#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTRE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA
POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi publicada em livro pela
GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.
CONCLUSÃO
A que conclusão chegaríamos? Em verdade, a conclusão a que se chega a
análise de todo o tema do sujeito, tendo como alicerce o olhar e o outro, visto
à luz da dialética sartreana, não por “progressões”, mas por “torniquetes ”, é
que somos devolvidos, dialeticamente, do ser-que-olha ao ser-visto. Qualquer
que seja a nossa atitude diante do outro, nossa relação se define como
instabilidade. Trata-se sempre do mesmo ideal impossível de captar
simultaneamente a liberdade e a objetividade do outro enquanto esta
objetividade determina o ser-para-outro.
Sartre ainda se detém em um último problema: o ser-com e o nós. “O nós
abrange uma pluralidade de subjetividades que se reconhecem umas às outras como
subjetividades”
Toda a argumentação de Sartre busca como que limitar o nós à consciência
particular; o ser-para-outro precede e fundamenta o ser-com-outro. Com efeito,
Sartre elucida o nós na perspectiva do olhar, isto é, obedecendo às mesmas
coordenadas que explicam o ser-para-outro.
Todas estas experiências deixariam de ter sentido se não significasse
que sou a minha liberdade, a minha busca, saídas das profundezas, constituindo
a pulsação ou o próprio ritmo da minha existência, de me entregar inteiro à
busca não só do sentido da vida, mas a vida mesma, de existir o mais plenamente
possível.
Para isso, tenho de compreender e de me colocar ao serviço desse
compromisso, desta responsabilidade, que é, na clarividente interpretação de
Kierkegaard, tensão e risco – uma fidelidade que se tornará, pelo seu próprio
exercício, não somente a atestação perpétua do meu ser e do seu valor, mas
ainda fidelidade criadora quanto mais eminente é o que ela atesta.
Em Homo Viator, Gabriel Marcela procurou mostrá-lo concretamente,
delineando uma “metafísica da família”. Há, diz ele, um “mistério familiar” que
ultrapassa tudo o que, em termos de puro ter, se entende vulgarmente pela
palavra “família”. Com efeito, não se trata simplesmente de conservar ou de
aumentar um determinado patrimônio material, mas sim de participar num valor,
ou seja, numa hierarquia reconhecida e respeitada, e de participar também numa
presença que é, em mim, a presença de um nós privilegiado, que se manifesta na
comunidade de um lar e de uma paisagem familiar, com tradições e sentimentos
que não podem ser objetivados, mas que são tanto mais profundamente vividos
quanto melhor reproduzirem a fisionomia do próprio amor e corresponderem ao
mais sólido alicerce da esperança.
No segundo movimento da peça teatral Bariona, escrita e encenada por
Sartre, no Stalag XII D, onde serviu na Segunda Guerra Mundial como
meteorologista, um discurso de pastores.
Estamos na montanha, acima de Betsur, onde Paulo, Pedro, Simão e Caifás
recebem a visita do Passante e depois a do Anjo, que vem anunciar-lhes um
nascimento misterioso em Belém. Estamos, em seguida, na praça de Betsur, ao
alvorecer, onde os mesmos, emocionados, quase trêmulos, vêm informar aos
aldeões o que, na montanha, lhes foi anunciado pelo Anjo. Hino à Natureza:
“estalos, trauteios, murmúrios, por toda parte (...) parecia que brotos
desabrochavam em árvores invisíveis, parecia que a natureza tinha escolhido
aqueles planaltos desertos e gelado para dar a si mesma, numa noite de inverno,
a festa magnífica da primavera ” Hino à Esperança, a pura e bela esperança,
suscitada pela Anunciação: “(...) há noites como esta, diz Paulo; parece que
vão parir alguma coisa, de tanto que pesam e depois, afinal, tudo o que sai é
um pouco de vento, pela aurora”. Hino, canto de amor à Infância – a Infância em
si e, depois, a Infância dessa criança, o menino Jesus, que acaba de nascer:
“(...) pronto! Diz o Anjo, ele nasceu! seu espírito infinito e sagrado está
preso em um corpo lambuzado de criança e se espanta de sofrer e ignorar; aí
está, nosso mestre não é nada mais que uma criança...”. Hino, à alegria, enfim,
ao renascimento, à revolução dos astros e do mundo – o texto diz, mui
precisamente, á idade de outro: “moradores do vilarejo e pastores, cantemos e
dancemos pois a idade do outro voltou”. A Natureza... A Infância... A
Esperança... A idade de ouro...
