#ALTERIDADE DO OUTRO EM SARTE - UMA LEITURA DO OUTRO E O OLHAR EM “O SER E O NADA"# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: DISSERTAÇÃO EM FILOSOFIA
POST-SCRIPTUM: Esta DISSERTAÇÃO EM SARTRE foi
publicada em livro pela GRÁFICA DIAMANTINA, em 2003.
I – PRÉ-SUPOSTOS
1.1. SIGNIFICADO E FUNÇÃO DO OLHAR
Condição sine qua non para a compreensão e entendimento
do significado e função do olhar é que a consciência não encontra o ser somente
na estranha, opaca (e, assim, inatingível) forma da realidade das coisas.
Encontra-o encarnado na realidade do “outro” da “outra” consciência.
Reacende-se a esperança do sujeito de sair da sua
própria solidão e da sua própria falta e de instituir uma relação finalmente
positiva e “completante” com o ser. Protagonistas de uma série “de relações
dialéticas”, o eu e o outro atuam e relacionam-se, de fato, num tempo e num espaço
absolutos que se subtraem a qualquer fixação ou a qualquer condicionamento de
natureza histórico-social e material.
O sujeito não tem mais perenidade. Ele é, agora,
porque visa a esta coisa. Naquele momento, porque se voltou para aquela coisa.
Mas imaginemos que não vise nem esta, nem aquela, nem qualquer outra. Ou,
ainda, imaginemos, mais verossímil, que vise uma coisa, porém frouxamente, sem
a força nem a vivacidade que tinha, ainda há pouco, com relação á coisa
precedente.
Pois bem, no primeiro caso, não há mais sujeito
algum: sou sujeito neste minuto, não o era no precedente, não o serei no
próximo, jamais o serei – a subjetividade se me apagou como uma lâmpada de
abajur queimada. No segundo caso, há um sujeito, mas fraco, quase exangue: sou mais
ou menos sujeito; não o sou a toda hora, com as mesmas forças nem insistência;
não o sou inteiramente – uma parte de mim o pode ser, a outra não o é mais, ou
não o é ainda. Há um desenvolvimento desigual do ser sujeito. Há, de acordo com
a intensidade da intenção, de acordo com a intenção do sujeito, uma espécie de
escala móvel da subjetivação.
A partir da Crítica da razão dialética, a
subjetividade sartreana embrenha-se em novas veredas, a tônica acentua outros
contextos; a liberdade tal como a entende o primeiro Sartre é toda feita de uma
peça só, ao passo que agora tudo se desdobra no interior da ambigüidade radical
do conceito de vivência, do “silêncio” de quem sou à luz de “minha janela”, a
chama da vela do lado de fora num dos cantos. Ainda que sempre alérgico a
qualquer forma de homogeneidade atribuível à categoria do objeto – o sujeito
lhe é irredutível -, digamos que, a partir da Crítica, Sartre tornou-se mais
“positivo”.
O elemento mediador da dialética hegeliana reside
na contradição; e o escopo do processo pretende a subida ao fundamento – toda a
Metafísica consiste nesse esforço de ascensão à unidade, de busca da verdade
total; isso porque, na medida em que se diz o fundamento, acede-se também à
verdade do mundo ôntico. Hegel persegue “a verdade, a realidade e a certeza do
trono do Espírito absoluto, e sem o calvário da contração do Espírito seria
apenas “o solitário sem vida”. Hegel assevera que o “processo [dialético] não
pode ser tomado como um deslizar de um outro para um outro” ; em Sartre não se
verifica sequer esse deslizar, há apenas uma tentativa, sempre frustrada, de
fazê-lo. O processo dialético torna-se processo precisamente através da mútua
penetração de cada um dos momentos que o compõem: a contradição se revela
sempre interna, e tudo depende de seu cultivo desde a intimidade dos momentos;
há como que uma conaturalidade desses momentos, que permite vencer a
alteridade.
Para Sartre, o ser é rigorosamente exterior a si
próprio; maciço e sem segredos, impede qualquer movimento para que dele se
participe. Só resta a possibilidade de auscultar a contradição da realidade
humana, e isso na medida em que o para-si oferece-se como habitado pelo nada,
em que se determina como outro que não o ser. O processo dialético seria assim
como que unipolar, isto é, resolve-se como antidialético.
