#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO



VI PARTE...


Kafka comenta que “a relação entre mim e a literatura é similar... exceto que a minha literatura não é tão doce quanto a voz daquele monge”. Isto significa, conforme adverte a Felice uma vez mais , em 22 de agosto de 1913, que, como sua esposa, ela levaria “uma vida monástica ao lado de um homem pirracento, infeliz, calado, descontente e doentio”, “acorrentado à invisível literatura por cadeias invisíveis”.


Kafka afirma que é só literatura e o repete com tal freqüência e determinação, em prosa tão excelente, que jamais tal coisa poderia ser dita por quem não se acredita realmente no que afirma. Em termos de Vergílio Ferreira, o personagem acredita-se realmente um indivíduo, uma pessoa, um homem, e não poderia ser um personagem se não acreditasse ser um-com-Vergílio Ferreira. Há uma inversão, uma imagem às avessas, onde nela vai se estabelecendo a consciência-estética-ética, que é a Busca de Vergílio Ferreira em toda a sua obra.
É como um homem que come sem fome ou sem necessidade, de forma que os alimentos não lhe vão fortalecer o organismo, não lhe vão restabelecer as energias perdidas, ou como a serpente que engoliu um coelho inteiro e que, depois, se deixa ficar estirada ao sol, evitando todo o movimento que não seja absolutamente necessário. Em resumo: a cultura significa um processo de vida, natural, original, criador e genuíno, e não um conjunto de conhecimentos históricos. Lembra-me Thich Nhat Hahn, quando ele diz que o entendimento não é um acúmulo de conhecimento, e sim a harmonia da mente e os acontecimentos do dia-a-dia, a mente cotidiana. A vida tem de dominar o conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar a vida. Em Considerações Intempestivas, Nietzsche assim o diz: “A vida é o mais alto poder dominador, porque o conhecimento que aniquilasse a vida aniquilar-se-ia também a si. O conhecimento pressupõe a vida”.


Os Alemães têm conhecimento – muito conhecimento – do passado e da história, mas o conteúdo desse conhecimento não está unificado sob uma forma vital, permanecendo apenas na sua memória e no seu cérebro. Têm conhecimentos sobre cultura, mas não são cultos porque não vivem a cultura: tais conhecimentos são apenas meras ruínas e relíquias históricas, e assim permanecem, porque não auxiliam a vida.


Talvez se pudesse dizer mesmo o contrário: que eram ansiosamente aguardados por uma enorme massa de leitores, famintos de um novo realismo que falasse na verdade de coisas que aconteciam, mas das quais ninguém se preocupava em tomar consciência. Uma nova verdade (velha, mas revelada e reveladora de maneira diferente e pela primeira vez) solicitava as atenções de uma mentalidade nascida da II Guerra Mundial, que, caminhando para o seu acaso nos anos 44/45, principiava a revelar a face verdadeira de todas as guerras, sintetizada pela palavra crise.


Balzac queria ser “o historiador de sua época”. Seu tempo é um tempo histórico, rigorosamente marcado por claras alusões cronológicas. Em sua obra, tudo faz parte de um sistema. “Não basta ser um homem, é preciso ser um sistema”, chegou ele a escrever.


O conceito bergsoniano de tempo é submetido a uma nova interpretação, a uma intensificação e a um desvio. O acento agora cai sobre a simultaneidade dos conteúdos da consciência, a imanência do passado e presente, o constante fluir simultâneo dos diferentes períodos de tempo, a fluidez amorfa da experiência interior, a falta de limites da torrente do tempo por que a alma é transportada, a relatividade do espaço e do tempo, o que vale dizer, a impossibilidade de diferenciar e definir o meio no qual a mente se move.


A liberdade encontrar-se-ia no eu profundo, no eu que quer, que se apaixona, que amadurece, que evolui, que cresce sem cessar, que é puro dinamismo e constitui a verdadeira personalidade do indivíduo. Bergson reconhece, porém, que a maioria dos homens vive apenas no eu de superfície, atravessando a existência sem jamais experimentar a verdadeira liberdade. Essa liberdade é que transparece na ação criadora dos reformadores, dos santos, dos místicos, que rompem as barreiras da moral e da religião fechadas, para criarem, além dos preceitos cristalizados e dos comportamentos rotineiros, os horizontes abertos de uma religiosidade e de uma moral que brotam das vivências profundas do eu.


