#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE VI# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



Vírginio Santa Rosa considera Dostoievski um cristão crucificado. A dor, o sofrimento, a culpa, os egoísmos, egocentrismos, o pecado original são vividos por Dostoievski, e em sua obra ele os representa. Consideramos essa obra importante, para quem está iniciando, apesar de suas deficiências de interpretação e análise, mas há passagens que merecem crédito.


Graf Dürckheim anota que um certo número de pessoas não chega a questionar-se a propósito da dor e do sofrimento. Essa inocência, essa não-interpretação dos males que nos acontecem não será a atitude própria dos simples, de certos sábios e de todos os animais que, cotidianamente, vivem sua dor sem transformá-la em sofrimento?


Quem não se questiona sobre a interpretação racional da existência aceita o sofrimento e a morte como inerentes à vida. Tal pessoa conserva seus vínculos com a natureza e com outros homens, assim como com a realidade supraterrestre. Nesta, a saúde e o Todo que cura subsistem como um misterioso ´interior, cuja presença é sentida tanto no ´exterior´da vida espaço-temporal, quanto interiormente naquele que sofre. Continuando a viver no seio do Todo que abarca a vida e a morte, ele aceita o sofrimento como desejado pelo destino e por Deus .


O sofrimento experimentado no caminho pode ser a ocasião não só de crescer em coragem e tornar-se mais consciente, mas também de dar testemunho em um corpo ou em um psiquismo dolorosos da liberdade de um Espírito para além do sofrimento. Este pode ser a ocasião de manifestar um amor maior, cujas qualidades humanas e supra-humanas são redentoras. Se se trata de aceitá-lo quando não se pode fazer mais nada para curá-lo, trata-se igualmente de não conservá-lo para si; ora, o mais seguro meio de não alimentá-lo, de não conservá-lo em si, é oferecê-lo. “Oferecê-lo pelo bem estar de todos os seres vivos”, tal é a atitude dos bodhsativas que aceitam recolher todas as nocividades e negatividades do mundo para transformá-las, no cadinho de um coração amante, com flamas de Despertar. “Enquanto todo o sofrimento e a mesquinhez dos seres amadurecem em mim, que todas as minhas alegrias e virtude possam amadurecer neles” .


Aqui, estamos longe de uma atitude pusilânime diante do sofrimento ou das impurezas do mundo: ao invés de termos medo de enfrentar tais situações, devemos amá-las, evidentemente, não para nos comprazermos nelas, mas para transformá-las; com efeito, não poderá haver felcidade total em mim enquanto único ser estiver sofrendo.


Para “ser responsável de tudo e por todos”, como afirmava Dostoievski, é necessário, antes de tudo colocar um pouco de paz e felicidade no lugar do universo que, em particular, nos foi confiado, ou seja, nosso próprio coração, nosso espírito e nosso corpo. Se devemos amar o outro como a nós mesmos, também devemos amar a nós mesmo como um outro. Existe um dever de sermos felizes, para o bem de todos. Um homem feliz não acrescentará sofrimento ao sofrimento; além disso, se sua felicidade consiste em amar, ele acabará tendo uma alegria ainda maior em assumir o sofrimento de outrem. Eis um paradoxo que somente será compreendido por aqueles que tiverem a ousadia de vivê-lo.


O desejo de redenção é o “templo da sabedoria”, de absolvição dos pecados, da liberdade, de entrega ao outro, de criação e recriação em busca da koinonia, da comunhão do desejo e da ação, da existência de Deus e da imortalidade da alma. A felicidade é o fim do homem, e aquele que tem sido completamente feliz tem o direito de dizer a si mesmo: “Cumpri a lei divina nesta terra”.


Onde está a felicidade? Quem pode dizer-se feliz? Cristo nos ensina que o “amor só vive de entregas e doações”, toda a vida de Cristo é a demonstração viva e divina desta realidade, do Amor de Deus, Sua entrega e doação aos homens, à sua criatura.


O anúncio da redenção, noutras palavras, da “salvação”, reveste a forma de narrativa histórica. Visto que se trata primeiramente de uma “proclamação” da salvação, não se podem conceber os Evangelhos como uma vida de Jesus; isso ficou provado pelo fracasso da tentativa liberal. Por outro lado, essa proclamação reveste a forma de uma exposição histórica (isso também caracteriza os Evangelhos), pois a salvação anunciada é evento ligado a uma existência terrestre e histórica.


Descrever o itinerário desta existência é, ao mesmo tempo, proclamar o acontecimento da salvação. Marcos foi o primeiro a expor assim a Boa Nova no quadro esquematizado da existência de Jesus. Não o fez por simples amor do passado, mas por respeito à realidade. Não é a qualquer Cristo glorioso que nós aderimos pela fé, mas àquele que foi glorificado por haver aceite a kênose de sua vida terrestre, humilde e sofredora.


