#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



I PARTE


Vergílio Ferreira entrou na Literatura pela porta do neo-realismo – a forma literária e ideológica em que se vazou o projeto interpessoal de uma geração que considerou como seu dever primeiro intervir, pelo modo que lhe era possível, no aceleramento de um processo histórico considerado, aliás, irreversível e fatal. Os seus primeiros romances nasceram sob a pressão do tempo, sob aquilo que os alemães designam “Zeitgeist”. O tempo histórico favorecia a intervenção neo-realista. Pela primeira vez em Portugal, o poeta, o conto, o romance atingiam uma vasta área de leitura e deixavam de ser um “divertissement” para privilegiados, como ainda acontece no Brasil.


Em Portugal, as propostas órficas, podadas nos propositais exageros dos jovens modernistas que desejavam escandalizar as figuras da “literatura oficial”, vão evoluir para o esteticismo da geração da Presença, surgida em Coimbra em 1927. Os escritores presencistas “des-cobrem” a ficção de cunho psicológico e ensaiam novos temas e novas técnicas aprendidas em Proust, Gide, Dostoiévski e Joyce. Iniciam em Portugal uma crítica de arte em que o cinema está incluído e estudam a filosofia de Bergson e a Psicanálise de Freud.


Encontramos a concepção bergsoniana de tempo como é usada no filme e no romance moderno – ainda que nem sempre tão inequivocamente como aí – em todos os gêneros e tendências da arte contemporânea. A “simultaneidade dos estados de alma” é, antes de tudo, a experiência básica que estabelece uma conexão entre as várias tendências da pintura moderna, entre o futurismo dos italianos e o expressionismo de Chagall, entre o cubismo de Picasso e o surrealismo de Giorgio Chirico e Salvador Dali. Bergson descobriu o contraponto dos processos espirituais e a estrutura musical de seus inter-relacionamentos.


Do mesmo modo que quando ouvimos, devidamente, uma peça de música temos em nossos ouvidos a conexão mútua de cada nota com todas as outras que já soaram, possuímos sempre em nossas experiências mais profundas e virtuais tudo quanto já experimentamos alguma vez e assimilamos à nossa vivência. Se nos entendemos, lemos nossas próprias almas como se fossem partituras musicais, solucionamos o caos dos sons emaranhados e os transformamos numa polifonia composta de diferentes partes.


Segundo Schopenhauer, a música é a arte mais distante do principium individuationis, pois a música é a voz da própria vontade, o som da essência metafísica do mundo. Para o filósofo, ela é capaz de transmitir a reminiscência de um modo de ser jubilosamente não dividido, e de antecipar a harmonia que acompanharia a vitória do indivíduo sobre sua própria vontade e, assim, sobre si próprio, conquista que “corrigiria o engano” e restauraria a paz e a integridade do todo único. Com boa razão Schopenhauer concedia exclusivamente à música, e não à língua, alcançar além do princípio e transmitir a universalidade sem fala, ilimitada.


Suzanne Langer argumentou que a forma de uma obra de arte exprime um sentimento ou uma emoção e que esta forma é a do sentimento. O artista, especialmente o artista musical, conhece de um modo não-lógico a natureza das emoções, o que é o mesmo que Ter uma compreensão intuitiva de suas formas. É a estas que ele exibe com o imediatismo representacional do símbolo artístico essencialmente a forma expressiva da composição. Naturalmente, Suzanne Langer distingue esse sentido de “forma” dos diversos outros sentidos do termo. Assim, para dizer o mínimo, ela não deseja significar por ‘forma” o formato de um sentimento. Articular um sentimento em uma composição não é objetivá-lo e, dessa maneira, convertê-lo na forma expressiva da obra para apreensão estética. Isso distingue tal expressão da expressão não-estética existente na mera alocução de sentimento, como – digamos – em uma carta irada dirigida a alguém ou em exclamações, jaculatórias e resmungos, todos eles casos de auto-expressão. Dessa maneira, o artista não precisa expressar os sentimentos que ele simplesmente tem, à medida que compõe, ou que teve ou que terá. Ele está informado, antes, das formas dos sentimentos e coloca os sentimentos à mostra, em suas composições, em virtude de suas formas.
Como diz Suzanne Langer, é a forma do sentimento que importa, em Música especialmente, mais do que a descrição da coisa particular que tem ou exibe o sentimento. Isso me leve a uma heresia. Sugiro que a forma dinâmica do conteúdo imagístico auditivo da Música é idêntica à forma apreendida na visão estética. A tristeza expressivamente retrata no movimento adágio do Concerto para Violino em Mi Maior, de Bach, com suas figuras desanimadas, especialmente na base do contraponto, é tanto a de um salgueiro-chorão como a de um ser humano, e não se costuma geralmente ouvir um salgueiro. Assim, é um erro supor que a Música tem a sua própria variedade de formas audíveis. A mesma forma do sentimento tanto pode ser apreendida na forma visual da obra de arte como na auditiva.