Nessa nova concepção do tempo praticamente todos os fios da contextura que forma a matéria da arte moderna convergem; o abandono de um enredo básico, a eliminação do herói, a renúncia à Psicologia, o “método automático de escrita”, e, sobretudo, a técnica de montagem e a fusão de formas temporais e espaciais do filme. O novo conceito de tempo, cujo elemento básico é a simultaneidade e cuja natureza consiste na espacialização do elemento temporal, não se expressa de um modo tão marcante em nenhum outro gênero como nessa arte jovem, que data do mesmo período que a filosofia do tempo de Bergson.


O tempo é a forma humana de se ser, a condição que tudo em nós condiciona, o fluido em que o todo do homem mergulha e o homem todo se unifica. Ponte de ligação de tudo o que ao homem acontece, sem ele não haveria o acontecido ou a acontecer, plasma inicial que tudo envolve, só por ele existe o único e o separado, que mutuamente se implicam, o antes e depois, o sentido integral da vida que não existe sem o antes e depois. Indizível tessitura de tudo, ele está mesmo não apenas em si, como tempo, mas no espaço como lugar. Para entender esta folha em que escrevo, a cúpula do céu, a vastidão da montanha, o tempo vem ter comigo e acompanha os meus olhos e estabelece um antes e depois no alto e baixo, no vasto, no imenso. Estabelece-o mesmo na qualidade desta folha branca, no negrume do céu, porque o negro e o branco só existem se estiverem sendo branco e negro, se durarem como tais, num breve instante que seja. Fluido misterioso, o seu mistério, porém, mergulha para além de si, porque o próprio tempo só se entende pelo tempo, a duração pela duração, o seu fluir por um tempo anterior que o unifica e explica e todavia não é anterior porque está nele. Assim o que explica se explica por si mesmo como explicador que está dentro do explicado. Mágica irrealidade, ela implica-se no está-la pensando como no estar ela própria sendo, suporte e sangue da nossa condição, da condição do ser que só existe no seu seio, como é necessária a luz para que exista o olhar.


E no entanto, como pode existir a luz se os nossos olhos a não criarem? O tempo é a criação do homem, a forma intrínseca de ir além de si, de ser maior do que é, para ser mesmo o que é, porque para entendermos o que somos, e assim o sermos, é necessário podermos sair dele e pensarmo-lo recortado no amanhã e no ontem.


Após lidar com alguns romances de Vergílio Ferreira, especialmente da fase e ciclo existencialista, por longos anos, e de aplicar a eles diferentes procedimentos de análise, inclusive a psicanalítica, fundamentada em Freud, parece-me, hoje, haver fundado uma interpretação de algum interesse: no campo estético. Em Hegel, a arte da palavra chamada “poesia” torna-se a expressão suprema da Idéia em seu movimento de particularização: “ela (a poesia) abarca a totalidade do espírito humano, o que comporta sua particularização nas mais variadas direções” (Hegel, Esthétique, “La poésie I”). Posta assim em paralelo com a filosofia especulativa, a poesia dela se diferencia, ao mesmo tempo, em virtude da relação que estabelece entre todo e parte: “Certamente, suas obras devem possuir uma unidade concordante, e aquilo que anima o todo deve estar igualmente presente no particular, mas esta presença, em vez de ser marcada e acentuada pela arte, deve permanecer um em-si interior, semelhante à alma que está presente em todos os seus membros, sem lhes dar a aparência de uma existência independente” (ibid). Assim sendo uma expressão – uma exteriorização particularmente – da Idéia, e porque participa da língua, a poesia é uma representação interiorizante que coloca a Idéia o mais perto do Sujeito: “A força da criação poética consiste, pois, em a poesia modelar um conteúdo interiormente, sem recurso a figuras exteriores ou a sucessões de melodias: desse modo, ela transforma a objetividade exterior numa objetividade interior que o espírito exterioriza pela representação, sob a própria forma sob a qual esta objetividade se encontra e deve se encontrar no espírito” (ibid)
As camadas lingüísticas dos romances de Vergílio Ferreira não têm simplesmente a função de um estilo funcionando como adorno, ou mesmo como suporte da história, mas alcançam a dimensão de importante elemento romanesco, capaz de encerrar em si o próprio universo humano que o escritor quis revelar no seu romance:


“Eis como, para além da problemática da obra, que por si só se institui como algo de novo no campo da ficção, o processo “operatório” do estilo faz um romance inteiro, da primeira à última linha”.


