#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE II# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



É até uma coisa bastante vulgar, mas como é possível alguém criticar radicalmente o outro, sem lhe conhecer? Dostoievski e Nietzsche... O primeiro não conhecia nada do segundo... Como pode haver algo assim?.


O desejo de ressurreição é uma idéia divina... Não seria por isso que Dostoiévski critica Nietzsche?


A resposta ao nosso questionamenta fora a idéia “divina”, o desejo de redenção ser esse na obra dostoievskiana, a partir dessa “idéia divina” do cristianismo, de Cristo, é que se torna possível compreender Dostoievski, compreender o desejo de ressurreição e, em contrapartida, a crítica ferrenha, o ácido crítico do pensamento nietzscheano ao cristianismo, à Igreja.
Falávamos acerca do caminho de muitas de suas personagens, tais como: Raskolnikov, Ivan Karamazov, Svidrigailov, Stavroguine, Kirilov, Versilov, Dmitri e Ivan Karamavov. O caminho da negação e da revolta, do orgulho da razão e da inteligência, da liberdade sem freios, da exaltação do indivíduo e do exercício da vontade de poder. Tais personagens vivem o desejo de “poder”, visam o poder, custe o que custar. Contudo, a “idéia divina” que é o “desejo de ressurreição” transforma essa “vontade de poder” em “desejo de ressurreição”, um gesto de dentro para fora. Aliocha é a representação dessa idéia na “historicidade de sua vida”, após o convívio com o Stáriets, mesmo que por um curto espaço de tempo, veio a amadurecer e desenvolver: a dialética da “idéia divina”, o desejo de redenção, e da “vontade de poder”.


Essa “idéia divina”, cuja real-ização se processa na “teia de aranha”, na “dialética interior” existente na obra dostoiévskiana e a geração das várias dialéticas - a multiplicidade das idéias dão origem às dialéticas -, veremos mais tarde ao longo do ensaio; tal análise, interpretação, demonstração, vistas à luz de Mikhail Bakhtin, que nascem em seu pensamento, isto é, todas desejam realizar-se, realizando a humanidade, realizando os homens, na Ressurreição, a professada e vivida por Cristo. As dialéticas visam a evangelização, a cristianização.


Desde o início, a “imagem-idéia” foi estabelecida como alicerce de nosso ensaio, mas só recentemente, após esses anos todos de entrega à sua escritura, é que intuímos esse confronto. Tal in-formação é elemento preponderante para especulações, in-vestigações contrárias ao “espírito” da obra não sejam realizadas, adulterando as idéias. As várias dialéticas no pensamento dostoiévskiano só foram percebidas recentemente. Toda a escritura culminou nessa imagem, são os resultados, a presença de paradoxos e ambigüidades.
Assim é que Dostoievski poderia contrapor todo o pensamento de Nietzsche, sem haver lido qualquer de suas obras, a “idéia divina” como possibilidade, como desejo da comunhão homem-Deus e Deus-homem. Enquanto que Nietzsche deseja a deificação do homem, mas separada do Homem-Deus, a conseqüência da crítica ao cristianismo, ao clero, sobretudo a São Paulo, Dostoievski à luz da Palavra de Deus, a Bíblia, deseja a koinonia, a comunhão, isto é, do homem-Deus e do Deus-homem, à luz da “idéia divina” da Ressurreição, idéia que Dostoievski pôde desenvolver no corpo, na alma, no espírito.


A ressurreição de que se trata na vitória de Jesus sobre a morte (à diferença das ressurreições de mortos de que se fala no Antigo e no Novo Testamento) significa a salvação definitiva perante Deus da existência humana concreta, salvação que é operada por Deus. Significa a permanente validade real da história humana que nem se prolonga no vazio nem perece.


