#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTRE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA



POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi publicada em livro pela GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.


3.0 – O ENCONTRO COM O OUTRO


O ponto essencial a ser esclarecido é que a relação originária entre o Eu e o Outro não é de tipo cognitivo. A existência do Outro não pode ser demonstrada e nem mesmo negada; não é uma probabilidade gnoseológica ou uma hipótese científica, mas antes uma afirmação, uma evidência.


Se o Outro é essencialmente presença (se bem que negativa”, então o modo ou a função através da qual o sujeito entrará em relação com ele e o olhar. Toda a trama inicial das relações intersubjetivas será analisada por Sartre (segundo uma inspiração claramente fenomenológica que elimina ou põe à margem outras e mais importantes formas de contato) com base nas relações visuais entre o Eu e o Outro e nas conseqüências existenciais.


Aos olhos do sujeito, o Outro começa por surgir como mero “objeto”. Do mesmo modo como age perante as “coisas” mais inertes e opacas do em-si, a consciência distancia-se do Outro, reduzindo-os aos seus aspectos mais coisais, assim se sentindo transcendente (embora solitária) dominadora daquilo que tem diante de si.


A primeira crise nesta relação tem lugar quando a consciência se apercebe de que esta “coisa” tem um relacionamento próprio com as outras coisas propriamente ditas, manejando-as, movimentando-as, etc.


A pluralidade de consciências é um “escândalo”, o “conflito”, uma condição ontológica primária e insuperável. “O conflito é o significado original do ser-para-outros” , e a unidade com o Outro é radicalmente impossível. A relação se concebe na estrutura formal de reciprocidade, entendida como simetria, obliterando a dimensão de uma gênese sócio-histórica real. “Procuro escravizar o Outro, o Outro procura escravizar-me”. Apenas um dos lados do conflito é bem sucedido na escravização do outro e, ainda assim, não em virtude de alguma reciprocidade ontológica abstrata, mas porque, como um fato da “existência bruta”, ele obtém historicamente o domínio das condições de trabalho e isso destrói até mesmo a aparência da reciprocidade formal, efetivando a estrutura da dominação não como um imperativo ontológico, mas como um conjunto de relações sociais reais, historicamente persistente, e assim, pelo menos em princípio, também historicamente superável.


“Meu projeto de recuperar-me é fundamentalmente um projeto de absorver o Outro”, mas a estrutura formal de reciprocidade assegura que o projeto falhe e se reproduza perpetuamente como irrealizável, negando assim, a priori, toda a possibilidade de escapar do círculo dignificado ontologicamente.


A idéia de uma relação dialética com o Outro é categoricamente rejeitada em favor da circularidade existencial, estipulando que “jamais podemos sair do círculo”. O problema da extensão da dialética se concentra em dois pontos: a dialética na História e a dialética na natureza. Quando se trata de saber se existe uma dialética da natureza, a questão torna-se sobremodo controvertida, e se há autores que afirmam de um modo absoluto tal dialeticidade, outros negam até mesmo o sentido do problema, como é o caso de um Kojéve. O sucesso da dialética em alguns setores científicos desperta o otimismo unânime dos marxistas, como também a simpatia reservada de um Gurvitch, ainda as reticências de Sartre.


Num debate sobre a dialética, realizado com diversos marxistas e posteriormente publicado sob o título de Marxismo e Existencialismo, Sartre afirmara: “O homem é um ser dialético no meio de uma natureza em exterioridade”.


Afirmar que a natureza é exterior a si só se entende a partir de um conceito, digamos, unívoco de interioridade: a interioridade como sinônimo estrito de consciência; dizer que a natureza é exterior a si própria redunda no mesmo que dizer que ela não tem consciência, e aqui também o argumento permanece negativo.


Na Crítica da razão dialética, Sartre afirma:


No momento em que a pesquisa marxista assumir a dimensão humana (isto é, o projeto existencial) como o fundamento do Saber antropológico, o existencialismo não terá mais razão de ser: absorvido, excedido e conservado pelo momento totalizante da filosofia, ele cessará de ser uma pesquisa particular para tornar-se o fundamento de toda pesquisa.


