#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



IX PARTE............


A função da arte é pois a de “descobrir a atmosfera que se não revela senão ao sentimento (...) Se nós podemos ler as expressões do real, é porque nós nos exercitamos sobre esse objeto super-real ou pré-real que é o objeto estético. Assim a arte tem antes de mais uma função propedêutica (...) Quase diríamos que é com a arte que começa a percepção”. Em suma, a Arte, no seu valor originário, associa-se à origem do conhecer.


“A função da Arte é ‘...o homem em verdade real, é o des-cobrir o afeto, o carinho, a ternura, o sentimento íntimo das coisas. Se nós, deixando-nos-ser ao olhos e ouvidos atentos e à minha nítida simplicidade de alma”. (Uma Taça às Águas da Fonte, Folha de Curvelo, 24/12/99, Manoel Ferreira).


Eduardo Lourenço, num artigo comemorativo dos 25 anos de vida literária do autor de “Aparição” escreve:


“A primeira etapa é de feição neo-realista, a segunda determina, como o próprio autor afirma, uma convergência hegeliana e existencialista” Essa convergência afigura-se extremamente lógica. Ela é um ponto de chegada e um ponto de partida simultaneamente. Ponto de chegada de uma problemática social, cuja solução não pode deixar de ser epocal, onde os homens são fenômeno solidário, panlogístico; ponto de partida de uma problemática da solidão logo transformada noutra problemática que emoldura o homem face a face de uma realidade cujo absoluto é também concebível mas não atingível, onde o panlogismo é, por isso mesmo, substituído por um pantragismo”.


De fato, se a posição inicial de Vergílio Ferreira era dialética ou panlogística, encaminhou-se ela, de acordo com a cosmovisão do romance, para uma posição dilemática (e trágica ou pantragista). Se, por um lado, a relação logicamente solidária do homem implantado num território hostil o levava pronunciar-se sob um enfoque dialético que tenha razões externas, isto é, na pressão do tempo histórico, por outro lado, a sua visão trágica do homem sozinho sobre a terra, visceral mas também produto de leituras e medições que nem o autor sabe localizar com precisão, induziram-no naturalmente a preferir o lugar oposto do “realismo imediato” (o que estava à mão dos neo-realistas): o lugar do mito.


Poderíamos, diz-nos Levi-Strauss, Antropologia Estrutural, definir o mito como este modo de discurso em que o valor da fórmula traduttore, traditore tende praticamente a zero. Sob este ponto de vista, o lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüística, é oposto ao da poesia, não importa o que tenhamos dito para aproximá-los. A poesia é uma forma de linguagem extremamente difícil de traduzir numa língua estrangeira, e toda tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrário, o valor do mito como mito persiste, apesar da pior tradução. Seja qual for nossa ignorância acerca da língua e da cultura do povo de onde o recolhemos, um mito é percebido como mito por todo leitor, no mundo inteiro. A substância do mito não se encontra no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que aí é contada. O mito é linguagem.
A um homem preocupado com as necessidades materiais imediatas, configuradas na fome, nas doenças e no infortúnio sucede-se um homem angustiado pela própria simbologia de sua presença na terra, a angústia de viver de um homem cuja tarefa inadiável e irremediável era apenas o mito de Sísifo.
O mito investe-se pois do bem sem preço que é o Valor assumido, aceite, investido da nossa liberdade. Nào é ele assim um valor que se delibere aceitar, mas que verdadeiramente se quer. A sua evidência trespassa-nos mas deixa-nos a possibilidade e o recusarmos; e a força que vem dele nào é a de uma coação mas a de uma convicçào. Assim, se o renegamos é em pecado, não em indiferença e serenidade. Podemos recusar-lhe a nossa submissào, mas não o direito a ela. Toda a ordem moral da vida, toda a sua consonância com o universo assim a encontrávamos clara, transparente, como as linhas de um axioma. Mas esgotado o valor, esvaziado da sua injustificabilidade, todas as suas reinven~’cões apelam agora para o desejo de coação sem persuasão que a redima.
Com efeito, Hegel, na Fenomenologia do Espírito, tenta historiar-nos a consciência humana desde sua origem sensível, reconhece a efetividade do conhecer pela anulação do problema sujeito-objeto, afirma o absoluto do saber para cada época que é, todavia, um relativo em referência ao absoluto final.