Numa nota de pé de página Fernando Mendonça revela que o próprio Vergílio Ferreira concorda com essa perspectiva interpretativa da função do seu estilo:


“Tal ‘estilo’, com efeito, tem acima de tudo uma função operatória e não apenas de ‘suporte’ e muito menos de ‘enfeite’. Assim sempre se me afigurou superficial, a propósito dos escritores “estilistas” – ou ao menos de alguns deles – a afirmação de que escrevem bem.. Porque quem apenas escreve bem – escreve mal...”


Parece portanto suficientemente esclarecido o valor do estilo na construçào dos romances de Vergílio Ferreira. Dentre outros fatores, é também através do tratamento da linguagem que o escritor se separa, como um artista da palavra preocupado com um universo em cujo centro situou a dimensão humana, dos cronistas de um mundo acossado pela necessidade, pela escassez e marcado por uma crueldade de exílio.


É certo que o estilo de Vergílio Ferreira vai definir as suas intenções “operatórias’ principalmente a partir de Cântico Final (1960), mas Mudança e Manhã Submersa, que lhe são anteriores, são já romances vazados numa linguagem destinada a realçar as angústias do estar no mundo. Vale a pena, para exemplicar, transcrever um trecho do romance:


“Ao embalo da invernia, no sossego do fogão, Bruno pendia sobre si como ramo carregado. Tocava-o, no centro, um cansaço de tudo, um morno sonho de olvido. Berta? Raul? A guerra? Pelos infernos, largai-me! Queria Berta submissa e enojava-o a submissão como um visco de lesma. Gostava de quebrar-lhe a dureza e aborrecia-a depois. Mas que amo eu? Que verdade na vida me comove? Era bom estar tudo no seu lugar, mas sem luta, sem discussão, implicitamente. Sim, Raul foi amante dela. Pelo menos, um e outro sentiram-se amantes. Anda uma fúria na vila, a guerra, velhos instintos de ódio, de vingança, liberdade, igualdade, fraternidade, - pelos infernos, largai-me! Queria-se só, com silêncio no coração, um silêncio de ventos largos de montanha. Pensar era acusar-se ou decidir-se a um rumo. Era sentir-se preso. Paz! Fosse embora desgraçado, mas sem o remorso de não ter evitado a desgraça. Tapar os olhos, ir para o fundo, mas sem idéias, como uma pedra”.


É fácil destacar no trecho transcrito expressões de um “estilo existencialista” – se assim se pode qualificar um estilo literário – intencionalmente utilizadas para ressaltar a angustiada lassidão de Carlos Bruno. Tocava-o, no centro, um cansaço de tudo, um morno sonho de olvido (...) enojava-o a submissão como um visco de lesma (...) que verdade na vida me comove”(...) Era bom estar tudo no seu lugar, mas sem luta, sem discussão, implicitamente (...) Pensar era acusar-se ou decidir-se a um rumo (...) Tapar os olhos, ir para o fundo, mas sem idéias, como uma pedra. Estas são algumas das expressões mais flagrantes em que não só a sintaxe, mas a própria palavra em si mesma, como na função poética, age como o núcleo de uma camada simbólica destinada a ressaltar certas áreas de significado, que no texto transcrito é o plano existencial em que se move e situa Carlos Bruno.


A Arte se realiza no domínio da emotividade a cujas portas as razões esperam as ordens de serviço. A função da Arte é exprimir esse mundo imediato da adesão, da liberdade que espontaneamente se manifesta, do que sem margens se é. A obra de arte é a via de acesso a esse mundo em que sejamos nós. O seu artifício só é sentido quando esse mundo não é o nosso e não podemos portanto entrar no jogo que o revela; ou quando, sendo esse mundo o nosso, o artifício nos prende a passagem do espírito até esse mundo.