Observe-se que o fundamento não reside antes do antropológico; o próprio antropológico se reveste de caráter fundante. A dimensão humana é fundamento, e tudo como que se encolhe aos limites de uma antropologia.
O ser perde vigência de fundamento e põe em xeque o sentido metafísico da participação; dessa maneira, o outro que não o ser é forçado a radicalizar-se enquanto outro e a buscar em si mesmo sua razão de ser; o para-si encontra no nada sua origem e seu fundamento. A problemática da História deve ser explicitada a partir do outro que não o ser, desde a alteridade radical. Em Crítica da razão dialética, Sartre assim afirma: “O lugar de nossa experiência crítica não é outra coisa que a identidade fundamental de uma vida singular e da história humana”. Essa identidade vem a constituir-se através da totalização dialética; a dialética é uma “totalização que nos totaliza”. Neste particular, Sartre assimila a lição de Hegel, embora inverta o seu sentido:


(...) se a minha vida, aprofundando-se, torna-se História, ela deve descobrir-se a si própria no fundo de seu livre desenvolvimento como rigorosa necessidade do processo histórico, para se reencontrar, mais profundamente ainda, como a liberdade desta necessidade e enfim como necessidade da liberdade.


Em sua critica a Hegel, Marx indica claramente o caráter do devir humano, ao mesmo tempo em que reconhece Hegel como precursor no desvendamento da processualidade humana e de sua tendência imanente: “ao apreender o sentido positivo da negação referida a si mesma (ainda que sempre em forma estranhada)”, Hegel apreende o auto-estranhamento, a alienação da essência humana, a desefetivação e desobjetivação do homem, como um ganhar-se a si mesmo, como exteriorização da essência, como objetivação, como efetivação.
Toda a análise na Crítica da razão dialética está situada no nível do Outro que não o Ser, da alteridade, do contrário do ser. Ao invés de desenvolver uma dialética adstrita ao mundo das Idéias, como em Platão e em toda a História da Metafísica, empenha-se em elucidar a dialeticidade do Outro que não o Ser, precisamente desse Outro que, em Platão, termina soçobrado num mundo de sombras.


Partindo da “solidão ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas de identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade absoluta dessa alienação.


Como se poderia escapar do círculo pela solidariedade que se ergue sobre o fundamento de uma condição compartilhada, se a “pura e simples existência” do Outro converte a objetividade em escravidão permanente pela definição da “essência” de toda situação como alienação: como se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a objetividade reificada, se é atribuída à reificação a dignidade ontológica de “solidificação” e “petrificação”, tal como contida no “significado profundo do mito da Medusa” . E como se poderia divisar um fim do desamparo da individualidade isolada mediante uma reciprocidade dialética e uma mediação com outros, se a dialética da reciprocidade é convertida em uma circularidade autofalida e a mediação é a priori condenada como o domínio do Outro em meu próprio ser, depois de ter eu caído miticamente pelo “vácuo absoluto” na objetividade-alienação-petrificação da minha situação.


Há outros modos de produzir mudanças radicais no mundo social. As pré-condições necessárias de uma mudança social importante são: (1) a identificação e utilização das contradições, forças e instituições historicamente dadas, e (2) a adequação do sujeito da ação à tarefa.


Se se concebe o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. A realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de uma classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que pertence.


Aos olhos do indivíduo isolado, a totalidade social tem de parecer, naturalmente, o agregado misterioso de passos específicos que ele não pode concebivelmente controlar para além de um ponto extremamente limitado. Assim, esse indivíduo isolado que se contrapõe – dentro do espírito da dupla dicotomia sartreana – não só ao mundo dos objetos, mas também aos seres humanos do dado mundo social caracterizado como “o outro”, nada mais pode fazer do que admitir a impotência de suas ações pessoais no “mundo das coisas utilizáveis” e deixar-se levar pelas curiosas estratégias do mundo “mágico”.


A herança heideggeriana de Sartre pesa sobremodo neste sentido. A concepção não-dialética do mundo com uma totalidade não-estruturada e a caracterização, a ela intimamente ligada, do sujeito da ação humana como indivíduo isolado transmutam-se em “estruturas existenciais” a - históricas, e o mundo social é subjugado pelo mundo da magia: o mundo da emoção.
No contexto dos pressupostos individualistas de Sartre, a solidão ontológica do Para-si e o caráter essencialmente degradado da função mediadora do Outro, não pode haver outro caminho senão esse. Não pode haver consciência social genuína, não só no nível da “humanidade como nossa”, mas igualmente no domínio das relações de classe.