O pensamento especulativo, que apresenta por tal fato, uma certa afinidade com a fantasia poética, evita estes defeitos das representações e das intuições que têm a sua origem no intelecto. O conhecimento especulativo ou racional, não se apóia, com efeito, em particularidades fortuitas nem deixa de considerar a essência dos fenômenos; em vez de se contentar com distinções e simples relações caras ao intelecto, reúne em uma totalidade livre o que, para a consideração finita, surge quer como independente, quer como ligado à restante realidade por laços frouxos e puramente exteriores. Ora o trabalho do puro pensar só tem como resultado pensamentos. Encara as formas da realidade na forma de conceitos puros e, até mesmo quando apreende cada coisa na sua particularidade essencial e na sua existência real, não deixa de integrar o particular no elemento geral e ideal que é o único em que o pensamento evolui. Graças a isto, vem opor-se ao mundo fenomenal um novo reino que é o verdadeiro tipo de existência real; nele a verdade não se manifesta imediatamente como a potência sem ato, nem se dá como pura intuição da alma. O pensar não é mais do que uma conciliação entre o verdadeiro e o real no domínio do pensamento, mas a criação poética é uma conciliação que se efetua antes sob a forma de uma representação espiritual, mas no próprio seio da fenomenalidade real.


“A beleza sonhada mais pura do que a vivente. No dobrar de um caminho, na volta de outra água, de outra fonte originária, que ajustará todas as coisas e todas as vidas” (Na Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas, Folha de Curvelo, 15/11/1999).


Há, entretanto, um sentido fundamental: pensar intuitivamente é pensar na duração. A inteligência parte ordinariamente do imóvel e reconstrói bem ou mal o movimento com imobilidades justapostas. A intuição parte do movimento, coloca, ou melhor, percebe-o como a realidade mesma, e não vê na imobilidade mais que um movimento abstrato, um instantâneo tomado por nosso espírito na mobilidade. A inteligência se dá ordinariamente coisas, entendo por isso o estável, e faz da mudança um acidente que se acrescentaria à estabilidade. Para a intuição, o essencial é a mudança: quanto à coisa, tal como a inteligência a entende, é um corte praticado no meio do devir e erigido por nosso espírito em substituto da totalidade. O pensamento se representa, geralmente, o novo como um novo arranjo de elementos preexistentes; para ele, nada se perde, nada se cria. A intuição, ligada a uma duração, que é crescimento, aí percebe uma continuidade ininterrupta de novidade imprevisível: ela vê, ela sabe que o espírito tira de si mais do que contém, que a espiritualidade consiste precisamente nisto, e que a realidade, impregnada de espírito, é criação. O trabalho habitual do pensamento é fácil de se prolongar tanto quanto quisermos. A intuição é penosa e difícil de prolongar. Na intelecção, o pensamento utiliza, sem dúvida, sempre a linguagem; e a intuição, como todo pensamento, acaba por se alojar em conceitos: duração, multiplicidade qualitativa ou heterogênea, inconsciente - diferencial até, se tomarmos a noção tal como era a princípio.


“A tarde de sol abre-se em si mesma. Em mim, o mistério dessas águas, essas águas capazes de encher a carência de amor, viram em Deus as minhas sensações, intensidade da vida, assumindo um sonho de um real adverso valoriza ao sinal inequívoco de um pássaro apanhando um peixe, a persistência em direção ao fim”. ( Na Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas, Folha de Curvelo, 15/11/1999, Manoel Ferreira)
A intuição é o que atinge o espírito, a duração, a mudança pura. Sendo o espírito seu domínio próprio, ela desejaria ver nas coisas, mesmo materiais, sua participação na espiritualidade – diríamos na divindade, senão soubéssemos tudo o que de humano ainda se mescla à nossa consciência, mesmo purificada e espiritualizada.


Mas não investigando verdadeiramente as origens do saber, interessando-lhe, a Hegel, a Dialética da Sensibilidade apenas como ponto de partida, preocupando a História da Consciência, tentando ao longo da Fenomenologia do Espírito racionalizar ou interpretar racionalmente (ou verificar-lhe a racionalidade) todo o acontecer histórico até ao limite ideal da união do Absoluto consigo, ou seja, fazendo (ultimamente apenas a Filosofia da História, implantando um panlogismo no acontecer humano, identificado, pois, “ser” como conceito ou sentido (objetivando, pois, o seu “idealismo”, considerando o pensamento sobre o ser como o próprio ser que se pensa).


