#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



III PARTE


Verdade mesmo, o que existe na Literatura de Lúcio Cardoso é uma forma de oposição no sentir a vida, em terras onde a existência decorre em casas de janelas escancaradas, com o sol entrando, longos encontros de rua que são como visitas, conversação em voz alta, de janela a janela, de um lado para outro da rua. Daí a estranheza de seus romances, em que os personagens ficam na fronteira da loucura e da normalidade, que os personagens ficam na fronteira da loucura e da normalidade, entre a rotina e o mistério; reclusas, não apenas nas alcovas de janelas fechadas, mas na semi-obscuridade dos porões da mente, onde se desatam, sem o constrangimento da convivência, os fantasmas da solidão.


Baseado, principalmente, no monólogo interior, este procedimento de técnica assemelha-se ao monólogo comum, diferindo, entretanto, pela sua finalidade, que é permitir ao leitor penetrar diretamente na consciência do personagem, sem intervenção do romancista, que se abstém de comentar ou explanar.


Monólogo sem ouvinte, pensado e não falado. Daí a denominação de novela muda ou silenciosa, que anteriormente citamos. Lúcio Cardoso é, sem dúvida, o precursor de seu estilo, em Curvelo.


A análise existencial não é definitivamente, senão um estudo do universo do discurso. Sim, mas a análise também efetua a síntese com a linguagem procedendo-lhe a intuição e a imagem, que, como veremos possibilita a germinação de suas origens. Com efeito, “Dasein” determina o modo como o próprio homem se interpreta enquanto ser que fala e, sem dúvida, que se expressa e se comunica. Esta interpretação não é, de modo algum arbitrária e gratuita uma vez que ela descobre a estrutura da ek-sistência e o próprio ser das coisas, este ser que se des-cobre, põe-se nu diante de si mesmo, “Começar a pensar é começar a ser consumido” unido a “Abrir um corpo e a pessoa que lá mora”. A antropologia lê ( no sentido grego do termo, colher/recolher) o discurso , literatura e filosofia busca a síntese sujeito-objeto, a linguagem. Isto é, se tomarmos este genitivo no seu duplo sentido, o discurso e a linguagem do homem sobre o homem. O que digo, expresso, comunico do que estou sendo sido, o que vivo do que estou sendo sido.


Erich Heller, em Kafka, capítulo dedicado ao “Processo”, em seu início diz:


“No Prefácio à Teoria da Cor, Goethe diz de qualquer das experiências da mente: “O simples fato de olhar uma coisa resulta, gradualmente, em contemplação termina em pensamento – incluímos nos que a contemplação a nossa necessidade de conhecimento – e aquele ( o pensamento) no estabelecimento de conexões, assim, pode-se afirmar que cada olhar atento lançado ao mundo é um ato de teorização”; assim pode-se, pelo mesmo motivo, dizer: cada olhar atento a um ato de interpretação. Goethe, porém, acreditava que isto devia ser feito com a consciência de que se trata de uma interpretação, ( da busca de satisfazer da nossa necessidade de conhecimento) e, portanto, “para usar uma palavra audaciosa, com ironia” – qualidade obstinadamente ausente do espírito de tantos comentaristas literários, que atravessam os textos com o ar de policiais à cata do “significado”, como se tratasse de um caso de contrabando ou de bens roubados. Na maioria das vezes, os resultados a que chegam tendem a provocar a pergunta: “Se foi isto o que o autor quis dizer, porque não o declarou?”


Vejamos, em primeira ins-tância, o que Vergílio Ferreira escreveu em Espaço do Invisível, ao abordar o tema de “o homem à sua face”, que está diretamente ligado com o tema de Aparição, tema que, como demonstro, só se configura completamente em Estrela Polar, e logo a partir do título do romance. Façamos então uma análise do que entre “o homem à sua face” e o título de Estrela Polar pode ser confrontado ou relacionado.
Espaço do Invisível: “Mas o primeiro ato na recuperação de nós próprios deve ser o abordar a íntima e original irrupção de nós mesmos, se não o coincidirmos instantâneamente com esse puro aparecer da luz que somos. Essa é a distância máxima da vida à morte, esse o meio de se equacionarem os dados-base da reconquista para o homem de um lugar no Universo”.


Estrela Polar: “Chamo-lhe apenas ‘Estrela Polar’, porque sou mais corajoso ou o desejo parecer. Luz breve, que existas, onde? Fugidio indício que me anuncie o meu lugar na vida...”


Como se pode observar, é simples a relação dos trechos de Espaço do Invísivel e Estrela Polar, um ensaístico, outro ficcional. Entre “o homem à sua face”, confrontando-se no puro aparecer da luz que o é, marcando uma distância onde se equacionam os dados do seu lugar no Universo, e a posição desse homem marcando numa estrela um ponto de referência que lhe anuncie o seu lugar na vida, o que vale dizer no mesmo Universo, existem laços temáticos coerentes.