Quando Sartre diz, por exemplo, contra Hegel, que
“o enunciado correto do problema do outro torna impossível a passagem ao
universal” , tal assertiva só se justifica, a rigor, porque se tornou impossível
pensar o para-si em função de seu fundamento. Se o “olhar o negativo nos
olhos”, de Hegel, termina apenas relativo porque não leva a contradição
realmente a sério, em Sartre, ao contrário, o conservar-se no negativo torna-se
absoluto, o para-si está definitivamente instalado numa separação que se sabe
inexpugnável. Explica-se que o processo dialético deva tropeçar em si mesmo.
Sem dúvida, a consciência tende ao em-si, o para-si tende á síntese: a
realidade humana se define como constitutivamente intencional. Tudo em Sartre
gira em torno do próprio ato de tender, mergulhado inapelavelmente no elemento
contraditório da separação.
O homem velho, cabelos grisalhos, de óculos
escuros, que vejo sentado à mesa, à porta do bar, o velho Zazá, fazendo
palavra-cruzada, no jornal diário, visto exteriormente, aparece-me como um
objeto, uma coisa, lembrando que o olhar coisifica, objetiva; a “objetividade”,
“objectité”, na linguagem de Sartre, O ser e o nada, constitui um dos modos
como o outro pode ser-me presente. Tal presença não passa de um dado puramente
exterior, sendo “infinitamente provável” que o velho que vejo sentado à mesa à
porta do bar seja mais que uma marionete aperfeiçoada.
A percepção exterior do outro não poderia resultar
no mero reconhecimento de qualquer coisa como solidão original. Sartre se
empenha em mostrar que entre o “eu” e o “outro” há uma “ligação fundamental”, e
que nela se manifesta uma modalidade de presença do outro irredutível ao
conhecimento que tenho de um objeto.
A experiência decisiva é que o outro me vê: ele não
poderia olhar como quem olha uma coisa. “O outro é, por princípio, aquele que
me olha” O “ser-visto-pelo-loutro” impõe-se como uma experiência irredutível,
rebelde a qualquer tentativa de sedução. Se o outro existe, a existência do
homem está ligada ao pensamento, ao julgamento que o outro faz de si. Como ser
pensante e pensado, ao mesmo tempo sujeito e objeto, o homem desfruta do
privilégio difícil e angustiante de assumir suas responsabilidades e escolher
livremente seus atos.
A todo instante, o outro me olha, e esse olhar não
pode ser elucidado com o auxilio da categoria do objeto; de fato, quando
apreendo o olhar, cesso de perceber os olhos que me vêem.
O objetivo de Sartre com esta análise do
significado e função do olhar é a superação da interpretação solipsista do
sujeito, na qual havia já pensado na época de La transcendence de l´ego. As
conclusões negativas da relação cognitiva entre Eu e o Mundo e a permanente
solidão do Eu parecem ter dado razão ao solipsismo, ao qual, direta ou
indiretamente, tinham aderido tantos filósofos, alguns bastante caros a Sartre.
Desejando, então, analisar as relações entre o Eu e
o Outro assim como as relações entre o Eu e o Mundo, o pensamento moderno e
contemporâneo não conseguiu evitar as conclusões negativas e de tipo
solipsistas. Na verdade, afirma Sartre, o “Eu não está só”.
O ser-visto como que perturba a pureza da
percepção, suplanta a relação sujeito-objeto; o olhar cai sobre mim sem
distância e, ao mesmo tempo, me mantém à distância. Embora se manifeste nos
olhos do outro, o olhar me devolve a mim mesmo, e a experiência absorvente que
passo a ter deriva desse ser visto. “O olhar é, antes de mais nada, um
intermediário que remete de mim a mim mesmo”
Se o outro existe verdadeiramente para si, além de
ser para mim, e se somos um para o outro, e não um e outro para Deus, convém
que apareçamos um para o outro, convém que ele tenha e que eu tenha um
exterior, e que haja, além da perspectiva do Para-Si – minha visão de mim e a
visão do outro de si mesmo – uma perspectiva do Para-Outro -, minha visão do
outro e a visão do Outro de mim. Estas duas perspectivas não podem ser
simplesmente justapostas, pois então não serei eu que o outro veria e não será
ele que eu verei. É necessário que eu seja meu exterior, e que o corpo do outro
seja ele mesmo.