Kate Hamburger, em A Lógica da Criação Literária, diz-nos, assim, acerca da posição de Hegel, o verdadeiro fundador da fenomenologia literária alemã.


‘No lírico’, diz Hegel, ‘é satisfeita a necessidade (do sujeito)... de desabafar e de perceber a disposição interior na exteriorização de si mesmo’’.


Nesta sentença é fundamentada a subjetividade específica da experiência, o ‘sujeito’ como pessoa, o eu pessoal do poeta, seu interior, a subjetividade do lirismo em oposição à objetividade do épico.


Na poesia épica as circunstâncias e acidentes exteriores têm a mesma importância que a vontade subjetiva, e o que o homem realiza tem tanto interesse como o que se passa no exterior, de modo que o ato humano apresenta-se como condicionado pelo concurso das circunstâncias e realizado graças a elas. Pois, do ponto de vista épico, o homem não age livremente, para e por si mesmo, mas acha-se mergulhado num conjunto de cricunstâncias físicas e morais estreitamente unidas e cujos fins e existência fornecem uma base fixa à atividade de todo o indivíduo particular. É sob este aspecto que a poesia épica deve pintar todos os sentimentos, decisões e realizações. Ora, parece que ao conceder igual valor tanto às circunstâncias exteriores como à atividade subjetiva, se abre uma porta a todos os caprichos do acaso, enquanto que a poesia épica deve, pelo contrário, apresentar o que é verdadeiramente objetivo, o que é de natureza verdadeiramente substancial. É uma contradição aparente, que desaparece porque os acontecimentos e a ação são, em geral, regidos pela necessidade.


Neste sentido, pode dizer-se que é na poesia épica, e não na dramática como geralmente se pretende, que domina o Destino. O carácter dramático, graças à natureza do fim que persegue através de circunstâncias dadas e cheias de conflitos, cria o seu próprio destino; o destino do herói épico, pelo contrário, cria-se fora dele, e este poder das circunstâncias que imprimem à ação a sua forma individual, que determinam o resultado da sua atividade, e decidem assim da sua sorte, não é senão o poder do fatum. O que acontece devia acontecer, em virtude de uma necessidade inelutável. Na poesia lírica faz-se ouvir o sentimento, a reflexão, o interesse pessoal, a melancolia e a tristeza; o drama faz ressaltar objetivamente a justificação interna de uma ação; mas a poesia épica tem por tema a existência total, com toda a necessidade que a condiciona, de modo que não resta ao indivíduo mais do que conformar-se ou não com este estado substancial, e, tanto, num caso como no outro, suportar todas as conseqüências da sua decisão.


A grande questão, a única, é sempre a da identidade almejada e falhada. Quando o Poeta se encarna numa personagem literária alheia, característica e conhecida (’Primeiro Fausto’), altera seus traços e conforma-a a sua obsessão pessoal; os temas do amor, da morte, do pacto infernal acabam por ensimesmar-se, abismando-se no “horror de conhecer”, que é o horror de não se conhecer. O pacto diabólico , no Carlos Bruno vergiliano é a da pavorosa compreensão do “mistério do mundo”, compreensão que é a da impossibilidade de compreender, já que o “segredo da Busca é que não se acha”. Na luta com a Vida, a Inteligência sempre perde.