Em Marcos, esse movimento da existência de Jesus, centrado na paixão-ressurreição, é um perfil da vida de Jesus, com uma única viagem a Jerusalém antes da paixão, e num quadro quaternário que só registra as grandes articulações de sua vida. Entretanto, ele não apenas adota a forma narrativa de acontecimentos descritos no passado, no presente histórico, mas distingue claramente os planos temporais. Descreve para a Igreja presente a história da salvação em seu começo (pregação do Batista, batismo e pregação de Jesus), seu desenrolar na Galiléia e nas regiões vizinhas, e seu fim trágico (narrativa da paixão seguindo seqüência cronológica mais rigorosa dos acontecimentos). Além disso, a atividade do Cristo, como Filho do homem, abrange o futuro, o presente e o passado. O Filho do Homem que foi condenado diante do Sinédrio, é aquele que, desde já, tem o poder de perdoar os pecados (M 2,10), e é também aquele que virá um dia sobre as nuvens do céu. Passado, presente, futuro caminham juntos, mas permanecem distintos.


Em Lucas, essa perspectiva histórica é ainda mais pronunciada, porque a história de Jesus recebe um prolongamento anterior, com os relatos da infância e outro posterior, com a história dos apóstolos. A história da salvação é caracterizada por uma continuidade historicamente constatável e por um processo de desenvolvimento no qual Cristo ocupa o centro. Jesus, assim como a Igreja, percorre etapas. Lucas torna-se assim o primeiro historiador do cristianismo, esforçando por retratar e fixar os grandes períodos da história da salvação.


Os Evangelhos são ao mesmo tempo narrativa e confissão: narrativa sobre Jesus e testemunho da comunidade que crê nele. Muito mais, narrativa e testemunho acham-se tão intimamente fundidos que a narrativa é confissão e o testemunho da fé narração ou recitativo sobre Jesus, exatamente como nos “Credos” do Antigo Testamento que são o relato sucinto dos atos salvíficos de Deus (Dt 26, 5-9; 6. 20-24; Js 24,2,13).


É a consciência – que se estabeleceu nos anos de prisão da Sibéria, em relação com os prisioneiros, da leitura contínua da Bíblia – de vida como desejo de ressurreição, como perpétua superação do sofrimento e da dor, conservando-os e transcendendo, re-colhendo-os e a-colhendo, que nos dá a chave para a compreensão mais profunda do cristianismo na literatura de Dostoievski, este foi representante lídimo da não-aceitação do “niilismo” na Rússia, combatia-o em todos os níveis; os ataques radicais nietzschianos ao cristianismo, refutação à moral do cristianismo. Dostoievski proclamava a evangelização como “idéia divina”, não apenas como “meio”, para nos real-izar espiritualmente, a Palavra de Deus a salvação.


Conta-se que, nos tempos antigos do cristianismo, um noviço depois de haver deixado de cumprir um dever prescrito pelo seu stáriets, abandonou o mosteiro para dirigir-se a outro país, da Síria ao Egito. Ali, praticou atos sublimes e foi por fim julgado digno de sofrer o martírio pela fé. Já a Igreja ia enterrá-lo, reverenciando-o como um santo, quando o diácono proferiu: “Que os catecúmenos saiam”, o caixão que continha o corpo do mártir foi arrancado de seu lugar e projetado fora do templo três vezes em seguida. Soube-se por fim que aquele santo mártir havia infringido a obediência e abandonado o seu stáriets e que, por conseqüência, não podia ser perdoado sem o consentimento dêste último, malgrado sua vida sublime. Mas quando o stáriets, chamado, o desligou da obediência, pôde-se enterra-lo sem dificuldade. Sem dúvida, não passa isso de uma antiga lenda...


Numa literatura do desejo de redenção, ressurreição, todos os valores serão vistos à luz da experiência e vivência, tomando a alma humana como “eidos”, isto é, as dores e sofrimentos permeando a vida dos personagens, sentimentos de raiva, ódio, angústia, medo, dos conflitos e dramas os mais pujantes e dolorosos.


É o tema cristão da igualdade ontológica de todas as almas diante de Deus que se prolonga no ideário dos indivíduos naturais e iguais do primeiro Discurso, aqueles que eram naturalmente bons, mas foram corrompidos pelas instituições, que introduziram a desigualdade, o que a integração no todo social autêntico virá ao menos corrigir.


Aliocha, Os irmãos Karamázovi, compreendia perfeitamente que para a alma resignada do simples povo russo, vergado sob o trabalho e o pesar, mas sobretudo sob a injustiça e o pecado contínuos – o seu e o do mundo – não há maior necessidade e consolo do que encontrar um santuário ou um santo, cair de joelhos, adorá-lo.


Se o pecado, a mentira, a tentação são nossa partilha, há no entanto em alguma parte do mundo um ser santo e sublime; possui a verdade, conhece-a; portanto, ela descerá um dia até nós e reinará sobre a terra inteira, como foi prometido.


(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE ABRIL DE 2018)


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