À LUZ DE IAWEH E CRISTO -#ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA N´"AS PALAVRAS" DE SARTRE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE



1.0 - LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - I PARTE


Engajado, para Sartre, significa ser consciente do poder da palavra. Uma obra engajada é, em Que é a Literatura? , a que soube avaliar essa evidência bem conhecida, não somente pelos escritores, mas observadores do coração humano: as palavras têm um poder, são lâminas afiadas, a mão hábil tira o osso da carne de qualquer pescoço.


Desde J. L. Austin, uma concepção performativa da linguagem mantém-se como idéia dominante na filosofia lingüística anglo-saxônica. Austin criticou muitas das abordagens filosóficas da linguagem por considerarem a linguagem fundamentalmente como descritiva – fundamentalmente por sua capacidade de enunciar verdades; e embora ela tenha esta função, não é exclusiva nem sequer, sugeria Austin, principal; supor diferentemente é cometer o que ele chama a Falácia Descritiva.


Sua contribuição mais famosa consiste em haver mostrado que muitas frases filosóficas básicas eram de fato performativas, e não descritivas; quando digo que sei alguma coisa, não estou descrevendo um fato a meu respeito, não estou reportando um feito cognitivo (o que pode despertar questões sobre o que sejam feitos cognitivos) e sim dando minha palavra ao meu interlocutor, como se lhe dissesse que prometo isto e aquilo.


Expressa com menos astúcia, a teoria de Sartre é similar. Mesmo com a descrição, diz ele, estou, afinal de contas, fazendo alguma coisa: é um erro “pensar que a palavra seja uma brisa suave que brinca, ligeira, na superfície das coisas , que as roça sem alterá-las, e que o falante é pura testemunha a resumir numa palavra sua inofensiva contemplação”. Não. “Falar é agir; qualquer coisa que se nomeie não é mais completamente a mesma; perdeu sua inocência”. Pronunciar a palavra “alcoólatra” em presença de um bêbedo, não implica meramente em que aquele indivíduo é assim chamado: “se você nomeia o comportamento de um indivíduo, você revela a ele, que vê a si próprio” .


A descrição não contrasta com a performance lingüística; ela é Ação por revelação. Mesmo que a teoria sartreana tenha aplicação primária ou exclusiva quando os objetos do discurso são humanos e vivos, seria errôneo supor que a função descritiva é invariavelmente a mesma, quer os objetos sejam humanos ou inanimados. De qualquer modo, já que falar é agir, falar discursivamente é ipso facto estar engajado e poder-se-á sempre suscitar a questão de o que alguém pensa estar fazendo quando fala; que aspecto do mundo pretende revelar ao falar dele – a linguagem desvendando o mundo de maneira semelhante à da consciência. E revelar é mudar, mesmo que apenas à medida que tal revelação seja ela própria mudança e, sendo assim, não existe de fato nenhum uso ideal não-poético da linguagem, talvez somente usos ineficientes; e nenhuma descrição é imparcial, nenhum falante é como deus imparcial, posto acima e contra uma realidade exterior que ali está para ser codificada.


Porque recusa todo ponto de vista exterior à obra, Sartre permanece na vivência sociológica-existencial de Flaubert, e a análise de todas as mediações possíveis é importante para produzir, pela própria razão de seus pressupostos epistemológicos, este descentramento do sujeito no qual precisamente se efetua a obra.


Não se pode dizer que a linguagem é aquilo que se fala no sujeito. Porque o próprio lingüista define a linguagem como totalidade pelos seus atos. É preciso que haja um sujeito lingüista para que a lingüística se torne uma ciência, e um sujeito falando para superar as estruturas da linguagem em direção a uma totalidade que seria o discurso do lingüista. Por outras palavras, a subjetividade aparece como a unidade de um empreendimento que remete a si mesma, que é numa certa medida translúcido a ela mesma, e que se define através de sua práxis.