Carlos Bruno estava novamente entregue ao seu vazio, e assim ficou até ser surpreendido pelo abandono de Berta, que resolveu deixá-lo, retirando-se para a casa do pai, em Vilarim. O romance alcança então um dos seus trechos mais belos, tanto ao nível da significação ideológica, quanto no plano da realizaçào estética. Carlos Bruno surpreende-se sozinho, ao anoitecer, no interior da sua casa mal iluminada pelas chamas dos cepos de pinheiro que ardiam na lareira arrancando reflexos das lombadas dos livros enfileirados nas estantes. No silêncio de pedra daquela hora, Carlos começou a sentir uma paz interior que há muito tempo não experimentava. É evidente que se incia aqui, em extrema pureza, um reencontro do homem consigo próprio. Essa pureza vai ser mantida ainda daí por diante, no recolhimento que Bruno procura entre os elementos da natureza, alheio às coisas práticas e materiais da vida, à rapidez com que empobrecia, à escassez dos clientes que cada vez mais rareavam no seu escritório. Carlos comprara a um passante um cão perdigueiro que desejava Ter para última companhia, saindo com ele à caça, embrenhando-se por dias e dias nos cerros da montanha, por onde gostava de errar, solitário, (...) de assentar as botas ferradas no chão duro e livre, sentindo-se confortado no abandono, liberto do olhar hostil de toda a gente. Podia estender os braços, largar à toa para um rumo qualquer, sem o muro de uma presença. É na solidão que Bruno se reencontra e aplaca o ferrão da sua angústia, constatação que nos remete à frase famosa de Sartre o inferno são os outros, o que permite inferir que a crise instalada na consciência da personagem tem também algo a ver com o seu próprio relacionamento com o mundo humano ao seu redor. Quando Carlos procura um cão para sua última companhia, é porque sabe que as suas relações com ele estão absolutamente isentas de qualquer deterioração ou comprometimento. Quando acompanhado pelo cão penetra em contemplação meditativa na natureza primitiva de que o próprio animal faz parte, é porque sabe que ali encontrará a realidade da liberdade e do espírito, longe do olhar hostil de toda a gente (...), sem o muro de uma presença. Carlos Bruno encontrava portanto na primitiva pureza dos elementos naturais, o valor que desesperadamente procurou entre as mais complexas criações do gênero humano.


Os motivos do cão e da natureza, não são, em Mudança, merante ocasionais ou gratuitos, considerada a importância simbólica que os caracteriza. Pela freqüência com que são utilizados não só no decorrer do romance como ao longo do conjunto da obra de Vergílio Ferreira, estes símbolos podem mesmo ser considerados como dois dos seus mais importantes leitmotiv, embora, como é evidente,apresentem de romance para romance, no contexto da trama ficcional, diferentes significados. Assim, o cão, que o escritor faz presente em romances como Mudança, Aparição, Alegria Breve e Nítido Nulo, nem sempre têm idêntico valor simbólico. Em Mudança, ele representa uma relação desinteressada, posta a salvo da crise e isenta de comprometimento. Já em Alegria Breve ou Nítido Nulo a sua significação é totalmente diversa, representando, no primeiro romance, aquilo que o ser humano tem de primário, de bruto, de instintivamente animal, de deformação da imagem do homem e sua humana condição, enquanto no segundo, a presença do cão e sua função romanesca, simboliza, principalmente, a liberdade perdida pelo homem (o protagonista está preso numa cadeia à espera da execução) mas que o animal, na sua inconsciência, sendo movido apenas pelo instinto, não tem condições de usufruir. Estas, diga-se de passagem e a bem da verdade, são interpretações defendidas por Nelly Novaes Coelho, com as quais o ensaio concorda. Interessante observar, como ponto comum aos quatro romances mencionados, que os cães que neles figuram morrem de forma violenta no decorrer da ação.


Em Mudança, o perdigueiro morre atropelado; em Aparição, o animal é morto de forma piedosa porque definhava aos poucos consumido por uma doença incurável; o cão de Alegria Breve é morto pelo dono quando ambos eram os únicos seres vivos de uma aldeia em que todos os habitantes já haviam morrido; em Nítido Nulo, numa cena absurda capaz de lembrar imagens kafkianas, o cão é eliminado a tiros de pistola, por um militar, em plena praia, sob o sol brilhante. Evidentemente, o conteúdo simbólico vivenciado ou representado pelo cão nos romances de Vergílio Ferreira tem relaçào direta com o homem, quando não integra, como no caso de Alegria Breve, a própria condição humana em seus aspectos negativos. A morte dos animais no decorrer da ação dos romances, signfica, portanto, um corte do significado simbólico de cada um em sua relação com o homem. Assim, por exemplo, no caso especifíco de Mudança, a morte do perdigueiro evidencia a impossibilidade que se impõe ao homem de manter, duradouramente, um relacionamento puro, desinteressado, isento da corrosão das crises e dos comprometimentos de todas as espécies.