Comentando o causo Flaubert, O Idiota da família ,
Sartre fala do eu como de uma criação , um produto alógeno, um puro efeito de
estrutura induzido pelo olhar do outro, e quando lembra que o único momento de
coincidência consigo, o único momento em que o jovem Flaubert teve o sentimento
de se recompor um pouco, de se reencontrar, de ter uma relação íntima consigo
mesmo e de transpor a ferida, ou a fenda, foi um momento passado em frente...
de seu espelho.
Em O idiota da família, comentando o caso Flaubert,
o tema da irredutibilidade aparece, por um lado, de forma bem mais maleável,
estabelecendo-se um comércio pluridirecional entre as camadas da realidade;
poder-se-ia dizer que tudo está em tudo, e que a dialeticidade interminável de
suas configurações. Esse jogo a um tempo movediço e estruturado da
dialeticidade concentra-se em torno de um eixo central, espécie de pólo de
irradiação: a dicotomia sujeito-objeto.
A dicotomia deve ser entendida em sentido amplo, e
não caberia confundi-la com as formulações gnosiológicas tradicionais e os seus
merecidos impasses; a dicotomia apresenta aqui caráter ontológico e dialético,
e os termos que a compõem em nada se assemelham á secura empobrecida das formas
do conhecimento.
Sartre, ao inverso, complica mais ainda o
dispositivo, quando comenta, em Veneza, de minha janela, a inquietante
semelhança de duas margens do Grande Canal, escreve:
“(...) imagine que você se aproxima de um espelho,
uma imagem se forma, ali está o seu nariz, os seus olhos, a sua boca, a sua
roupa: é você, deveria ser você; e, no entanto, há algo no reflexo, algo que
não é nem o verde dos olhos, nem o desenho dos lábios, nem o corte da roupa –
algo que o faz dizer de repente; puseram um outro no espelho no lugar de meu
reflexo”
Sartre ou a hipótese do sujeito. Sartre ou o
primado, apesar de tudo, da “alma”, ou da consciência, sobre todas as coisas. O
que é uma coisa?, pergunta. É ter um tempo de atraso em relação à consciência.
O que é existir, para essa coisa? É ter esse estatuto de objeto de consciência
ou de conhecimento. E o que é, então, ser sujeito? É tomar consciência, tomar
conhecimento – sem nunca se confundir com a coisa conhecida ou concebida. Já
que o sujeito não é mais um “ente”, resta a possibilidade de ser uma idéia –
mas uma idéia já é muito! É um princípio! É a regra de uma moral! É um possível
suporte de direitos! É o que faz com que um homem, mesmo não sendo a imagem do
Homem, possa ser julgado pelos “direitos do homem!”.
Ou então a célebre abertura de A náusea: uma outra
cena de espelho, outra decomposição de um rosto pego na armadilha de seu
espelho e que, diante desse espelho, aproximando-se dele a ponto de tocá-lo, ao
invés de se juntar, dissolve-se, “imenso halo pálido que desliza na luz”.
Em Existencial psychoanalysis , “But this movement
of dissolution is fixed by the fact that the known remains in the same place,
indefinitely absorbed, devoured, and yet indefinitely intact…” Refere-se este
excerto à questão do conhecimento. Conhecer é devorar com os olhos.
O ser e o nada teorizou o olhar como um “objeto a”.
Em Les quatre concepts foundamentaux de la psychanalise encontra-se uma
saudação a Sartre por Lacan:
“O olhar, tal como concebe Sartre, é o olhar pelo
sou surpreendido – surpreendido porquanto ele muda todas as perspectivas, as
linhas de força, de um mundo que ele ordena, do ponto de nada onde estou, numa
espécie de reticulação raiada dos organismos”
E mais adiante: “O olhar teria aí tal privilegio
que chegaria até a me fazer escotomizar, em que olho, o olho daquele que me
olha como objeto”. Em La transcendence de l´ego, aparece, pela primeira vez, a
idéia de um sujeito, clivado, tardiamente advindo à sua unidade, e cuja
organicidade não passa de efeito especular do olhar do outro.