Se a ressurreição de Jesus deve ser a vitória escatológica da graça de Deus no mundo, não pode vir a ser pensada sem de fato se ter alcançado (ainda que livremente) a fé nessa ressurreição, na qual somente a natureza peculiar da ressurreição chega à sua realização plena e consumada. Se a fé vale como nossa esperança em nossa “ressurreição”, então essa fé crê nesta ressurreição primeiramente acerca do próprio Jesus e não substitui a ressurreição de Jesus por uma fé à qual já não se possa atribuir nenhum “conteúdo” (pois que, em última análise, a fides qua e a fides quae, o ato de fé e o conteúdo da fé, podem estar dados juntos de forma inseparável; toda fides qua, enquanto liberdade absoluta do sujeito procedente de Deus e em orientação para ele, é já fides quae na própria ressurreição, pelo menos implicitamente. A fé em Cristo e na imortalidade da alma, vistas à luz da Bíblia, para Dostoievski, a entrega ao Amor de Cristo, só chegam à real-ização plena e consumada na entrega ao sofrimento, à dor em busca da redenção. O desejo de amor só vive de entrega e doações. O desejo de amor é o desejo de redenção, se o primeiro se fundamenta nas Palavras de Cristo, o desejo de ressurreição na fé, na esperança.


Como Dostoievski é bastante lido, mesmo de quem não tem conhecimentos de literatura, de teologia, filosofia, pessoas comuns, é sobremodo corriqueiro ouvirmos dizer do “pessimismo”, “niilismo” na obra dostoiévskiana. Se ele foi um dos críticos severos a isto, isto teria de estar em sua obra. Não podem conceber que este pessimismo, niilismo, que assolaram a Europa, a Rússia no tempo de Dostoievski, é justamente a luz deste encontro primacial do homem-Deus e do Deus-homem, que encontraremos o desejo de redenção.


A busca incessante de Deus consumiu toda a vida de Dostoievski e constitui a essência de seu pensamento. Curvado para dentro de si mesmo, pelejando por acreditar naquilo de que duvidava, ele nunca teve paz de espírito. Foi sempre um atormentado e só no fim da existência, quando se aproximou das fronteiras da santidade, pode gozar de relativa serenidade. A vida dele foi caminho plantado de cruzes.


Dostoievski nunca duvida que o dom da liberdade foi concedido ao boneco de barro na hora exata em que o Criador o expulsou do paraíso Terrestre. E foi-lhe dado, nesse mesmo instante, conjuntamente, o peso da responsabilidade dos seus atos. Portanto, livre e responsável, é como o romancista vê o homem saído do Éden. Assim, jamais lhe desapareceu do espírito a visão do Senhor de dedo em riste, apontando para Adão e Eva, dizendo-lhes: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto” e “Parirás com dor” . Igualmente, jamais esqueceria que provar o fruto da Árvore do Bem e do Mal foi o primeiro dos inumeráveis caprichos do ser humano. Sim, porque o homem, no conceito de Dostoievski, é um ente essencialmente caprichoso.


Dostoievski viveu, teve esta experiência do “capricho”. Assim como Nastássia Filipovna, O idiota, fugia ao príncipe Michkin e a Rogojine, a amante de Dostoievski, Paulina Suslova, também lhe recusava carinhos e cuidados, castigando-o com indiferença e sadismo. Alguns dos biógrafos do romancista, fiados nas confissões de Paulina, asseveram que esta procurou nele a tranqüilidade de um espírito superior, irritando-se por ter encontrado apenas um homem esfomeado dos prazeres do seu corpo. Há sérias dúvidas quanto à veracidade de suas asserções. Não parece que Paulina Suslova tenha sofrido de crises de misticismo, nem tampouco de descontentamentos da inteligência. Pelo menos, em nenhuma de suas figuras femininas, o romancista ressuscitou complexos semelhantes. O certo é que tudo nela era capricho e desdém pelos homens. Divertia-se apenas em vê-los rastejar a seus pés, em busca de sorrisos e carinhos. O ardor dos seus cortejadores deixava-a fria e enojada.


É indispensável que os homens sofram amargas desilusões e as decepções dos amores por objetos indignos e carnais. A graça que Deus lhes concede na caminhada da vida não é uma graça imposta, mas uma graça caritativa e consoladora; e toda vez que o mundo cristão tenta transformar a virtude de tal graça em um instrumento de poder e coação, ele se inclina para o anticristianismo, para as veredas do Anticristo.


(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)


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