Toda a parte é um jogo com o caos e uma luta contra ele; a arte está sempre avançando cada vez mais perigosamente para o caos e libertando cada vez mais de seu poder novas regiões do espírito. Se há algum progresso na história da arte, ele consiste no crescimento constante dessas regiões arrebatadas ao caos. Com sua análise do tempo, o filme está na linha direta desse desenvolvimento: ele tornou possível a representação visual de experiências que antes só haviam sido expressas através de formas musicais. Ainda não apareceu porém o artista capaz de preencher com vida real essa nova possibilidade, essa forma ainda inexplorada.


Sempre houve um elemento de tensão entre a qualidade e a popularidade da arte, o que não quer dizer em absoluto que as massas em todos os tempos se tenham declarado em princípio contra a arte qualitativamente boa, em favor de uma arte inferior. Naturalmente, a apreciação de uma arte mais elaborada apresenta maiores dificuldades para as massas do que a de uma arte mais simples e menos desenvolvida, mas a falta de uma compreensão adequada não as impede necessariamente de aceitar essa arte – se bem que não exatamente devido à sua qualidade estética. O sucesso junto às massas está completamente divorciado de critérios qualitativos. Elas não reagem ao que é bom ou mau artisticamente, mas a impressões que as fazem sentir-se tranqüilizadas ou alarmadas na sua própria esfera de existência. Interessando-se por aquilo que tem valor artístico, contanto que se apresente de modo a adaptar-se à sua mentalidade, ou seja, contanto que o tema seja atraente.


Neste ponto, as probabilidades de sucesso de um bom filme são em princípio muito maiores do que as de um bom quadro ou de um bom poema. Pois, excluindo o filme, a arte moderna é quase um “livro fechado” para os leigos; é intrinsecamente impopular, porque seus meios de comunicação transformaram-se, no curso de um desenvolvimento longo e estanque, numa espécie de código secreto, ao passo que aprender o novo idioma em desenvolvimento do filme não passa de uma brincadeira de criança até para o mais primário público de cinema. Em vista dessa feliz síntese, ficar-se-ia inclinado a tirar conclusões otimistas a longo prazo sobre o futuro do filme, se não se soubesse que esse tipo de acordo intelectual não é senão um estado de infância paradisíaco, provavelmente repetido sempre que surge uma nova arte.


No Brasil, os modernistas de 22 afastam-se das estéticas européias na valorização do elemento primitivo nacional e subdividem-se em grupos de maior ou menor expressão, como o “verde-amarelismo”, o “pau-brasil”, a “antropofagia”, o “espiritualismo” ou o “dinamismo”. Funda-se aqui, nos rumos tomados pelos dois movimentos modernistas, uma divergência profunda nas literaturas de Portugal e do Brasil.


Guillaume Apolinaire, em 1918, quatro anos antes da Semana de ‘22’, dizia em “O Espírito Novo e os Poetas”:


“O espírito novo que se anuncia pretende antes de tudo herdar dos clássicos um sólido bom-senso, um espírito crítico seguro, apreciação de conjunto do universo e da alma humana e o sentido do dever que analisa os sentimentos e limita, ou antes, contém suas manifestações. Pretende ainda herdar dos românticos uma curiosidade que o leve a explorar todos os campos próprios para fornecer uma matéria literária que possibilite exaltar a vida sob qualquer forma em que ela se apresente. Buscar a verdade, encontrá-la, tanto no dominio étnico como, por exemplo, no da imaginação, eis os principais caracteres deste espírito novo”.


O Segundo neo-realismo, que nada mais era senão uma adaptação do primeiro neo-realismo à pressão do tempo, o tempo histórico do pós guerra que também influenciou, como observamos, a obra de Virgílio Ferreira. A literatura portuguesa ia inaugurar um novo ciclo romancístico onde a ficção feminina teria um importante papel a desempenhar. Esta situação de transição daria origem a algumas confusões, como o caso de A Sibila, de Agustina Bessa Luís, que passou por ser um romance neo-realista, quando na realidade era uma exceção romancística do nível do existencialismo.