A dimensão fundamental da realidade humana, a possibilidade, articula-se como “a presença do futuro enquanto aquilo de que se carece, e enquanto aquilo que, pela própria ausência, revela a realidade”. Quanto aos indivíduos particulares, ficamos sabendo que “Todo homem define-se negativamente pela soma total de possíveis que são impossíveis para ele; isto é, por um futuro mais ou menos bloqueado”. E quanto ao todo social complexo como a cidade, lemos que “uma cidade é uma organização material e social que deriva sua realidade da ubiqüidade de sua ausência”. Uma vez mais Sartre procura introduzir restrições históricas e mais uma vez a estrutura original tende a reafirmar-se.


Pode-se perceber esse dilema no modo como Sartre aborda a História. Ele critica o marxismo por seu suposto fracasso em estudar as estruturas da História – objeto de investigação de Sartre na Crítica da razão dialética – “por si mesmas”. Contudo, paradoxalmente, a análise ontológica que faz dessas estruturas, sob o aspecto das “possibilidades teóricas de suas combinações”, tende a negar a historicidade da História, ao defini-la como uma estrutura existencial básica: “Se a História me escapa, não é porque eu não a faça; é porque o outro a está fazendo também”. Se a história me escapa não é porque o “outro” é o que quer que pareça (isto é, antagonicamente oposto a “mim”, por razões sócio-históricas determinadas”, mas porque ele é o outro (isto é, devido à estrutura existencial ontológica do “próximo”). Conseqüentemente, ou o outro deixa de ser o outro, ou a História continuará do modo como a conhecemos do passado, ou seja, fora do controle humano consciente.


Neste sentido em que nos fundamentamos, devemos proceder, para a compreensão e entendimento de em que nível se possa encontrar e fundamentar a conciliação do existencialismo e marxismo, o outro segue as mesmas trilhas da superação do em-si, isto é, a busca de tornar a liberdade uma responsabilidade com os homens, a humanidade, o engajamento com a História.


E como essas possibilidades quando muito estão confinadas a momentos transitórios – como a obliteração do antagonismo entre o “eu” e o “outro” no “grupo amalgamado” estruturalmente instável – “o outro” continua a lançar sua imensa sombra negra sobre a história, graças á determinação negativa de Sartre da estrutura ontológica existencial. Se se mede o valor do marxismo dentro de um quadro de referência cujo centro é o indivíduo e sua consciência (visando a atribuir responsabilidade até mesmo à consciência “não-reflexiva” até mesmo uma concepção dialética do marxismo parecerá mecânica. Qualquer forma de marxismo, avaliada da perspectiva de uma ontologia existencial-individual, parecerá carente de “fundamentação”.


Na medida em que esse fundamento não se defina em termos do indivíduo e de seu projeto existencial, as condições e leis históricas parecerão mecanismos externos anteriores ao indivíduo, e a filosofia que se centra nelas parecerá uma filosofia mecânica, seja qual for seu mérito no nível das “hipóteses históricas”, as quais, por definição, devem ser estabelecidas sobre a base de uma “ontologia fundamental” (antropologia existencial) e, assim, não podem fundar a si mesmas.


Na medida em que as “hipóteses históricas” do marxismo não podem ser subsumidas à concepção existencial da ontologia (antropologia) o marxismo deve ser “validado”, “complementado”, “corrigido”, etc. – em suma, deve ser suplantado pela busca existencialista.


A atitude ambivalente de Sartre para com o marxismo tem raízes na incompatibilidade entre a antropologia existencialista e a ontologia marxista. Para Marx, ontologia e antropologia não são sinônimos; a primeira é a base inquestionável da última e, nesse sentido, a “precede”. Conseqüentemente, o problema não é simplesmente a “materialidade”, ou seja, “o fato de que o ponto de partida é o homem como organismo animal que parte de necessidades e cria conjuntos materiais”, mas precisamente as condições ontológicas objetivas sob as quais podem ocorrer tais desenvolvimentos. Isso é que faz Marx insistir no princípio ontológico inerente ao desenvolvimento da tecnologia moderna, que consiste em “resolver cada processo em seus movimentos constitutivos, sem considerar de modo algum a possibilidade de sua execução pela mão do homem”.


Não nos deve preocupar, aqui, se se deve ou não aplicar o nome de “dialética da natureza” (e, se for o caso, com que ressalvas) ao estudo dessas condições. O que interessa é que elas são claramente não “antropológicas” – dizem respeito a leis fundamentais do movimento da natureza e aos pré-requisitos do desenvolvimento humano conformes a essas leis naturais objetivas e em resposta a elas – mas constituem os pontos de referência últimos da ontologia à qual se deve integrar uma concepção dialética da antropologia como uma parte do todo.


