade. Entretanto, como esse ponto pode ser movido para onde quer que o desejemos, para lugares variados, não é realmente um ponto” (Zen-budismo e psicanálise, p. 36).


O Eu é imóvel (sempre presente em nós) e móvel (mutante de um momento a outro). Por isso ele é designado pelo mestre Rinzai Gigen (século IX) como “o homem verdadeiro sem posição”. “O reino da subjetividade absoluta – escreve Suzuki – é onde habita o eu. ´Habitar´não é aqui o termo correto, porque sugere apenas o aspecto estático do Eu. Mas o Eu está sempre a mover-se ou a tornar-se. É um zero e uma estaticidade e, ao mesmo tempo, um infinito, a indicar que se move o tempo todo” (ibidem, ibidem) Essa imobilidade variável está registrada num poema de Caeiro:


Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.


A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor de sombra.


Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés –
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...


Só em Caeiro, Pessoa consegue serenar o drama em gente, a angústia da identidade que, nos outros heterônimos e no ortônimo, se encena para se suportar e se mascara para ser. Por outro lado, a poesia de Caeiro explicita melhor a questão do Eu para o zen, do que qualquer exposição didática do assunto. Expor discursivamente o status do Eu para o zen, é uma contradição com tudo o que o Zen ensina? Porque ele parte exatamente da impossibilidade de se analisar o Eu como objeto, e propõe uma vivência total da subjetividade que, por definição, não é verbalizável.


Para Pessoa, quem passou a vida na busca desesperada de seu “eu mesmo”, o intervalo Caeiro é realmente um repouso e uma libertação. Apesar de suas recaídas de Pastor Amoroso, Caeiro despe-se e despede-se do Eu intelectual e do Eu sentimental que provocam perplexidades e angústias. E pode finalmente dizer: “Sou fácil de definir./ Vi como um danado. / Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma”
As artes tradicionais japonesas intercomunicam-se e convivem em harmoniosa integração; pintura, música,a teatro, arte floral, arquitetura, artes marciais, dança, poesia – todas se relacionam a partir dos princípios Zen.


Na poesia, é o “haicai” que manifesta, de forma mais acabada, a filosofia Zen. O haicai é poema breve, de uma linha (que pode ser disposta em três), composto segundo a métrica de 5-7-5 sílabas. Essa forma poética chegou à perfeição no século XVII, embora tenha começado a existir setecentos anos antes. Seu maior praticante foi Bashô (nascido em 1644) que, de 1681 em diante, dedicou-se inteiramente ao Zen, por considerar sua vida de poeta “muito palavrosa”.


Poeta sintético, econômico, concentrado e compacto, o haicai é a expressão verbal de um pequeno satori. Corresponde a uma exclamação de surpresa e encantamento diante de qualquer aspecto da natureza. É o que explica um de seus maiores especialistas, Kenneth Yasuda: “Sabemos que, quando acontece a uma pessoa ver um belo pôr do sol ou lindas flores, por exemplo, ela fica tão encaantada que apenas permanece imóvel. Esse estado mental pode ser chamado de ´ah-idade`, pois aquele que o experimenta só pode soltar uma funda exclamação de deleite: ´Ah!´. O objeto caputurou-o e ele está apenas atento às formas, às cores, às sombras, aos matizes.


Por um breve momento, mele vê uma configuração, uma significação que nunca tinha visto antes, naquele objeto” (The Japanese Haiku, Its Essential Nature, History and Possibilities in English, with Selectec Examples, Rutland, Vermont and Tokyo, Japan, Charles E. Tuttle Company Publishers, 1957 (58), p. 30). A intenção do haicai é fixar essa experiência de agradável surpresa diante da “realização do real”. Como diz Octávio Paz, “o haicai é uma pequena cápsula carregada de poesia capaz de fazer saltar a realidade aparente” (In O livro dos Hai-Kais, São Paulo, Massao Ohno/Rosita Kempf, 1980, pp. 16-17).


O haicai não pode ser composto por uma mente analítica ou conceptual, porque busca comunicar a primeira sensação provocada pelo objeto, antes que a consciência dele se apodere e a razão comece a abstratizá-lo. O haicai é sintético e concreto. Exprime e comunica, de modo imediato, uma sensação de absoluto frescor: “o haicai é um momento feliz em que a linguagem se detém, pousando na formulação justa”; o que o haicai diz é apenas: “é isso” Perfeita comunhão do sujeito com o objto, da percepção com o real, da linguagem com a coisa: satori.


Três traços caracterizam o haicai, quando a sua temática: as referências a um o quê, um onde e um onde.


1) o quê – o haicai é desencadeado por um objeto; é a percepção privilegiada do real em alguma coisa, que constitui assim o núcleo do poema: uma flor, uma animal, uma árvore, a lua, etc. Não é a projeção de um eu no objeto para conformá-lo a si mesmo, mas a total entrega do eu, que se funde transformado, ao objeto.


2) onde – o objeto referido é situado, pelo poeta, no lugar em que foi visto, o que contribui para dar maior concretude à imagem. Uma parte do haicai é, assim, destinada a indicar a localização do objeto, cenário sucinto de sua aparição.


3) quando – com o mesmo objetivo de concretude 9objetivo que decorre da própria natureza), o haicai indica a ocasião em que foi visto o objeto. Essa indicação temporal, indispensável no haicai clássico, contém uma alusão à estação do ano em que ocorre a percepção. O traço temporal tornou-se uma convenção rigorosa, cirando assim um repertório de saijiki (ou “tema de estação” ) extremamente econômico porque indicial: “neve” para inverno, “flor de cerejeira” para primavera, “libélula” para verão, etc.
A enunciação do haicai é a experiência do sujeito como lugar vazio, como receptividade, assentimento ao “real do real”, do sujeito liberado de seus imaginários conceptuais e sentimentais. A emoção aí permanece inteira (diante da morte, do ser amado) mas não cai no “banho morno da emotividade cristã”, não se introverte nem se derrama.


Essa breve descrição do haicai permite-nos voltar a Caeiro, e propor determinada releitura de sua poesia.


Existindo, como creio ter demonstrado, tantas afinidades entre as aspirações filosóficas de Caeiro e os princípios da sabedoria Zen, não é de espantar que existam também afinidades estéticas entre a poesia de Caeiro e a poesia japonesa.


Percorrendo a obra do mestre ribatejano, podemos encontrar numerosos blocos de versos que constituem haicais perfeitos ou quase perfeitos. São registros de percepções da natureza na “realidade de seu real”, carregados daquela emoção intensa e impessoal do satori; momentos altos em que o objeto se revela, instantânea e essencialmente.
Vejam-se alguns exemplos:


1) O luar através dos altos ramos
É não ser mais
Que o lugar através dos altos ramos.


2) Passou a diligência pela estrada e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.


3) ... dia de Verão
(Alguém) abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda.


4) ... os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz não.


5) ... uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
O haicai pode conter uma argumentação, mas esta é reduzida ao mínimo e se refere apenas á percepção do concreto:
Penso: as flores caídas
Retornam aos seus ramos.
Mas não! São borboletas.


O haicai chega a um extremo de síntese que se visualiza na brevidade da formulação. Não é, entretanto, pela simples extensão que os poemas de Caeiro se afastam da filosofia da constatação pura que é a sua, e que coincide com a sabedoria Zen. Alguns poemas seus, embora mais longos do que haicais, mantêm-se num espírito mais coerente com sua teoria, são registros de sensação e da emoção sem grandes interferências abstratas, e com uma moral apenas latente:


A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)


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