#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE IV# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



Importa ressaltar que, no registro kantiano, a filosofia se reduz a condições de possibilidade do conhecimento e não se confunde portanto com a metafísica. Pensamos que mesmo assim, tanto numa quanto noutra, há a base da posterior elaboração dos conceitos uma intuição radical, que não é dado a todos possuir, e que nada tem de estritamente empírica ou sensorial.


Quando estudarmos Memórias do subterrâneo, obra capital, a chave de entendimento e compreensão dessa de-monstração da importância de Dostoievski em nossa vida quotidiana, mais profundamente em nossos dias, a crise da fé, a aceitação de “idéias” que na aparência são salvadoras, mas que escondem o veneno mortal do encontro do homem-Deus e o Deus-homem, veremos que essa “idéia divina” do desejo de redenção está muito presente na obra, é nessa obra que está o pomos da compreensão dessa “idéia”. A idéia da redenção, da ressurreição per-corre, permeia toda a obra, mas onde ela se torna carne, se torna verbo, é em Memórias do Subterrâneo. O estudo que Dostoievski faz do “egoísmo”, do “egocentrismo”, da vaidade.


Referiamo-nos a Paulina Suslova, várias foram as vezes que ela censurou Dostoievski por estar escrevendo um livro assim. Ela não aprovou a obra de modo algum. Fez críticas a ela. O egoísmo em Dostoievski visto à luz das Palavras de Deus, da Bíblia. Uma hipótese: não seria também uma das razões por que ela assim censurava Dostoievski, essa visão cristã do egoísmo?
Assim, o “desejo de redenção, de ressurreição” está intimamente relacionado à intuição, a única via de acesso, segundo Dostoievski, à participação na espiritualidade. A vontade de poder à racionalidade. Tal distinção é de primordial importância nesse “paralelo” que buscamos realizar entre Nietzsche e Dostoievski.


Óbvio que Dostoievski buscava finalidade mais elevada do que a exegese da sociedade humana e da problemática dos seres que a integravam. Romancista essencialmente antropológico, sua preocupação fundamental era, antes de tudo, o destino de seus semelhantes. Sabia ele que o caminho da salvação num mundo de pecados e de contradições era aquele que levava a Cristo. Cristo era o elo entre o homem e Deus. Somente pelo ensinamento da doutrina do Filho do Homem poderia a criatura humana aproximar-se da sombra e do calor de Deus.


O pensar que acolhe a Palavra de Deus, o pensar que acolhe Cristo, e tenta re-dizer, criar, recriar, não é somente poesia, é também desejo de ressurreição, isto é, não está apenas representado na arte dostoievskiana, na literatura, é vida, isto é vivido por todos os homens, é o pensamento originário. Pensar é expor-se ao mistério da realidade, a filosofia, como cura e cultivo do pensamento, nas palavras de Platão, uma conversão radical de todo nosso modo de ser para sua própria essência. Essa con-versão originária se dá e exerce na reflexão.


Na re-flexão a filosofia, a literatura dostoievskiana, nos acena com um pouco de liberdade por um pouco de pobreza. É um aceno complexo e difícil de se perceber hoje. O desejo de redenção não se dá como uma coisa feita, já pronta e acabada para o uso. A literatura não se dá apenas com o dom da “escrita”, dá-se quando ela real-ize o ideal humano, a idéia divina do homem, quando ela “participa” do desejo de redenção, de ressurreição. Exige de nós a pobreza da liberdade ao mesmo tempo em que se esquiva às pretensões de poder e controle de nosso querer saber. No dom de uma conquista, a teologia, a filosofia, a antropologia abrem caminho por e para uma caminhada.


O que é isto – re-fletir? Re-fletir não é trancar-se num isolamento de si mesmo. É curvar-se num empenho para e pela realidade, a fim de atingir-lhe as raízes do mistério de ser. As sendas perdidas no niilismo são apenas caminhos que, em sua caminhada, perderam o rumo, se desviaram do objetivo e, ficando sem fim, deixaram de ser caminho. As Palavras de Cristo asseguram certeza mais que evidente do Amor de Deus pelos homens, elas nos abrem silenciosamente passagens extraordinárias para a selva selvagem do pensamento, por onde o mistério de ser sempre nos faz passar, quer com passes de filosofia, quer com passos de teologia, antropologia, quer com passes de ciência. As trilhas perdidas, o Amor, o desejo de ressurreição, a compaixão, solidariedade, humanidade, são a passagem do pensamento, assim vendo sob a luz do “desejo de redenção”, ao homem-Deus, a real-ização da ressurreição.
Numa missiva a seu amigo o Barão Vrangel, assim nos diz:


"Há um limite para o esforço humano e, uma vez ultrapassado esse limite, não há senão a vontade de Deus. Eu atingi tal limite"
.
Partindo do caos que via ao redor de si – caos e tumultos que jaziam nos arcanos de sua alma – ele esforçava-se para rasgar caminhos onde fosse ter a corrente do pensamento religioso.


Svidrigailov, Stavroguine e Raskolnikov são os exemplos mais eloqüentes desses naufrágios do ser humano. Dostoievski segue-lhes as passadas no caminho do erro, do desdobramento e do pecado até ao aniquilamento da personalidade. O único que encontra o caminho da regeneração é Raskolnikóv, o herói de Crime e castigo. Que caminho é esse? È o do arrependimento, da humildade, da renúncia – o caminho que leva a Cristo. Inspirado nos ensinamentos do Evangelho, o romancista faz renascer antigos sentimentos religiosos e valoriza as velhas virtudes morais que Nietzsche somente atribuía aos escravos. Faz das fraquezas força e aponta a palavra do Evangelho como o caminho da Redenção, como âncora dos desorientados e bússola dos que procuram o seio de Deus.


O que devemos entender por história? A história é o ser do homem enquanto este se constrói seguindo um ritmo de intenção-realização, de projeto-execução, por meio da decisão. A historicidade, por sua vez, é esse mesmo ritmo considerado como lei fundamental do ser humano. Através da série das possibilidades que lhe são oferecidas, o homem se constrói e constrói sua própria história, sempre seguindo esta dialética de projeto-opção-realização. Acrescentemos que ao mesmo tempo que ele edifica sua história pessoal, o homem se torna um momento da história humana, pois não pode realizar sua história pessoal sem se tornar ele próprio peça integrante da história universal. A história se desenrola portanto entre dois termos: a unidade do projeto celular da pessoa e a unidade mais vasta da história da humanidade.


A teologia da história, estendendo mais ainda o panorama, precisa que para além de cada projeto individual e para além dos projetos da humanidade, existe um projeto superior que inclui e transcende a história da humanidade, a saber, do projeto do próprio Deus. A história pode, de fato, revestir um sentido que o homem mesmo determina (ao modo de Hegel e de Marx) ou um sentido transcendente fora do alcance do homem. O cristão sabe que o sentido último da história pertence a Deus.


Aquilo que constitui a realidade profunda da história, observa Marrou, aquilo que se constrói através do tempo, aquilo que vai crescendo, a Cidade de Deus, Corpo místico de Cristo, é por natureza algo alheio à experiência sensível e que necessariamente, em grande parte, está fora de nosso campo de visão .


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)


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