Exemplar para a continuidade de nossa apresentação é a análise marxiana da relação entre o homem e a mulher, pois Marx considera que essa é “a relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano”. A seu ver, “nesta relação natural do gênero, a relação do ser humano com a natureza é imediatamente a sua relação com o ser humano, assim como a relação com o ser humano é imediatamente a relação dele com a natureza, a determinação própria dele”.


A partir dessas explicações acerca de Marx, retornamos à questão do outro. A descoberta mais dramática tem lugar quando o Outro levanta os olhos e me observa . O seu olhar abala radicalmente o meu estado ontológico – de súbito, sinto-me transformado de sujeito em objeto. Tal olhar não é, de fato, algo de neutro e isso eu sinto de imediato. Assim como ao olhar o outro eu o tinha objetivado, também agora o olhar do outro me objetiva. Seja de que forma isto for analisado, a opinião que se possa ter sobre este processo, algo é certo: é apenas deste modo que se efetua a descoberta do Outro como sujeito, assim como a relação entre o Eu e o Outro.


As relações entre o Eu e o Outro são em si mesmas antagônicas: o Outro limita-me e nega-me, enquanto, por outro lado, existe apenas como um “eu rejeitado”. É verdade que o Eu se esforça por compreender o Outro, mas, por definição, não o pode atingir: o Outro, o homem, não é, em última análise, possível de ser conhecido pelo outro homem. Sentir (no sentido hermenêutico e fenomenológico de EINFÜHLEN) e, ao mesmo tempo, conhecer o homem é a priori impossível: “se o sinto (éprouve) com clareza, não o consigo conhecer; se o conheço, se ajo sobre ele, alcanço apenas o seu ser-objeto e a sua existência provável no mundo; nenhuma análise destas duas formas é possível”.


Apesar da situação de natureza intrinsecamente conflitual, a relação entre o Eu e o Outro se processa também como apaixonada procura de relações positivas. É à caracterização de tais relações que Sartre dedica ao Outro grande capitulo desta fenomenologia da intersubjetividade e que surge, desde logo, como um dos centros nodais de toda a obra.


O para-si não pode ser concebido como uma realidade que, em um segundo momento e como que aleatoriamente, buscasse atingir um ser perdido na pura exterioridade; também não satisfaz entendê-lo como um existente provido de certas tendências. Antes ao contrário, sendo nadificação original, o para-si é constitutivamente relação ao em-si, em seu próprio fundamento relaciona-se necessariamente ao em-si, em seu próprio fundamento relaciona-se necessariamente ao em-si. Assim, o tema da intencionalidade adquire uma dimensão ontológica. Sendo negação interna, o para-si faz-se habitar por uma fome de ser, de afirmação de si no ser – mas de um ser no qual jamais consegue incidir. Ele é relação ao em-si, e apenas relação; o para-si confunde-se com seu próprio nada, e permanece separado do em-si por nada. “O para-si é fundamento de toda negatividade e de toda relação, ele é a relação”.
Explica-se, pois, que o olhar não se possa desembaraçar da categoria do ser objeto.


O encontro do sujeito com o Outro determina, pois, a inquietante descoberta da “falta” e da heteronomia do Eu. O sujeito dá-se, de fato, conta de ter sido visto e descoberto na sua própria objetividade (que para ele é inatingível) através de algo que está fora de si: “o olhar do Outro constitui o meu corpo na sua nudez [...]. O outro possui um segredo: o segredo daquilo que eu sou [...]. O outro funda o meu ser na medida em que este ser se encontra sob a forma do ´isto existe´”.


A existência do sujeito não pode deixar de ser expressa como “fuga” e como “procura”, como superação da sua própria facticidade e como (tentativa de; vimos anteriormente a importância de “tentar”) conquista do “fundamento” que lhe falta. Tudo isto não se vai reunir a uma qualquer essência pré-existente do Eu. O Eu, o sujeito humano, é esta permanente fuga e esta imparável procura: a “relação” que ele instaura com o Outro através dessa fuga e dessa procura é constitutiva da sua própria essência. À medida que o objeto do sujeito é a anulação da sua própria heteronomia através da anulação do Outro como alteridade, tal relação pode configurar-se de duas maneiras diferentes: o sujeito pode tentar tomar o lugar do Outro, conjugando-se harmoniosamente com a transcendência que ele é e cuja suspeita fazia sentir mesmo sem fundamento; e pode, pelo contrário, tentar anular tal transcendência através da sua negação, isto, transcendendo-a por sua vez.