A “mudança” do romancista Virgílio Ferreira manifestava, portanto, uma lógica irrefutável, quer dizer, obedecia ao Zeitgeist, se não obedecesse à estrutura dilemática do pensador Virgílio Ferreira. Se na diacronia do espaço e do tempo literários existe alguma lógica, ela aí está configurada na obra do autor de Nítido Nulo? Uma obra que cede à pressão epocal em que surge para o público, que cede ainda e depois à nova pressão epocal, ou talvez fosse melhor dizer, à coação de leituras mais exigentes, impostas por uma mentalidade interrogadora, perplexa, angustiada – que, afinal de contas, está também na base do impulso criador de Virgílio Ferreira, um escritor coerente com o espaço e o tempo e, sobretudo, consigo próprio. Talvez seja essa uma das causas da extensão do êxito da sua obra romancística.
O realismo de Graciliano Ramos não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como “primeiro motor” de todos os comportamentos. Esta a grande conquista de Graciliano? Superar na montagem do protagonista ( verdadeiro “primeiro lutador”) o estágio no qual seguem caminhos opostos o “painel da sociedade” e a sondagem moral. Daí parecer precária, se não falsa, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais como São Bernardo e Vidas Secas. Nelas, a paisagem capta-se menos por descrições miúdas que por uma série de “tomadas” cortantes; e a natureza interessa ao romancista só enquanto propõe o momento da realidade hostil a que a personagem responderá como lutador em São Bernardo, retirante em Vidas Secas, assassino e suicida em Angústia.


Em cartas e artigos, escritos ao longo de sua vida, Graciliano fala da dificuldade que é, para qualquer pessoa, tentar entender uma cultura à qual não pertence. E, coerente com esta afirmação, explica que só se aventurou a escrever Vidas Secas depois da experiência do cárcere, onde conviveu diretamente, e em condições de igualdade, com tantos pobres, tantos miseráveis, tantas pessoas da cultura popular – que eram, e infelizmente ainda são, aqueles que mais sofrem a repressão simbólica e real da cadeia. Sempre coerente com seus princípios estéticos, Graciliano, nesse seu romance, ao contrário de em todos os outros, nào utiliza um narrador em primeira pessoa. Apesar da convivência no cárcere, ele sabe que a diferença cultural não foi totalmente rompida. Seu narrador está na terceira pessoa. E o recurso que utiliza para aproximar-se das personagens é o discurso indireto livre, recurso que, aliás, utiliza com maestria.
Em Graciliano, a dificuldade de compreensão da cultura dos pobres, lucidamente reconhecida pelo autor deixa de ser defeito e transforma-se em virtude, dando uma grande força ao romance. Converte-se num princípio estético.


No conto "Pai contra mãe", em Corpo de Baile, Guimarães Rosa, o que vemos não é a ratificação da ideologia das classes dominantes mas sua denúncia. Vemos ali a representação de um processo de revelação que não se cumpre. E para ficar claro o que pretendo dizer com esta afirmação devo esclarecer o que entendo por revelação. Em seguida voltarei ao conto e tentarei mostrar como lá ela se dá e não se cumpre para, na seqüência, mostrá-la em sua realização completa em Corpo de Baile.


A primeira coisa que é preciso esclarecer é que revelação não se opõe a razão. Como muito bem observa Adorno em seu artigo "Razão e revelação", "a força e dignidade da grande escolástica, e, sobretudo, das Sumas de Tomás de Aquino, residiam em que, sem absolutizar o conceito de razão, nunca o proscreveram" . Este posicionamento de equilíbrio, na verdade, ainda que na prática muitas vezes tenha sido negado, é sempre essencial para a revelação. O que Adorno apresenta - na seqüência de seu artigo - como sendo uma necessidade do pensamento moderno, é parte essencial no processo da revelação: "em vez de negar a racionalidade ou de afirmá-la como absoluta, a razão tem que tentar, pelo contrário, de determiná-la como um momento dentro do todo (...) ela deve descobrir sua própria essência natural (...) esse motivo não é estranho às grandes religiões: mas é precisamente ele que precisa hoje da secularização, para não vir a servir, isolado e exagerado, ao obscurecimento do mundo, que desejaria esconjurar". No meu entender, a revelação, na sua radicalidade, já traz em si este princípio, inclusive a "secularização". A secularização é a negação de uma Totalidade absolutizada, transformada em deus. Nesse sentido a secularização é a "ateização" de um sistema. E como todo sistema tende a se absolutizar, a secularização, ou o ateismo do sistema vigente, é condição necessária para a revelação .


(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE ABRIL DE 2018)


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