O “prazer” estético é o irrecusável comprazimento com a nossa verdade profunda, ou simplesmente com a verdade do homem, com o que há de inseparável da sua condição. Sentir “prazer” na Arte, reconhecer nela a expressão da liberdade, reconhecer nela a verdade original, verificar nela a expressão do que profundamente se é, ou, mais rigorosamente, do que é a própria Vida em nós, rever nela a manifestação pura da pessoa que somos para lá do que aparentemente no-la possa dar (porque a Arte pode ser a grande denunciante de nós próprios, não apenas perante os outros, contra quem nos podemos defender, mas perante nós mesmos, contra quem dificilmente teremos defesa) – tudo isso exprime variamente, ou sob vários aspectos uma única e unificada realidade.


O amor de Tristão exalta a sensualidade e simultaneamente a rejeita para o reino das sombras. O absurdo do amor impossível, da negação da carne pelo espírito não é apenas o mito do absoluto da proibição, mas ainda do absoluto da espiritualidade. A recusa da satisfação dos sentidos não visa apenas a adiar para sempre o prazer, a fim de que ele paradoxalmente se não extinga, mas visa ainda cristãmente a recusá-lo. É no interdito que o prazer se agudiza, mas é nele também que esse prazer se nega. Tristão expia o pecado de quem peca e demonstra pelo absurdo que o prazer está no sem-fim de uma efetivação. E foi este absurdo que o nosso tempo re-conheceu.


A arte é a revelação de um mundo primordial. O mais ignora-se. Assim a arte “alistada” é equívoca. A arte não veste farda, mas aceita que possa vesti-la o artista. A água não se veste de ouro e riso, mas o artista sonha que se possa vestir-se de ouro e riso. De qualquer modo, o “prazer” estétito não esvai em si os problemas em que se realiza. O “prazer” estético é o que manifesta a assunção do que na arte se nos revela. Assim esse “prazer” não esgota as nossas relações com a vida, mas apenas lhe exprime o que nela é mais alto e profundo, a verdade absoluta que é a verdade de nós e que por isso assumimos como assumimos quem somos. É porque nenhum homem se pode recusar a si mesmo, que a Arte se não recusa e a verdade que vem nela – e a beleza que vem nela. É porque se não recusa a profunda verdade de nós próprios, que é irrecusável a “perfeição” do que na Arte nos submete. Eis ainda porque a Arte é liberdade e só como liberdade nos atinge, ou seja como expressão de um homem livre que à liberdade de outro homem se propõe. Para o homem, ser livre e ser é uma e a mesma coisa. Assim a Arte lhe fala e o revela em plena autenticidade. Não deliberamos o quem somos, mas somo-lo, e essa é a nossa verdade irredutível. Se a arte nos fala, é porque somos nós a falar. Mas se somos nós a falar, a Arte que nos atinge é ainda nós próprios, é a nossa verdade profunda, exprime a assunção de nós, porque nós não nos podemos recusar a nós próprios, para lá de quanto possamos julgar recusável, para lá dos defeitos, dos crimes, das imperfeições do nosso corpo ou do nosso espírito. A beleza da Arte tem que ver também com isso – porque nenhum homem pode julgar-se imperfeito em autêntica assunção, porque seria absurdo assumir-nos em imperfeição, ou seja, paradoxalmente, sermos nós e não sermos, já que a imperfeição reconhecida vivencialmente como tal exigiria que a repelíssemos, a separássemos de nós – e nós somos inseparáveis de nós próprios.