Este paradoxo e esta dialética do Ego e do Alter só
são possíveis se o Ego e o Alter Ego são definidos, por sua situação e não
liberados de qualquer inerência, quer dizer se a filosofia não termina com o
retorno ao eu, e se descubro pela reflexão não somente minha presença em mim
mesmo, mas ainda a possibilidade de um “espectador estranho”, isto é ainda se,
no próprio momento em que minha existência, e até este ponto extremo da
reflexão, sinto falta ainda desta densidade absoluta que me faria sair do tempo
e descubro em mim uma espécie de fraqueza interna que me impede de ser
absolutamente indivíduo e me expõe ao olhar dos outros como um homem entre os
homens ou pelo menos uma consciência entre as consciências.
Uma estrutura constituinte do meu ser (do ser “para
mim”) remete necessariamente para o meu ser “para-outro”. A dificuldade em nos
apercebermos desta intersubjetividade originária, e em examinar a sua complexa
fenomenologia, está relacionada com o fato de que o Outro não é qualquer coisa
de positivo que possa ser conhecido na sua positividade. O outro é o eu que eu
não sou. Assim é que o encontro entre dois sujeitos se configura desde a sua
origem como uma negação recíproca que compromete o seu próprio ser.
Apenas Hegel se apercebeu da negatividade que
constitui a relação intersubjetiva, tendo-a expresso na sua célebre análise da
dialética escravo/senhor incluída na Fenomenologia do espírito. À correta
intuição da natureza ontológica desta relação (a negação recíproca entre o
escravo e o senhor investe todo o ser dos dois pólos desta relação dialética).
Hegel também compreende a dialética do
escravo/mestre a partir da idéia de luta, de um conflito que gera a angústia e
o medo. Em Sartre, ao contrário, o conflito se apresenta como um absoluto. O
conflito, afirma ele, é o sentido original do ser-para-outro – original,
exclusivo e único. Sartre acusa Hegel de “otimismo epistemológico” e “otimismo
ontológico”. Em reação contra a necessidade dialética, os sonhos do para-si de
um objeto que pode ser inteiramente assimilado por mim, que seria eu, sem
dissolver-me, mas ainda conservar a estrutura do em-si. Hegel observa que é um
fato infeliz que o desejo destrói seu objeto. Neste sentido, diz Hegel, desejo
é o desejo de devorar.
Na Fenomenologia do espírito, Hegel introduz a
idéia de que o outro é o mediador: o fato primeiro passa a ser a pluralidade de
consciências, e uma pluralidade que se realiza sob a forma de uma dupla e
recíproca relação de exclusão. Na dialética do mestre e do escravo, este afirma
contra o outro o seu direito de ser uma individualidade, e, assim, o
ser-para-outro aparece como um estágio necessário do desenvolvimento da
autoconsciência; “o caminho da interioridade passa pelo outro” , e o outro é
afirmado como um outro eu, ou melhor, como um eu-objeto indispensável ao
reconhecimento de meu ser.
A intuição genial de Hegel é de me fazer depender
do outro em meu ser. Eu sou, diz ele, um ser para si que não é para si senão
por um outro. É, pois, em meu coração que o outro me penetra .
Acontece que toda a análise de Hegel continua
caudatária da surrada perspectiva do conhecimento-objeto; “Hegel nem concebe
que possa haver um ser-para-outro que não seja redutível a ser-objeto” Também
para Hegel o outro se apresenta restringido ao problema do conhecimento.
O acesso essencial à intersubjetividade dá-se pela
negação. Nego o outro como aquele que me nega, e pela negação do outro me
reconheço como para-si. O sentido profundo da análise de Sartre é que a relação
sujeito-sujeito não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto.
Se o sentido original da relação intersubjetiva
deriva do conflito, compreende-se a fatalidade da pergunta: “Por que existem
outros?”. O outro é um “acontecimento” primeiro de teor metafísico, e isso quer
dizer que o porquê do outro se justifica pela contingência do ser, pela
gratuidade original e irredutível de tudo o que existe. Noutras palavras, de
Sartre mesmo: “O meu pecado original são os outros”. Toda a metafísica culmina
na intuição desta contingência. Se o para-si é para-outro, tudo se passa como
se minha ipseidade em face da do outro fosse produzida e mantida por uma
totalidade, por uma espécie de síntese superior – embora Sartre não possa
admitir qualquer coisa como uma totalidade do espírito, uma síntese
transcendental à maneira de Fichte . Qualquer tentativa de síntese esbarra
nessa negação interna e constitutiva do ser-para-outro.
A análise da intersubjetividade leva Sartre a
desenvolver uma ontologia do corpo. Por que se coloca, e só agora, em função da
intersubjetividade, o problema do corpo?