A primeira das análises dos modos indicados é o amor. O ideal do amor, seu motivo e seu fim, consiste no empenho para estabelecer a unidade com o outro, isto é, “uma fusão de consciências em que cada uma delas conservasse sua alteridade para fundar o outro”. O amor procura constituir a síntese de duas transcendências, e isso de tal modo que a liberdade de uma só possa existir pela liberdade da outra; eu seria eu enquanto outro, e o outro enquanto eu.


Nessa experiência, as coisas se passam como se se pudesse aplicar o argumento ontológico ao nosso ser-para-outro: “Nossa essência objetiva implica a existência do outro e, reciprocamente, é a liberdade do outro que funda nossa essência. Se pudéssemos interiorizar todo o sistema seríamos fundamento de nós mesmos”, ou seja, deuses. Tal empreendimento só seria realizável, uma possibilidade, se nos fosse dado vencer a contingência original de nossas relações com o outro. A contingência impõe-se como irredutível, e a unidade, conseqüentemente, como irrealizável; o amor não chega a superar a raiz mesma da contingência, o fato de que as consciências estão separadas por um nada invencível: “o amado é olhar”. Assim, o amor se desafoga num esforço contraditório, e “os amantes permanecem cada um para si em uma subjetividade total”.


A impossibilidade de realizar tal projeto por parte do sujeito perpassa já pela impossibilidade do amor-deste amor. Tendo partido do desejo de amar o companheiro como sujeito, o amante em breve manifesta a exigência de se fazer amar de modo absoluto e exclusivo. O amor encarna então na imperiosa vontade de ser amado – e de ser amado de uma certa maneira. A esta primeira contradição respeitante ao propósito de assumir (e respeitar) o Outro como liberdade segue-se depois uma outra: também o amado, se for realmente considerado como sujeito livre, desejará amar o amante da mesma maneira que é amado. Ou seja, desejará ser-amado.


Sartre apresenta do outro modo tentado pelo sujeito para eliminar a alteridade: a anulação do Outro. Esta anulação parte inicialmente do meu olhar: fixando o olhar sobre quem me observa, reajo ao Outro e à sua liberdade (graças à qual ele me observava) até por fim o obrigar reconhecer a minha liberdade. Escolho, depois, uma atitude em relação ao Outro (e mesmo em relação aos Outros) baseada na indiferença: “Pratico então uma espécie de solipsismo de fato [...], ajo como se estivesse sozinho no mundo; ´toco ao de leve´ as pessoas tal como ´toco ao de leve´ uma parede, evito-as tal como evito os obstáculos, a sua liberdade-objeto não é para mim senão o seu coeficiente de adversidade; não imagino sequer que elas me possam olhar”.


Não nos admiremos que uma outra expressão fundamental do projeto de anulação do Outro, o ódio, vá ao encontro de um falhanço certo. O ódio é um estado de resignação, olhado, sim, à luz de uma submissão à comodidade, confortabilidade, e também aos sofrimentos da vida, o destino está traçado, o destino é dado, negando assim a liberdade. O sujeito resigna-se a viver só através de uma supressão prévia de todos os outros sujeitos. Ainda que realizado o projeto de anulação do outro, este falha o seu próprio objetivo. Suprimidas, as outras consciências continuarão a existir na consciência daquele que odeia, ele não pode fazer com que elas nunca tenham existido.


A descoberta mais dramática tem lugar quando o Outro levanta os olhos e me observa. Sinto-me como se devesse trazer as montanhas para os vales e os abismos para a superfície . Faz-se mister um conhecimento de quem somos e quem representamos no mundo, tornando-nos conscientes, homens à busca de nossa identidade. Às vezes, se observarmos com perspicácia percebemos que a busca da identidade reflete a adversidade de nossas condutas, atitudes, ações. Mostra-nos que andamos em direção contrária ás nossas necessidades fundamentais. Colocando-nos diante desta nossa sede de contemplação, de busca de conhecimento, estamos desejando, sim, que haja um questionamento, uma indagação do que é isto, o Sujeito.


O projeto do sujeito de se unir a um Outro conservado e respeitado na sua liberdade e no seu ser-sujeito (não foi como sujeito que o Outro me olhou, fazendo-me sentir objetividade heterônoma?) traduz-se no desejo de o amante de possuir o amado sem o objetivar, sem o reduzir a coisa, isto é, sem dele fazer uma espécie de brinquedo ou de autômato destituído de personalidade.


(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)


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