Há na gênese dos contos e romances de Clarice Lispector do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise, reclama um novo equilíbrio. Que se fará pela recuperação do objeto. Não mais na esfera convencional de algo-que-existe-para-o-eu (nível psicológico), mas na esfera da sua própria e irredutível realidade. O sujeito só “se salva” aceitando o objeto como tal; como a alma que, para todas as religões, deve reconhecer a existência de um Ser que a transcende para beber nas fontes da sua própria existência.
A dimensões sensoriais e perceptíveis em harmonia, atingindo a síntese com a consciência:
“E ali – disse eu à professora-amiga-comadre Nívea Maria Matteocci, a quem este artigo, Uma Taça às Águas da Fonte, faz homenagem – estou a referir-me sobre o fato de haver pessoas que oram com os lábios e ouvimos longínquas as suas palavras. No artigo, mostro que é uma oração, mas sem que os lábios se movam. O dizer que amo uma pessoa, mas desejando a espiritualidade, é sobremaneira indescritível, mas a oração em nome de uma amizade e carinho, o amor que transcende a tudo que somos diz com a mais pura intuição”.
Por isto, logo que a professora-amiga-comadre, esposa do escritor Paulo César Carneiro Lopes, Nívea Maria, leu o artigo que publiquei na Folha de Curvelo, última edição do ano de 1999, chamou atenção que havia gostado muito de meu artigo, intitulado “Uma Taça às Águas da Fonte”, comentando haver reconhecido a presença de Clarice Lispector, no final do artigo, “sem ouvir nada com os lábios” . Respondi-lhe que sim, que havia sido até intencional:
“Tirei esta imagem do romance de Clarice Lispector, Água Viva, por que tenho uma extrema afeição e carinho.
Trata-se de um salto do psicológico para o metafísico, o Ontológico, salto plenamente amadurecido na consciência da narradora:


‘Além do mais a “psicologia” nunca me interessou – escreve Clarice Lispector. O olhar psicológico me impacientava e me impacienta, é um instrumento que só transpassa. Acho que desde a adolescência eu havia saído do estágio do psicológico”.


Abre-se a Paixão Segundo G. H. e lêem-se, em epígrafe, estas palavras de Bernard Berenson:


“ Uma vida completa pode acabar numa identificação tão absoluta com o não eu que não haverá mais um eu para morrer”.


E a obra toda é um romance de educação existencial. Nos livros anteriores Clarice Lispector se abeirava do mundo exterior como quem macera a afetividade e afia a atenção: para colher atmosferas e buscar significações raras, mas ainda numa tentativa de absorver o mundo pelo eu. O monólogo de G. H., entrecortado de apelos a um ser ausente, é o fim dos recursos habituais do romance psicológico. Nele não há propriamente etapas de um drama, pois cada pensamento envolve todo o drama: logo, não há um começo definido no tempo nem um epílogo repousante (nesse sentido é uma obra aberta, como aberta ao passado da memória e ao futuro do desejo é a corrente da consciência). Há um contínuo denso de experiência existencial. E, no plano ontológico, há o encontro de uma consciência, G.H., com um corpo em estado de neutra materialidade, a massa da barata. A paixão (pathos) do ser que pensa é necessariamente sofrimento, na medida em que deve atravessar até o âmago a náusea do contato, assim como Agapé, que é amor de caridade, só se realiza baixando ao humilde, o objeto-abjeto, para assumi-lo e compreendê-lo. Contrariamente a Eros, que se inflama só quando ascende à fruição do que é belo. G. H. ultrapassa a repugnância que vem de um eu demasiado humano; e atinge a comunhão de si mesma com o inseto: então há mais eu e mundo, mas um Ser de que um e outro participam.


Poder-se-ia dizer, como tive oportunidade de ouvir de um leitor acerca de meu artigo supra citado: “O seu estilo é um outro modo de dizer das coisas”. Na concepção deste leitor, como ele mesmo me dissera, quando lhe disse eu que estava falando de dizer das coisas, e não “dizer as coisas” respondeu-me: “Não se é possível dizer as coisas, não é possível haver esta coincidência”. Posso, sim, no dizer das coisas estar dizendo as coisas, é uma questão de con-templação das coisas, o instante em que deixamos a mente livre para as coisas se harmonizarem em nós. Apesar de o psicológico estar num momento de tensão a chuva/brasa de cigarro, a espiritualidade/contingente, o fogo do desejo de expressão de um amor que transcende, que busca a sin-fonia, a linguagem que deve se sintetizar com os sentimentos e emoções, a caminhada no campo, com seus prazeres e infortúnios. O psicólogico está presente, mas busco transcender este sentido, para uma espiritualidade:


“O desejo de amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a consagração, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AfAGAMOS, ao outrem que en-vela e re-vela, não poderá Senhor, alguma vez, desalgemar de mim as mãos rápidas de gestos, deixando-me-ser aos olhos e ouvidos atentos e à minha nítida simplicidade de alma?” (Uma Taça às Águas da Fonte, Folha de Curvelo, 24/12/99, Manoel Ferreira).


(**RIO DE JANEIRO**, 21 DE ABRIL DE 2018)


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