Alberto e Adalberto só se sentem existindo como pontos de referência a eles exteriores, com os quais se possa conferir e avaliar. Por isso a sua relação com os outros é uma função estruturadora da narrativa; as pessoas com que se confrontam são significantes narrativos, na medida em que da reciprocidade dos gestos e das palavras se retiram os significados dos romances.


A continuidade existente entre determinados romances de Vergílio Ferreira é particularmente perceptível, principalmente em nível temático, entre Aparição e Estrela Polar. A seqüência, aliás, já se prenuncia em Aparição na velada sugestão do título do romance seguinte, implícito num diálogo travado entre Alberto e Sofia, a céu aberto, numa noite estrelada, depois recordado pelo protagonista à distância dos anos:


“Deitamo-nos numa rocha, olhando os astros. Eu falava das estrelas, das gigantes vermelhas, das anãs brancas, das novae, da medição das distâncias, das nebulosas, da nossa galáxia, cuja distância máxima, de extremo a extremo, é de cem mil anos-luz, da Andrômeda, a mais próxima, a um milhão de anos-luz, dos montões de galáxias, algumas à distância de quinhentos milhões de anos-luz, das grandezas relativas, da E do Cocheiro, que é maior do que a órbita de Saturno, dizia nomes de um sabor terrível para mim, Arcturus, Capela, Aldebaran, Rigel, Betelgeuse, Altair, falava do aspecto da Ursa daqui a cem mil anos, contava de textos indianos em que se falava de uma certa polar, o que só poderia Ter acontecido há x milhares de anos, contava do movimento de precessão”... (...O e que há 120 séculos a nossa polar não era a estrelinha que sabemos mas a Veja; e que daqui a outros 120 séculos sê-lo-ia Veja outra vez”.


Idêntico procedimento em outros romances que anunciam os títulos dos livros vindouros afasta a hipótese de uma casualidade. Quanto ao tema de Estrela Polar ou a sua problemática fundamental, o próprio Vergílio Ferreira, também numa dimensão ensaística, tal como o fizera em relação a Aparição a explica em Invocação ao meu Corpo:


“ Porque um “tu” é um “eu” que estamos vendo em alguém, um “eu” fugitivo, inapreensível e todavia tão presente que nos perturba de inquietação. (...) No contraste radical entre um corpo morto e a necessidade de que alguém o estivesse vivendo é que se aflora a misteriosa entidade do “eu” que vive no “tu”, a estranha realidade viva que no dia-a-dia se não vê quando se vê apenas o “tu” a viver e não o “eu” desse “tu” que através dele o está vivendo, o está sendo, presente, inquietante, necessário. Contei em Estrela Polar a experiência desse “tu” – Valerá a pena recontá-la? Imagina que te encontras com alguém que já não vias há muito. Recordas com ele um passado comum. Todos os elementos de um acerto mútuo estão aí, desde os fatos que ambos recordais até a face desse alguém, aos seus gestos, à sua voz. Percorrestes pela memória mil acontecimentos comuns, recuperaste-vos totalmente e mutuamente nesse encontro. Mas eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gêmeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as idéias, os sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e ao que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipóteses absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verficarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa e aquilo que ela nos é, se uma pessoa e aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define e aquilo que somos e esse alguém que encontramos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perturbassem. Mas elas perturbam-se, porque esse alguém não é o outro. Em quê, porém, não é o outro? E eis que se levanta agora flagrante essa coisa obscura que determina o “tu de alguém. Não é nada. E é tudo. Porque toda a sua pessoa está naquilo que a diz – e no entanto não está. Toda a sua pessoa se revela no que vem à superfície ou aí se anuncia, e no entanto alguma coisa ficou ainda atrás, indizível e inacessível, fugidia e flagrante – início puro e categórico, intocável e nula realidade, e no entanto fulgurante e categórica realidade”.


A descoberta do outro é, pois, fundamental na vida humana. Tornar-se como que parte integrante do outro e fazer dele uma parte integrante de si. Depois de longa luta, com armas que não são materiais nem de destruição, poderá dizer que este outro é a "metade de sua alma".


A inspiração "eidética" e "erótica" da metafísica impede o pensamento de toda a superação até ao Outro. A transcendência onto-teológica que o realiza não é senão a absolutização do Mesmo. O modelo secreto que anima a reflexão é o do "subjectum" e do "objectum". O objeto representado é uma objetivação do "subjectum": o homem concebido como sujeito autônomo transfere para o objeto os seus próprios caracteres e valoriza-o em função das suas exigências. Inversamente, o homem-sujeito é interpretado segundo o modelo subsistente. O pensamento, fechado no círculo representativo do sujeito e do objeto, não pode sair de si-próprio: está condenado a refletir o Mesmo sem nunca poder chegar ao Outro. Oscilando entre o sujeito e o objeto, a reflexão não encontra, por todo o lado, senão a sombra trazida por si-própria. Esgota-se a analisar as suas próprias condições de possibilidade, a refletir-se sem fim, a menos que consiga realizar a adequação perfeita entre o representado objetivo e a representação subjetiva.


(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE ABRIL DE 2018)


Comentários