A recorrência ao cão como representação simbólica nos romances de Vergílio Ferreira, particularmente em Mudança, é mais um traço nas semelhanças que se podem constatar entre o escritor português e Albert Camus. Como Carlos Bruno tomou o perdigueiro por última companhia, o velho Salamano, personagem de O Estrangeiro, depois que a mulher morrera, porque se sentia muito só, pedira a um colega de trabalho que lhe desse um cão, vivendo muitos anos sozinho com o animal num pequeno quarto, até que repentinamente ele desapareceu, deixando o velho perplexo e agitado na angústia da solidão.
Em Vergílio Ferreira o motivo da natureza, relacionado também com a solidão do homem, identifica-se ou está mesmo contido nas freqüentes referências que o escritor faz à montanha ao longo de toda a sua obra, elemento dos mais importantes na simbologia do escritor, que, inclusive, estrapola a linguagem romanesca e emigra para a ensaística, encontrando-se, por exempo, num ensai o tão importante quanto Invocação ao Meu Corpo. No contexto da literatura portuguesa deste século, a ênfase dada pelo romancista à montanha como motivo ficcional de extrema recorrência presente ao longo de toda a sua obra, o que o transforma num dos seus mais característicos leitmotiv, permitiria, num paralelo empiricamente traçado, relacionar Vergílio Ferreira ao seu contemporâneo Miguel Torga, tematicamente preso ao mundo semibárbaro das terras altas de Trás-os-Montes e autor de dois livros de títulos significativos: Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha. Entretanto, uma análise mais cuidadosa imediatamente evidencia as linhagens distintas dos dois escritores. Em Vergílio Ferreira, a montanha não é exatamente um universo geográfico ou social, e sim um espaço essencialmente mítico, de função catártica ou ascética, em que o homem reencontra as suas orignes naturais e onde lhe é possível reeducar o seu espírito, despindo-o dos preconceitos que lhe foram impostos pela existência. Neste intuito pedagógico, a montanha em Vergílio Ferreira estaria bem mais próxima do sentido mágico da montanha de Thomas Mann, que exerce sobre hans Castorp o seu poder de purgaçào e aperfeiçoamento espiritual. Lugar de meditaçào, símbolo da pureza inicial das coisas, a visão da montanha é colocada às vezes no romance como algo tocado de sagrado ou como uma força maior do universo, que consegue aplacar a sufocada angústia de Carlos Bruno. Aliada à montanha, a neve, outro elemento da natureza cuja brancura sugere também uma pureza mística ou quase, assume, próximo ao final de Mudança, uma grande importância simbólica, porque é ela que consegue, fugidiamente, devolver a Bruno a breve alegria de uma felicidade passageira:


“Do céu opaco, uma larga nuvem de flocos brancos caía mansamente como poeirada de papéis rasgados. Bruno cheirara a neve de véspera, no ar gelado e quedo, no céu cor de pombo. E agora que a via através da janela, não trocaria por nada aquela hora de sossego. Subiu aos vidros da varanda e escutou, de coração represo, o silêncio intrínseco do mundo. Já ao largo de toda a encosta ia um vasto mar branco com ondas nas curvas lentas dos cerros, barcos negros de casas, mastros de ramos de árvores. (...) Silêncio profundo, silêncio cósmico, de astros rolando pelo espaço vazio. Bruno desceu à sala, carregou o fogão e fechou os olhos, abandonado e feliz. Sem cessar, do peso das nuves desprendiam-se mechas de neve que arrasavam, em planura, a última arrogância das coisas. (...) Bruno, ao rumor da tiragem do fogão, olhando o poisar da neve, mergulhava dentro de si, procurando o sabor, o cheiro real do mistéirio fluido daquela hora, tantas vezes evocada saudosamente. Quase tocava esse mistério, quase o retinha, cuidadosamente, na concha das mãos. Mas não chegava nunca a vê-lo, a tocá-lo, de leve que fosse. Era um fumo sem cor, adivinhado, mas terrivelmente presente. Era um doce eflúvio a envolvê-lo todo, assim mudo, petrificado. Débil lembrança de um momento nunca abarcado pelos sentidos, de uma verdade só memória, sem tempo. Por isso, via melhor a neve, a longa desolação do mundo branco, fechando os olhos, fechando-se todo, e imaginando. Talvez que para quela hora de pureza só fosse própria uma inocência de criança, que nunca se conhece senão depois de se ser criança”.


(**RIO DE JANEIRO**, 27 DE ABRIL DE 2018)


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