Não é pelo fato de existir uma tal distância que a literatura se reduz ao funcionamento de estruturas lingüísticas que ordenam a “literalidade”, reduzindo o significado ao funcionamento do sistema. Se o modelo lingüístico pode esclarecer, até certo ponto, a eficácia das formas, o positivismo estrutural, à medida que encerra a literatura na própria linguagem, ao dela evacuar a história, não nos parece fornecer alternativa legítima ao humanismo sartreano. A redução do significado a simples desenvolvimento das formas, por mais anti-humanista que essa redução se proclame, não é nada satisfatória, porque nela o significado não é mais que afastamento entre elementos formais, simples eclipse.


Até o silêncio pode ser forma de discurso, de revelação e ação num sentido degradado. O escritor está sempre exposto à pergunta: “Por que falou disto em vez daquilo, e – já que você fala para provocar mudanças – por que deseja modificar isto em vez daquilo?” . Escrever é escolha. Se escrever é, e não pode deixar de ser, estar engajado, a força de um apelo aos escritores para que se engajem perde o propósito, pois já estão comprometidos.


A literatura deve tornar-se uma literatura de idéias, isto é, renunciar a enfrentar a opacidade do ser e apenas traduzi-lo numa transparência racional, equilibrada e mediana. Este isolamento do pensamento é que pode manter a arte ao abrigo das atribulações da vida histórica.


A arte não assimila o ser e o transforma em idéia, ela o esclarece.


É por isso que a obra de arte não se reduz à idéia: em primeiro lugar porque é produção ou reprodução de um ser, isto é, de alguma coisa que nunca se deixa ser inteiramente pensada; em segundo lugar, porque esse ser é totalmente impregnado por uma existência, isto é, por uma liberdade que decide quanto à própria sorte e ao valor do pensamento .


A liberdade do artista não integra o ser num sistema de pensamento, porque é próprio da percepção artística e da transfiguração do mundo em obra a irredutibilidade das coisas ao pensamento. Existe uma incompatibilidade entre a arte e o modo de operar da razão analítica, instrumento privilegiado com o qual a burguesia constrói a sua visão de mundo. A razão analítica demonstra que o homem é um invariante: a natureza humana encontra-se igual e por inteiro em cada indivíduo, quaisquer que sejam as desigualdadades sociais, que a análise reduz a variações combinatórias dos mesmos elementos. .


Em verdade, a arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para uma mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo. A arte revolucionária deve falar a “linguagem do povo”. Brecht escreveu nos anos trinta: “Só existe um aliado contra o barbarismo crescente, são as pessoas que sob ele sofrem. Só delas podemos esperar alguma coisa. Por isso, o escritor deve virar-se para o povo”. E é mais necessário que nunca falar a sua linguagem. Sartre compartilha estes sentimentos: o intelectual deve “recuperar tão depressa quanto possível o lugar que o aguarda entre o povo”.


O que na arte parece distante da práxis da mudança deve ser reconhecido como elemento necessário numa práxis futura de libertação – como a “ciência do belo”, a “ciência da redenção e da realização” .


Sartre faz distinção crucial, realmente profunda, entre ler e escrever. Suponha-se um escritor que esteja num beco sem saída, sem saber o que fazer, como continuar a obra, que aspectos, circunstâncias e situações tratar no enredo, estrutura. Sua situação é muito diferente da do leitor que não sabe o que vem depois. E este aspecto é constante ao longo de todo o domínio da ação – entre protagonistas e testemunhas de atos, entre, por exemplo (Sartre o cita em seu livro sobre as emoções), eu observar-me traçar uma linha e observar outrem fazê-lo sei o que estou fazendo, de uma maneira pela qual não sei o que o outro está fazendo, nem ele sabe o que eu faço .