Tudo isto tem valor criador, porque absolutamente nada, propriamente
falando, é dado; é preciso que eu viva este mistério e, em conseqüência, que,
por um esforço constantemente renovado, o faça surgir das condições elementares
em que ele se radica. A família é, portanto, obra minha, fruto da minha
fidelidade e do meu sacrifício. O meu coração deve fazer que ela nasça, todos
os dias, misteriosamente, do fervor do meu coração.
Cá na terra, a esperança é o nosso prêmio; só ela nos pode salvar dos
conflitos das relações intersubjetivas, do feitiço das técnicas
materializantes, afastar-nos da tentação, que persegue o homem carnal, do
suicídio e do desespero; só ela nos pode fazer apreender o sentido e o valor da
aprova (sofrimento e morte), transformando-a, por sua vez, num “existir” mais
rico e mais perfeito.
O próprio obstáculo que se levanta com os conflitos das relações
intersubjetivas, sobre o qual incide a nossa ação e que se opõe à
espiritualidade a que aspiramos, pode constituir uma abertura para o absoluto,
revelando-nos os verdadeiros valores, os únicos que são capazes de corresponder
às nossas mais profundas necessidades e às nossas aspirações morais, éticas,
humanas.
Referindo-nos ainda à peça Bariona, sétimo e último movimento, Baltazar,
um dos reis magos, que, devoto, nada sabendo do drama interior que acaba de se
desenrolar, começa a expor a Bariona os méritos da verdadeira fé, encarna no
pequeno corpo: que nasceu, criança, para todas as crianças do mundo... que a
infância,a de agora em diante, será sagrada e que, em cada criança, a partir do
instante em que nascer, reviverá o Cristo... e haverá alegria para todos... o
homem não mais será forçosamente o ser excedente apontado pelas metafísicas
negras... o mal nada é em si... é o que queremos que seja... enfim, o
pessimismo foi vencido e sempre haverá, no mundo, um ponto qualquer de onde o
mal aparece sob cores risonhas... E Bariona, então, ao invés de agredi-lo ou de
fazê-lo calar-se, em vez de tornar a dizer-lhe que acredita que não haverá
amanhã, que nunca houve e que Jerusalém permanecerá cativa, ouve-o e se derrete
em emoção. Quando se aproximam os aldeões e descobrem, nesse meio tempo, que as
legiões romanas marcham sobre Belém e cercam-na, exclamam: “tinhas razão,
Bariona! Essa criança é maldita! Nosso povo é maldito! Deveríamos tê-lo ouvido
e nunca ter vindo à cidade!” Ele retoma a palavra e, suavemente, com a voz
modificada, fustiga, para espanto geral, os homens de pouca fé que começaram
por traí-lo pelo Messias e que, agora, ao primeiro vento contrário, traem o
Messias. “Continuo chefe de vocês? Sim. Cumprirão minhas ordens cegamente? Sim,
sim. Ouçam, então, o que ordeno. Esperaremos os romanos. Nossos corpos servirão
de muralhas. Morreremos, sim, mas na alegria, em Deus, e para salvar o
Messias”.
Fora do domínio da fé, em que a presença de Deus adquire uma realidade e
intensidade incomparáveis, o ser, seja ele qual for, desde qu43e seja
apreendido interiormente, apresentará sempre ao filósofo o múltiplo mistério da
sua existência, da sua duração, da sua estrutura, da sua adaptação ao resto do
mundo, das suas relações intersubjetivas, da sua finalidade última. Tal
mistério, com aspectos sempre novos é o de uma presença na qual a nossa razão,
juntamente com o nosso coração (e o coração é aqui razão, como pretendia
Pascal) congregam vida e amor – e constitui um apelo à nossa própria presença.
Não há Tu senão para um Eu: qualquer presença é necessariamente um face
a face e como que o canto da amizade.
(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)
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