Pode-se elucidar este tema através de duas
perspectivas. Primeira, negativa, surge do próprio seio da contingência
fundamental e da impossibilidade de resolver a pluralidade de consciência numa
síntese totalizadora. Segunda, positiva, brota do outro enquanto considerado
ser-objeto.
Um dos pressupostos histórico-metafísicos do
pensamento de Sartre reside na dicotomia cartesiana de sujeito-objeto. Em
Descartes, estabelecido o cogito, o discurso filosófico progride até alcançar,
através do argumento ontológico, a existência de Deus; e, caso o tema houvesse
sido ventilado por Descartes, Deus seria o fundamento da intersubjetividade,
assim como o é da ligação entre a res cogitans e a res extensa.
Penso, logo sou? Não. Posso pensar sem ser: minha
consciência pode ser atravessada por pensamentos, por relâmpagos de idéias e de
reflexões, e nem por isso me é dada esta interioridade, essa estabilidade, essa
identidade, essa perenidade, que são os atributos do ser – é a lição a ser
tirada de Infância de um chefe , que diz, literalmente, “cogito ergo nom sum”.
No existencialismo, o outro se nos dá através de
uma apreensão direta, que não perturba o caráter de facticidade do encontro
intersubjetivo; e o critério de certeza, aqui, se pretende tão indubitável
quanto a apreensão do cogito por meu próprio pensamento. Não se trata de provar
a existência do outro; toda prova cede a palma da vitória ao solipsismo, e
relega a questão ao plano da probabilidade.
Portanto, o ponto de partida deve ser o cogito
cartesiano. Há qualquer coisa como um cogito da existência do outro que se
confunde com o meu próprio cogito. Não preciso crer no outro, pois eu o
descubro em mim como aquele que não sou. E a presença em mim desse outro não
conseguiria ser degradada à condição de objeto, que eu poderia ou não, a
posteriori, conhecer; o outro pertence em certo sentido, à minha própria
facticidade. O que determina a relação intersubjetiva ressai da negação: o
outro aparece ao cogito como não sendo eu. A presença do outro se manifesta,
concomitantemente, como “recusa radical do outro”
Cogito sem ego. Ego sem cogito. Sartre, entendamos
bem,, não renunciou ao sujeito. À dissolução total do sujeito ele opõe a
hipótese de um sujeito que deveria fazer, em princípio, com que os homens nunca
fossem tratados como animais ou como coisas .
O recurso a Deus, em Sartre, torna-se impossível, o
Absoluto não poderia funcionar como fundamento. A razão alegada se resume no
seguinte: se Deus é consciência, não se entende como possa fugir do ato
nadificador que define o próprio ser da consciência; e então, “se Deus existe,
Ele é contingente” Ou ainda: “Se Deus é consciência, integra-se á totalidade”
Assim Deus se definiria como um impossível para-si, que terminaria sendo o que
não é e não sendo o que é; seria uma totalidade destotalizada e, portanto, um
não-absoluto . Sartre de A náusea e Entre quatro paredes é um apóstolo do
ateísmo “bem suspeito”, de que um católico poderia, “sem mudar muita coisa”,
ratificar a maior parte dos dogmas: humanidade desossada, mas sofredora,
desamparada, mas nostálgica, abandonada por Deus e só pensando no Céu.
A segunda perspectiva para justificar uma ontologia
do corpo deriva do outro como ser-objeto, e esclarece o que acabamos de dizer.
O outro pode existir para nós sob duas formas: se
eu o sinto com evidência, não chego a conhecê-lo; se eu o conheço e ajo sobre
ele, só atinjo seu ser-objeto e sua existência provável no meio do mundo:
nenhuma síntese dessas duas fórmulas é possível
O conflito não se consegue sobrepor à alternativa;
ou bem sou objeto para o outro, ou então o outro se faz objeto para mim; a
reificação do para-si não pode ser evitada. Acontece que esse tornar objeto o
para-si implica a manifestação do outro como corpo, impondo, assim, como
ineludível o problema do corpo. Tudo se passa como se o corpo fosse o empecilho
à comunicação plena das consciências.
O que é o meu corpo? O que é o corpo do outro?
Sartre indica três dimensões ontológicas do corpo.