O escritor faz as palavras, não as lê; a leitura reclama atitude e posição de conhecimento completamente diferentes com relação às palavras. Assim, o escritor não pode escrever para si mesmo. Ele necessita de um leitor, para quem escreva. A literatura exige “o esforço do autor e do leitor [...]. Não existe arte senão para e por outros” .


Concordamos com que ler e escrever são atos livres à medida que esteja em causa referência à obra como efeito comum de ambos. Se eles, num sentido mais amplo e absoluto, são livres e novos. Eis algo que tem de ser fundamentado numa análise mais profunda. Da mesma forma, se é verdade que a obra de arte requer duas liberdades colaterais interligadas para simplesmente existir, não se segue que a liberdade seja o objeto de toda obra escrita, ou de toda arte; nem tampouco se segue, pelo fato de a escrita exigir um veículo e uma superfície, que o objeto do escrever seja a inscrição.


Desde o início, a obra de Sartre caracterizou-se por esforço consciente para combinar, aderir, comungar filosofia e literatura a fim de intensificar os poderes de persuasão, demonstração, práxis das idéias e pensamentos. Não estando aderidas a serviço de transformações e mudanças individuais, sociais e políticas, que sentido teriam? Nenhum.


Hoje em dia, penso que a filosofia é dramática pela própria natureza. Foi-se a época de contemplação da imobilidade das substâncias que são o que são, ou da revelação das leis subjacentes a uma sucessão de fenômenos. A filosofia preocupa-se com o homem – que é ao mesmo tempo um agente e um ator, que cria e representa seu drama enquanto vive as contradições de sua situação, até que se fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se resolvam. Uma peça de teatro (seja ela épica, como as de Brecht, ou dramática) é, atualmente, o veículo mais apropriado para mostrar o homem em ação – isto é, o homem ponto final (negrito de Sartre). É com esse homem que a filosofia deve, de sua perspectiva própria, preocupar-se. Eis por que o teatro é filosófico e a filosofia, dramática .


Diante das exigências da classe verdadeiramente oprimida, as liberdades defendidas pelo escritor aparecem como formais. Estas, o proletariado já possui e vai percebendo que elas servem mais à mistificação do que à emancipação. A questão de fundo, que a princípio nem o proletariado nem o escritor podem perceber, refere-se à relação um tanto obscura que as reivindicações materiais possuem com a exigência universal do fim da exploração do homem pelo homem.


Para que houvesse convergência entre o apelo do escritor à liberdade do outro e as reivindicações especificas da classe oprimida, seria preciso que ambas as partes se desse conta de que a exigência universal de realização da liberdade está, de forma diversa, implicada na defesa da liberdade abstrata, por parte do escritor e na luta pela melhoria material da existência por parte do proletariado. Essa homogeneidade só aparecerá a partir de uma visão adequada da relação entre história concreta e totalidade.


No período histórico que vai do levante de 1848 a 1914, o escritor vive concretamente a sua situação marginal, recusando a ideologia passada e a ideologia presente. Como a defesa da literatura deixou de coincidir com os interesses da burguesia, o escritor tem única bandeira, a defesa da literatura pela literatura, a reivindicação de uma autonomia que formalmente ela já possui.


A literatura, inteiramente absorvida pela descoberta de sua autonomia, torna-se o seu próprio objeto .


Rompe seus antigos limites, experimenta novas técnicas, avança: mas não tem como extrair suas normas estéticas da natureza de um conteúdo que ela não consegue determinar. Caracteriza-se pela recusa da transitividade e exaure-se na negatividade. Aparentemente o escritor rompeu com o único público que poderia ter, a burguesia. Entretanto, embora já não escreva para a burguesia, é ela que o lê. Essa contradição entre as instãncias subjetiva e objetiva passa então a integrar a resposta à questão: para quem escrever? O escritor assume subjetivamente que escreve para si e para o absoluto e de fato objetivamente escreve para a burguesia: é ela que o sustenta e decide quanto à sua glória ou ao seu ostracismo.


(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)


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