O corpo como ser-para-si define na primeira: o que
é o meu corpo para mim? Seria falso considerá-lo como um objeto que se
acrescenta á consciência; ele não está unido à consciência como se
pressupusesse um dualismo. Em verdade, o ser-para-si é todo inteiro corpo e
todo inteiro consciência. Não se trata de entender o corpo como um em-si
presente no para-si. Pelo corpo, temos acesso à facticidade radical que
caracteriza o para-si, facticidade que resulta de minha contingência. Sabemos
que a realidade humana é necessariamente contingente. Que o para-si seja, é uma
contingência; que ele seja tal, é igualmente contingente. A facticidade resulta
do entrelaçamento dessas duas contingências. O corpo pode ser definido
precisamente como “a forma contingente que toma a necessidade de minha
contingência”
Sartre explicita o corpo a partir das estruturas
próprias do para-si. Uma coisa é o corpo enquanto ele é para-mim. A realidade
corpórea revela ainda outros planos da existência, outras dimensões
ontológicas. Tal como o para-si, o corpo também existe para o outro. Visto que
não sou o outro, o corpo do outro, como Sartre o apresenta em O ser e o nada,
se impõe como radicalmente diferente do meu corpo-para-mim; originalmente, ele
se manifesta a mim com um certo coeficiente objetivo de utilidade e de
adversidade.
A terceira dimensão ontológica do corpo deriva da
análise do olhar: existo para mim como conhecido por outro. Com a aparição do
olhar do outro, tenho a revelação do meu ser-objeto, sou conhecido pelo outro
como corpo. O olhar faz com que se revele para mim a existência do meu corpo
como um exterior, como um em-si para o outro; minha facticidade é objetivada,
meu corpo é alienado.
Segundo o habitual procedimento fenomenológico,
qual é o “significado” de tudo isto para o sujeito? Responder a esta indagação
não é difícil.
O olhar que o Outro me dirige não se limita a
objetivar-me: ele descobre-me também, conhecendo-me mais e melhor do que eu
conseguiria por mim mesmo. Descoberto a espreitar pelo buraco da fechadura,
sinto o meu ser fixado e objetivado como eu nunca teria conseguido fazer. E
sinto que este meu ser está a ser desse modo descoberto e conhecido como uma
impiedosa verdade. Esse é precisamente o sentimento resultante do olhar do
Outro: “Eu sou aquele eu que um Outro conhece”.
Sinto ainda, em segunda instância, que não sou mais
uma absoluta, mas uma solipsista transcendência, que não sou mais uma absoluta,
mas sim uma solipsista liberdade. Sinto que um Outro, pelo simples fato de
olhar-me, objetiva-me, aliena-me das minhas próprias possibilidades,
transcende-me: “Com o olhar de outrem [...] deixo de ser senhor da situação”
Sob o olhar do outro, sinto-me tornar “escravo”, “objeto de valores” que não
foram por mim elaborados, que não foram por mim assumidos, “instrumento de
possibilidades que não são as minhas possibilidades” .
A última frase de As palavras “Todo um homem, feito
de todos os homens, que os vale todos e a quem vale não importa quem” Sartre
igual a “não importa quem”? sim. Parte dele o crê. Parte dele sonha com isso.
Essa parte dele continua a pensar, como Gide, que todo homem “nasce para
testemunhar” e que, mesmo que o homem nada valha, um nada vale por outro nada e
toda vida, ínfima que seja, ou infame, tem sua grandeza e dignidade. Elogio do
homem comum. Apologia do sujeito fora do sujeito, de quem Spinoza teria dito:
“à sua maneira, nada lhe falta; ele é, como toda realidade individual,
perfeito; igual, pois, em dignidade, as outras realidades”.
Dizendo Sartre “um homem feito de todos os homens”,
ele quer dizer duas coisas e é nesse duplo sentido que pode ser considerado
ainda humanista. Em cada homem, a gama completa do humano; nos piores canalhas,
fulgores de santidade; no mais santo dos santos, traços de malignidade. E
também igualdade entre sujeitos; igual acesso a esse devir-sujeito que veremos
ser, para os sujeitos concretos, a mais arriscada aventura, a mais aleatória,
mas também a mais apaixonante; em cada um, um possível passe para a verdade; em
cada homem, a possibilidade, pelo menos uma vez, de se conduzir como sujeito.
(**RIO DE JANEIRO**, 12 DE ABRIL DE 2018)
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